Comecemos
pelo fim. No último plano de Xifópagos e Roqueiros,
os irmãos Barry e Tom, depois de todo o périplo traçado
ao longo do filme, de freaks enjeitados pelo pai a freaks
amados pela cena punk inglesa, e já nem mesmo freaks,
tendo passado obrigatoriamente por uma re-humanização,
depois mesmo de suas mortes trágicas, anunciadas em
cada um dos planos anteriores como a única forma possível
de se terminar esse percurso, num clipe que pretende
dar conta resumidamente de toda loucura e transgressão
atribuídas a esses dois personagens na hora e meia decorridas,
vemos em velocidade baixa a última imagem dos siameses,
olhando direto para a câmera, e sua posição no quadro
vai se ajustando até que tenhamos uma combinação totalmente
harmônica dos dois rostos, como se fossem um só, ao
mesmo tempo em que não se nega a natureza diversa dessas
metades reunidas. A beleza plástica dessa imagem, sem
nenhuma vergonha de denunciar-se artifício puro, sua
idéia muito clara e nada metaforizada sobre a relação
que os irmãos tinham entre si, a postura ameaçadora
diante do mundo, o dedo-em-riste atribuído ao rock'n'roll
como se fosse uma de suas prerrogativas, e ali naquele
último plano Xifópagos e Roqueiros entrega suas
armas, despede-se de todo acúmulo de seriedade e importância
que vinha exigindo para si ao longo de todo o filme,
e se diverte finalmente com a chance de ter seus protagonistas
livres da agenda pesada de compromissos narrativos a
que estiveram submetidos. Pena que este seja o fim,
e não o começo.
Porque antes disso há a encenação de um documentário
sobre os irmãos xifópagos, aquele mesmo expediente cansado
de intercalar imagens da saga dos protagonistas (aqui
disfarçadas de um cinediário filmado nos anos 70, no
auge da banda The Bang Bang) com depoimentos dos sobreviventes
daquela loucura, os “personagens da vida real”, envelhecidos
em relação às imagens de época, que rememoram suas experiências
já com o peso e a revisão crítica que os anos obrigam,
e com direito mesmo à presença de gente famosa, como
o diretor inglês Ken Russell, que teria realizado uma
biografia filmada de Barry e Tom, nunca concluída. Nada
em Xifópagos e Roqueiros justifica essa sua necessidade
de se mostrar documentário. A vontade de atribuir à
trama uma espécie de verdade fundamental, da qual o
gênero estaria automaticamente investido, se ridiculariza
diante do tom quase épico assumido pelos depoimentos,
todos eles iluminados com aquela luz cretina dos programas-verdade
da tevê, dando à essa pompa uma graça quase infantil.
Pois se não era de verdades que o filme precisava ser
preenchido, do que seria? Talvez uma tentativa de fabulação
mais evidente, que ligasse pontos e pusesse pingos nos
is, e para isso a urgência do relato. Dar um pouco de
ordem ao caos, domá-lo com o verbo, e essa também se
mostra uma escolha equivocada.
Xifópagos e Roqueiros sofre por ter personagens
principais bons demais. Não pelo que se tenta dizer
a respeito deles, o psicologismo da rejeição paterna,
a submissão aos empresários pilantras e guarda-costas
violentos, os conflitos armados, as situações pelas
quais Keith Fulton e Louis Pepe os obrigam a passar.
Toda vez que estão em cena, os jovens atores Luke e
Harry Treadaway impregnam o filme de uma insanidade
cheia de carinho por seus excessos, e tudo o que essa
postura carrega consigo, uma carga de homoerotismo que
naturaliza as sugestões incestuosas como apenas mais
uma das ligações possíveis, a impossibilidade do controle
pela absoluta falta de previsão com que agem os irmãos,
tudo isso será negado pela narrativa sempre que um momento-problema
for sufocado por um depoimento do tipo “ele era muito
solitário” ou “havia muita raiva naqueles olhos”. Enquanto
figuras do passado, Barry e Tom não deixam nunca de
ser borrões de uma tentativa pobre de delimitação de
suas histórias. Quando são atualizados, quando falam
e se mostram por si mesmos, assumem esse zeliguianismo
torto, e se transformam naquilo que está ao seu lado,
um no outro, nos microfones, nas guitarras, no público
que bate cabeça com suas músicas. Ali Xifópagos e
Roqueiros consegue se libertar do peso de se filmar
punk com estética gospel, ali se aproxima de seu belo
último plano, porque nem conteúdo, nem cartesianismo
de personagem, nem obrigação de sentido, porque ali
é apenas pulso, entrega, vertigem.
Rodrigo de Oliveira
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