Aprile
de Nanni Moretti, Aprile, Itália, 1998

Em abril, numa tela

Frenético, ansioso, Nanni Moretti interrompe a fala de todos com as observações mais despropositadas. Seu pensamento parece voar de um lado para outro incessantemente. De forma análoga, Aprile agilmente se desloca entre diferentes interesses narrativos. A uma só vez personagem e diretor, o cineasta Moretti é como que acometido de tantas vontades simultâneas de cinema, que é incapaz de se decidir sobre qual filme fazer (e de terminá-lo), assim como de fechar um filme em termos de assunto e desenvolvimento. Sua responsabilidade de realizar um filme político choca-se com o desejo (e a insegurança) de fazer um musical, enquanto ambos os projetos são atropelados por uma vida pessoal em momento de total efervescência (o nascimento de um primeiro filho).

Na interseção magicamente criada entre vida pessoal e ficção cinematográfica, Moretti faz de Aprile o registro de um turbilhão de emoções diversas, cujo ponto em comum é o espaço temporal em que se dão. (Não por acaso o nome do filme carrega essa indicação...) Talvez apenas tamanha aceleração tenha possibilitado o jogo anárquico que se estabelece entre cinema, vida e conjuntura histórica ao longo do filme. Porque o filme que habita Moretti, ora um documentário político, ora um musical, é, por fim, o próprio encanto pela vida. Vida que se descortina diante dos olhos ao contemplarmos o nascimento de uma criança. Vida que Aprile capta no ar, entre um plano e outro, nas interseções das rápidas mudanças de foco da atenção oscilante de Moretti. E é este aspecto de encantamento que traz para Aprile muito propriamente a aura do musical. Embalado por uma trilha sonora variada e pelo movimento constante dos corpos na imagem, o filme mostra-se de tal forma apaixonado por tudo o que acontece, que não pode evitar de se constituir apenas de momentos narrativos, de situações, muitas vezes sobrepostas.

No mesmo compasso da confusão entre preocupações políticas, pessoais, anseios artísticos e neuroses cotidianas, funciona a mescla que Moretti opera entre o impulso documental e o impulso ficcional. Aparentemente problematizado como objeto de interesse narrativo, o “fazer cinema” (tanto como prática material, quanto como desejo criativo) revela-se, para ele, uma paixão que reside na própria relação que se têm com o mundo. Que filme assistir, que filme fazer, que filme viver: é este o eixo narrativo de Aprile e, mais recentemente, de O Crocodilo. Produzindo imagens que abrigam uma espécie de “indefinição”, ou melhor, de potencialidade para adquirir diferentes configurações, Moretti cria nestes filmes um cinema que parece estar em permanente modulação, suavemente transitando entre os campos da ficção, da auto-reflexividade e do documentário, e entre os domínios da experiência pessoal, da história social, do discurso organizado em narrativa e da observação de pequenas ações.

Desta forma, reagir à eleição de Berlusconi publicamente iguala-se a reagir intimamente à chegada de um filho e a se articular para realizar um filme. E, se, no fim das contas, tudo isto pode estar impresso em termos de sentimento no registro que as imagens em movimento são capazes de fazer de uma experiência individual, transpondo-a para uma experiência coletiva, Aprile é um autêntico diário público do seu diretor. Impossível de precisar e de definir em termos narrativos (e por que não dizer também cinematográficos), em sua graciosidade, ironia, humor, afetividade e estados d’alma, o filme apresenta exímia habilidade em captar um momento, a partir de um ponto de vista assumido como profundamente pessoal. E este ponto de vista, que nunca é exatamente circunscrito a um olhar ou a uma discursividade, é antes uma sensibilidade em ebulição, que destila suas irritações, expectativas, desejos, inquietações, paixões... Uma vontade irrestrita de viver a vida e de fazer com que ela seja vivida, sempre da melhor forma possível. Com o melhor governo, a melhor família, o melhor cinema. Ainda que estes sejam difíceis de precisar devidamente.

Tatiana Monassa