Comecemos
com La Pointe courte (1954), o primeiro filme
de Agnès Varda. Na cidade que nomeia o longa-metragem,
duas narrativas se desenrolam em separado. A primeira,
uma espécie de documentário sobre os habitantes
da pequena aldeia. A segunda, uma ficção
sobre um casal em crise, tendo como pano-de-fundo a
volta do protagonista a este mesmo local, onde nasceu
e passou sua infância. Dessa relação
de forças entre a existência de personagens
e o ambiente físico real pelos quais eles estão
envoltos surge uma característica forte da obra,
que ainda estava por se construir, de Varda: a poesia
do espaço, nunca visto isoladamente, mas sempre
em conjunto com os homens e mulheres que nele convivem.
Em La Pointe courte, esta relação
ainda se dá de forma um pouco simplista. É
o ambiente que determina o homem, e seu modo de dialogar
com ele existe apenas de duas formas: resistindo (no
caso da ficção) ou aceitando (no caso
do documentário). Se as nuances já fazem
parte do material de trabalho da cineasta, neste longa-metragem
elas sempre levam em consideração os dois
pólos pré-determinados. La Pointe courte
admite o cinza, mas nunca vai além do branco
e do preto. A fotografia virtuosística, a crença
documental nos "nativos", as discussões
filosófico-sentimentais dos atores, todos os
elementos (mesmo em suas quebras e piadas internas)
que constroem o filme caem neste mesmo problema: o espaço
é superfície. Se ele já se encontra
tematizado, ainda é tratado como questão
a ser atingida, combatida, superada. Existe unicamente
como conflito.
Continuemos, portanto, com dois de seus curta-metragens
seguintes: Oh, Estações! Oh, Castelos!
(1957) e Do Lado da Riviera (1958). O primeiro,
um filme de encomenda sobre os castelos franceses. O
segundo, um filme-de-viagem tendo como tema, naturalmente,
a Riviera do título. Nos dois casos, tudo deveria
apontar para uma espécie de institucional de
algumas das belezas da França (como apontaria
também, futuramente, O Leão Volátil).
Temos a beleza estética, a narração
em off, as explicações históricas.
Mas Varda não se limita à propaganda,
pelo contrário. Ao transformar o ambiente impessoal
e coletivo (dos cartões-postais que seriam retomados
no início de Sem Teto, Nem Lei) em projeto
autoral, a diretora dá ao espaço retratado
a vida que ele perdera ao longo de tais projetos publicitários.
Os castelos não se bastam mais enquanto castelos
(ou, que seja, enquanto maquetes filmadas), existem
conjuntamente com os jardineiros e seus jardins, a arquitetura
e sua história, o clima e sua luz. Essa ressignificação
do ambiente a partir do que está em sua volta
(e a ressignificação do que está
em sua volta, a partir do ambiente) marcaria a cineasta,
e já pode ser vista nestes curtas-metragens.
Afinal, de que serve olhar para a Riviera sem se deter
nos banhistas, nos porteiros e na variedade de pessoas
que lá passam o verão? Mas, também,
qual o sentido de olhar para essas pessoas sem colocá-las
nas praias, nas ruas, sem vesti-las de chapéus,
maiôs e guarda-sóis? O homem é o
espaço, e o espaço é o homem. Não
por acaso o "documentário subjetivo"
que filmou nesse mesmo período levava o nome
de um bairro de Paris: A Ópera-Mouffe
(1958). Para se escrever com poesia, é necessário
situá-la onde ela existe.
Fixemo-nos então, um pouco em Cléo
de 5 às 7 (1961), talvez o filme mais conhecido
de Agnès Varda, e seu segundo longa-metragem.
A protagonista, em face da iminência da morte
sugerida nos tarôs, perambula pelas ruas de Paris,
sozinha e sem direção, até que
ocorre, em seu espírito, uma mudança.
"Estou feliz", ela diz ao soldado que encontra
em seu passeio, e não entendemos bem o porquê.
Ora, o que aconteceu nesta uma hora e meia de narrativa
– em tempo real – que justificasse a transição
dentro da protagonista? Pela primeira vez, Cléo
vivenciou a cidade, as pessoas, as construções,
os jardins. Pela primeira vez, libertou-se dos espelhos
que marcam a primeira metade do filme e se relacionou
com o outro. Se a Nouvelle Vague foi marcada
por essa exploração do cotidiano, das
ruas, dos cafés, da vida das cidades, poucas
vezes a premissa foi levada tão ao limite quanto
em Cléo de 5 às 7. Porque cada
figurante, placa de trânsito, nova rua que aparece
no longa-metragem sugere mais do que uma função,
revela um espírito. O soldado que se relaciona
com a cantora no fim do filme não é mais
importante do que a luz que bate nas árvores
do jardim. Tudo transforma-se em Cléo.
Dessa forma, a revolução da protagonista
só pode se dar em contato com o ambiente – não
no sentido de La Pointe courte, nem mesmo no
modo como Varda retrata as praias do Riviera -, mas
porque o espaço, agora, é um mecanismo
vivo, em constante modificação. Enquanto
ele muda, mudamos com ele. Se a cineasta é famosa
por confundir realidade e ficção em suas
obras, por que no caso desse longa-metragem seria diferente?
Sabemos que é uma atriz que interpreta Cléo,
que os planos são decupados, que um roteiro compõe
a narrativa. Mas, ainda, é Paris que lá
existe, em seu espaço inalterado, possível
de ser percorrido em uma hora e meia. Paris que constrói
Cléo, Paris que é construída por
ela. Dessa relação de dupla-troca (já
enunciada nos curta-metragens) entre ambiente e personagem,
nasce uma simbiose em que um começa onde o outro
também, dentro da qual os atores viram pessoas
e as paisagens personagens.
Pensemos, rapidamente, no longa-metragem posterior,
As Duas Faces da Felicidade (1964). Não
é por acaso que, neste filme, as imagens-mor
de felicidade e desespero têm de existir fora
de casa, no parque da cidade. Para Varda, as folhas,
os rios, os pescadores, tudo que está em volta
naturalmente é visto dentro do mesmo espírito
de seus personagens. O sofrimento de um homem – ou,
pelo contrário, sua alegria – não existe
somente enquanto homem, mas enquanto mundo. As brincadeirinhas
à la Godard de dar nomes explicativos às
placas da cidade (Rua da Alegria, Rua da Paixão,
e assim por diante...) superam, portanto, a simples
função de joguetes e transformam-se em
resumo: quando um homem sente, a cidade sente junto.
Quando a cidade sorri, não é sozinha.
Por isso, a câmera da diretora tem de estar atenta
a cada pedaço de rua, a cada placa, a cada folha
caída. Varda percebe que entender a cidade –
no sentido fotográfico – não está
muito distante de entender quem nela vive. Seu cinema
não é mais psicológico, sociológico
ou histórico; é simplesmente espacial.
Por isso, para se falar de Amor e Prazer no Irã
(1976), torna-se necessário filmar as mesquitas,
os tapetes, as gravuras inscritas neles. Como diferenciar
os dois amantes do filme da arquitetura iraniana? A
pergunta certa seria: para que diferenciar? Não
precisamos mais de voz em off nem de algum outro
artifício. Os ambientes e os personagens agora
se reiteram, somam, modificam uns aos outros. O ponto
de diferenciação entre um e outro já
não existe. Dessa forma, ao homenagear a Cinemateca
Francesa em Você Tem Belas Escadarias, Sabia?
(1986), não é a sala de cinema, nem os
cinéfilos, que Varda filma, mas as escadarias
do local. Quantos diretores teriam a sensibilidade de
perceber que o espaço físico de fora da
sala diz tanto quanto o de dentro? Que os clássicos
do cinema mundial montados em paralelo com cenas da
escada estão inscritos em cada um daqueles degraus
por onde passaram tantos pés? Poeta minuciosa
do espaço, é natural que Varda transformasse,
de vez, este mesmo espaço em um de seus personagens
principais.
Voltemos, temporalmente, a As Tais Cariátides
(1984), reflexão sobre as colunas-humanas de
Paris. Em um dos primeiros planos do curta-metragem,
um homem nu atravesse as ruas de Paris. Homem ou estátua?
Já não sabemos. Varda filma as belezas
da cidade não por sua importância histórica,
nem mais pela sua ligação arquitetônica,
mas como se cada uma delas tivesse sentimentos, como
a gente. Talvez o maior exemplo seja O Leão
Volátil (2003), filme no qual a estátua
de um leão é apresentada da seguinte forma:
"Se Zgougou é a mascote da Cine-Tamaris,
o leão de Belfort é a mascote do 14º arrondissement
em Paris". A estátua, subitamente, vira
gato. É assim que será tratada ao longo
do curta, é assim que deve ser tratada sempre.
Em alguns momentos, essa "humanização"
dos objetos fica mais clara: os ossos na boca do leão,
seu sumiço. Mas é quando ela se esconde
que se intensifica. Depois da primeira frase, cada corte
em direção ao Leão Volátil
não é mais um corte em direção
a um objeto inanimado, mas uma alteração
na narrativa, uma mudança no percurso da protagonista,
uma relação entre dois seres. Cada momento
em que o olhar de Julie Depardieu é surpreendido
pelo olhar – agora vivo – do Leão, a cidade olha
junto, e participa daquele relacionamento fantástico
e cotidiano. Sem Zgougou, Varda seria outra. Sem o Leão
Volátil, a personagem de Depardieu – e todas
as pessoas que passam por aquele bairro – também.
Existe melhor forma de homenagem?
Mas, se o melhor jeito de apresentar um objeto é
admiti-lo enquanto pessoa, qual seria a forma adequada
de se apresentar uma pessoa? Em Sem Teto, Nem Lei
(1985), Varda responde essa pergunta fazendo o caminho
inverso de O Leão Volátil. Mona,
sua protagonista, existe enquanto personagem sim, mas
talvez, principalmente, enquanto espaço. Sua
figura errante, anti-psicologizada, quase desagradável,
é vista sempre pelos olhos dos outros, os habitantes
das regiões por onde ela caminha. Quando começa
o filme, alguns jovens reconhecem seu corpo em um cartão-postal,
e de certa forma é essa a síntese da função
que Sandrine Bonnaire viverá durante Sem Teto,
Nem Lei: modificar o ambiente já estabelecido,
conservado. Os travellings que surgem na narrativa
examinando a região e acompanhando a protagonista
parecem afirmar que aquela mesma região agora
é outra com ela, sua presença não
pode ser ignorada. Mas não é presença
de mulher, nem de animal, nem de coisa; é presença,
simplesmente. Seu corpo antes desconhecido se soma ao
ambiente, e isso basta. Mona é o Leão
Volátil, é Zgougou, é a cidade
de Paris. Mona é Mona. Esse conjunto de pessoa,
objeto, ambiente e tudo o mais que nunca poderemos compreender
por inteiro.
Possivelmente, o filme que melhor representa esta simbiose
total é Muros e Murmúrios (1980),
retrato de Los Angeles vista a partir de seus inúmeros
murais. Nele, os muros se confundem com os artistas
que os pintaram – muitas vezes de forma literal –, os
artistas se confundem com a cidade, a cidade se confunde
com os muros. Novamente, Varda repete a pergunta: onde
termina um desses elementos e começa o outro?
Novamente, responde o mesmo: em lugar nenhum. O filme
inteiro parece ser feito com essa indagação
na cabeça e a certeza de que Los Angeles pode
ser vista, da mesma forma, pelo micro – os pintores
e pessoas –, o médio – os muros, prédios,
ruas – e o macro – a cidade, em si. Não por acaso,
as problemáticas que a diretora estabelece –
relações de trabalho, poder do capital,
diferenças sociais – são trabalhadas em
todos esses níveis, e não por acaso cada
região de LA tem um tipo distinto de muro, de
pessoa, de vida. Quando Varda filma um homem saindo
da pintura que construiu, pode-se afirmar que sua imagem
já está gravada no mural, e que o mural
já está gravado nele.
E onde está gravada Varda nisso tudo? Muito já
se falou de sua generosidade, e talvez valha apenas
simplesmente acrescentar que ela nasce de um sentimento
humilde: saber que, se o ambiente, as pessoas e os objetos
se confundem, ela, também, confunde-se com eles.
Por isso seu cinema sempre será subjetivo, por
isso as barreiras entre ficção e documentário
estarão eternamente em cheque: não há
nada mais cruel do que retirar o diretor do próprio
filme que constrói, e do qual é construído.
O princípio da fotografia revela-se, ao mesmo
tempo, o princípio da ilusão e o bairro
onde a diretora mora, como mostra Daguerreótipos
(1974-1975), e nada pode ser mais exemplar. O espaço
real e o olhar imaginário do cineasta serão
sempre inseparáveis, e dessa conjunção
inumerável de elementos nasce um mundo, dentre
todos os bilhões que existem, co-existem e fundem-se,
eternamente. Mas separemos, por um instante, a cineasta
do resto. Porque, se ainda faltam bilhões de
universos a serem conhecidos – e a diretora parece se
interessar por conhecer todos eles –, certamente poucos
serão tão complexos, terrenos e mágicos
quanto o de Agnès Varda.
Leonardo Levis
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