Em
A Flor do Meu Segredo, a personagem principal,
interpretada por Marisa Paredes, é uma escritora
que assina com o pseudônimo de Amanda Gris e publica
romances água com açúcar até
que seu próprio relacionamento desmorona e ela
não sabe o que fazer. O romance seguinte ganha
outros contornos, fora do registro de consumo fácil
em que seus outros livros eram tidos. A história:
uma mãe descobre que sua filha matou o pai quando
este tentava estuprá-la, e esconde o corpo do
marido no freezer do restaurante abandonado ao
lado de sua casa. Onze anos depois, Almodóvar
pega essa história "recusada" e transforma
em uma das tramas de Volver, filme cujo título
poderia muito bem caber em qualquer um de seus filmes
de 1995 pra cá. Pois os heróis de Almodóvar
ao menos nos últimos sete filmes
são figuras que retornam, que precisam se recuperar
de mortes ou acontecimentos traumáticos que lhes
diminuem a capacidade de agir. Não um cinema
pós-mortem, um cinema de mortos-vivos, mas um
cinema da volta à vida dos quase mortos. Um cinema
da convalescença e da volta à forma. E
é isso que comove nos filmes mais recentes de
Almodóvar: a capacidade que o ser humano tem
de superar seus entraves e voltar das suas dificuldades
mais extremas.
Em Volver, como o nome já indica, tudo
é função de voltar. Voltar ao mundo
dos vivos, como Irene (Carmen Maura), ou dar a volta
por cima, como Raimunda (Penélope Cruz), que
reconstrói sua vida reabrindo o mesmo restaurante
em que escondera o corpo de seu marido. Tem cineastas
que fazem suas carreiras inteiras como espécies
de gigolôs da depressão, encenando traumas
intransponíveis. Mas Almodóvar não
é desses. Um corpo de marido pode ser algo difícil
de se livrar, mas ainda assim, é possível
fazê-lo, e ainda assim enterrá-lo com dignidade.
Além dos percursos individuais de Irene e Raimunda,
temos, claro, a confraria das mulheres, que não
víamos em plena potência desde Tudo
Sobre Minha Mãe: mortos os homens, elas precisam
se reconciliar de um passado nebuloso e cheio de mistérios,
até refazerem uma partilha dos destinos e das
atribuições de culpa em busca de um novo
equilíbrio. Em Volver, o clima que se
instala é de uma paciência e de uma serenidade
impressionantes. Um clima de eterna suspensão
que é cadenciado por momentos em que se chora
(a canção "Volver" em particular)
e momentos em que se ri, sem que uma sensação,
alegria ou tristeza, venha atrapalhar outra. Os filmes
de Almodóvar evoluem numa simplicidade aparente
que, no fundo, é sustentada por uma arquitetura
minuciosa e complexa da evolução da narrativa.
Em Volver, como antes em Carne Trêmula
ou Tudo Sobre Minha Mãe, a cena mais importante
do ponto de vista da ação acontece logo
no começo do filme, e o prolongamento do filme
é visto apenas como uma lenta progressão
em busca de um novo equilíbrio.
Mas Volver, de certa forma, se distancia um pouco
dos moldes de feitura de suas três obras-primas
em seqüência (Carne Trêmula,
Tudo Sobre Minha Mãe, Fale Com Ela).
O clima de melodrama se desfaz um pouco no registro
do cotidiano, a comédia se insinua com mais força,
a riqueza na caracterização dos personagens
passa em momentos a interessar mais do que a trama propriamente
dita: Paula que não desgruda do celular com seus
SMS, Agustina com seus cigarros de maconha, os beijos
de despedida e os "no no no" ditos pelas protagonistas
ou as geniais personagens secundárias que Raimunda
encontra na rua e a ajudam a colocar o restaurante funcionando.
Almodóvar constrói sua arte dosando com
muita astúcia um respeito aos moldes clássicos
de construção narrativa (romance, teatro
e cinema) com uma atenção grande ao ainda
inexplorado, aos territórios ficcionais que ainda
restam a ocupar (que cineasta que se assume acima de
tudo como um contador de histórias, como é
o caso de Almodóvar, pode comparar-se nos "argumentos
originais" tão originais?). Volver sai da
matriz básica da narrativa de fantasmas, passando
por Henry James e Oscar Wilde, e instala uma outra reação,
mais ambígua: Irene aparece como fantasma, é
considerada pela narrativa como um fantasma, mas não
se comporta como um fantasma, e sim como uma pessoa
de carne e osso, com objetivos que são os de
uma pessoa de carne e osso. Filme fantástico,
comédia dramática ou drama humorístico?
Como todos sabem, Almodóvar não se contenta
com apenas um gênero, e é um verdadeiro
mestre em mesclá-los sem tirar a harmonia do
todo.
Em um determinado momento de Volver, passa na
televisão Belíssima, de Luchino
Visconti. Assim como em Carne Trêmula,
em que passava o Ensaio de um Crime de Buñuel,
a citação cinematográfica dá
a chave de decifração do filme. Penélope
Cruz se espelha em Anna Magnani, mesmo sem sabê-lo,
na confrontação ao marido e na tentativa
de criar um futuro melhor para sua filha. No percurso,
a heroína italiana de 1951 e a heroína
espanhola de 2006, corpulentas e exuberantes, fazendo
do improviso a arte de seus sucessos, conseguem ganhar
a consciência do estar-no-mundo, de tomar as rédeas
de sua própria vida. Esta entrega, este clima
de perdão absoluto, de um percurso da ficção
que só termina quando os personagens principais
podem enfim olhar para frente (ou, no caso de Irene,
para os outros, para suas filhas, para Agustina) é
o que encanta em Volver. Uma estética
da sinceridade, que encontra seu oposto na estética
da baixaria proporcionada pelo programa vespertino da
irmã de Agustina, equivalente espanhol de um
Casos de Família ou Márcia Goldschmidt
da vida. A televisão, em Volver, ocupa
o papel dos chacais, dos urubus, das figuras ávidas
por sensacionalismo. É contra isso que Almodóvar
arma sua estética, sua estratégia: esconder
o corpo do marido, ser fantasma, incendiar a casa de
dois adúlteros nada tem de escandaloso ou espetacular.
O espetáculo está em como o ser humano
consegue sobreviver apesar de tudo isso. E é
isso que encanta a cada encontro que temos com o cinema
de Pedro Almodóvar.
Ruy Gardnier
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