Gostaria
antes de tudo de esclarecer os motivos pelos quais sempre
falei a contragosto dos meus filmes em geral, e de Vagas
Estrelas da Ursa em particular. Quando falo de cinema,
prefiro limitar-me às opiniões de caráter
geral, mesmo sobre meu próprio trabalho. É
uma forma de respeito com o público, com o qual
muitos cometem uma injustiça crendo que se vá
ao cinema só para se divertir com uma história
e ver como irá terminar. Na realidade o espectador
de hoje paga o preço do ingresso também
para saber o que o autor quis dizer-lhe, e para o saber
a partir da tela, não de petições
de princípio.
No caso de Vagas Estrelas da Ursa creio todavia
ter batido todo recorde de laconismo mas, devendo respeitar
ao menos por uma vez as regras do jogo, que pedem ao
diretor dizer "o que é" o seu filme
e "por que" o fez, interessa-me acrescentar
alguma coisa de diferente. Por isso à primeira
pergunta respondo: este filme é um giallo
[gênero de narrativa policial tipicamente italiana,
nde] diverso do habitual. Falou-se de uma Electra
moderna, mas para explicar o que entendo neste caso
por giallo citarei uma outra tragédia
clássica: o Édipo Rei, um entre
os primeiros gialli já escritos, em que
o culpado é o personagem menos suspeito (o próprio
Édipo no início da tragédia se
define "o único estranho").
Pode dar-se que os espectadores da época sofocleana
deixassem o teatro convencidos de que o verdadeiro culpado
não fosse Édipo, mas o destino; ao espectador
contemporâneo porém esta cômoda explicação
não basta. Ele absolve Édipo só
enquanto se sente por sua vez envolvido, como numa co-autoria.
Assim no meu filme há mortos e supostos responsáveis,
mas não é dito quem são os verdadeiros
culpados e as verdadeiras vítimas.
Neste sentido a referência que eu mesmo fiz à
Orestéia é mais que tudo de conveniência.
Peguemos Sandra e Gilardini, por exemplo: uma se assemelha
a Electra pelo motivo que a move, o outro a Egisto porque
de fora do núcleo familiar, mas se trata de analogias
esquemáticas. Sandra tem o rosto do justiceiro,
Gilardini o do acusado, mas na realidade suas posições
poderiam também resultar invertidas. A ambigüidade
é o verdadeiro aspecto de todos os personagens
do filme, salvo um, o de Andrew, o marido de Sandra.
Ele gostaria de uma explicação lógica
para tudo, e em vez disso se choca com um mundo dominado
pelas mais profundas, contraditórias, inexplicáveis
paixões. Este personagem é o mais próximo
da consciência do espectador, que, por sua vez,
exatamente porque é incapaz de encontrar uma
solução lógica aos acontecimentos,
deveria encontrar-se ao final envolvido, obrigado a
se perguntar não tanto se a mãe e Gilardini
são responsáveis pela morte do professor,
ou Sandra responsável pela de Gianni, quanto
se houve culpa aí e quais, e se não se
esconde dentro de nós uma Sandra, um Gianni,
um Gilardini.
Em suma, um giallo, onde tudo é claro
no início e obscuro no final, como toda vez que
cada um inicia o difícil empreendimento de ler
dentro de si mesmo com a orgulhosa segurança
de não ter nada a aprender, e se encontra depois
com a angustiante problemática do não
ser.
Creio com isso ter introduzido o discurso sobre "por
que" fiz esse filme. Porque estou convencido, e
não de agora, que um entre os meios, e não
o menos importante, de observar a sociedade contemporânea
e os seus problemas, e tentar encontrar-lhes uma solução
não convencional nem estática, seja o
de estudar a intenção de certos de seus
personagens representativos, assim colocados e sob um
certo ângulo. Não compartilho por isso
a surpresa dos que, interessados em meu trabalho, perguntaram-se
como pude ter escolhido uma história intimista,
quase kammerspiel [literalmente do alemão,
"peça de câmara", peça
intimista de teatro ou de cinema muito freqüente
no começo do Século XX, nde], após
o fôlego histórico de filmes como Rocco
e Seus Irmãos e O Leopardo.
O fato é que, se tiver sido bem-sucedido em meu
objetivo, Vagas Estrelas da Ursa se parecerá
mais que quanto hoje se creia aos meus filmes precedentes
e constituirá a continuação de
um discurso que iniciei há vinte anos. Do velho
kammerspiel de Mayer e Lupu Pick terá
só a relativa unidade de tempo e de lugar, o
motivo dramático de tintas fortes, as abundâncias
dos primeiros planos, isto é, coisas de todo
acidentais.
A minha verdadeira atenção se voltou para
a consciência de Sandra, para o seu desconforto
moral, para o seu empenho em entender: as mesmas forças
que em seu tempo moveram Ntoni, Livià, Rocco
ou o príncipe Salina. E se em outro momento me
servi de um baile, de uma batalha, do fenômeno
da emigração interna, da conquista do
pão de cada dia, aqui me estimularam o antigo
enigma etrusco, Volterra, que é a perfeita expressão
dele, o complexo de superioridade da raça hebraica,
uma figura de mulher. Estes são os elementos
"históricos", de fundo, e substanciais
dentro de certos limites, pelos quais se move a vicissitude
neste meu filme. Assim como são elementos psicológicos
a conclamada exigência de justiça e de
verdade, a insatisfação sentimental e
sensual de Sandra, a sua crise matrimonial. E assim
como, enfim, constitui-se essencial elemento ambiental
o drama familiar (comum também aos personagens
dos meus filmes que citei antes).
Movida pelo "incidente" (o retorno à
casa paterna), a consciência de Sandra inicia
o difícil caminho em direção da
busca da verdade, uma verdade profundamente diversa
daquela em que ela acreditava estar solidamente enraizada,
uma verdade penosa e que talvez a um personagem como
ela não será nunca concedido conquistar
inteiramente.
De tal modo Sandra e as suas vítimas (ou os seus
perseguidores) encontram um lugar no âmbito da
sociedade contemporânea, ou descobrem que para
isso não há mais lugar. E ajudam, através
da sua tragédia, a melhor entender a realidade
de nosso momento histórico e as suas finalidades.
Se me é permitido retomar um argumento que me
foi caro no início da minha carreira, direi que
hoje mais que nunca me interessa um cinema antropomórfico.
Vagas Estrelas da Ursa é uma confirmação,
não uma exceção, desse meu interesse
dominante. Eis "por que" fiz este filme.
E agora algumas curiosidades, tanto para exaurir esta
apresentação oferecendo ao leitor poucas
informações simples.
No que concerne sua elaboração, isto é,
"do argumento ao filme", Vagas Estrelas
da Ursa foi talvez o mais trabalhoso dentre os meus
filmes. Como se poderá notar a partir dos textos,
muitas coisas mudaram também na fase de refilmagem.
Isto é derivado do fato que a matéria
do filme foi ganhando precisão dia a dia. Queria
dizer que para isto contribuíram num certo sentido
a estada em Volterra, o ambiente de palácio Inghirami
onde rodei a maior parte das cenas do filme, o lento
proceder do outono durante as refilmagens; e num outro
sentido o conhecimento dos atores, alguns dos quais
escolhidos no último momento.
Para a protagonista de fato tinha sempre pensado em
Claudia Cardinale. O personagem de Sandra, melhor dizendo,
tinha sido escrito a partir dela, e não só
por aquilo que de enigmático se esconde atrás
da aparente simplicidade desta atriz, mas também
pela aderência somática da sua figura (sua
cabeça, em especial) àquela que das mulheres
etruscas foi transmitida. Não foram problemas
aí nem mesmo para a minha cara amiga Marie Bell
no papel da mãe, nem para Ricci no de Gilardini.
Mais difícil resultou encontrar Gianni. Nunca
tinha trabalhado com Sorel, e — uma vez que o escolho
— tive que aprender a conhecê-lo, a adaptá-lo
ao personagem de Gianni, dia a dia. Ainda mais aventurosa
foi enfim a escolha de Michael Craig, chegado na Itália
na véspera do início dos trabalhos. Também
para ele se coloca o mesmo problema, mas creio que esta
complicada gestação não tenha sido
de todo acidental. Talvez estivesse na própria
natureza do filme nascer de modo trabalhoso, assim como
trabalhosamente se explicam os seus protagonistas. O
próprio título criou não poucos
problemas. Já contei como nasceu, acrescento
agora que estou satisfeito com ele como nunca, especialmente
depois que nos países estrangeiros ele foi adotado,
não obstante tenha sido considerado no início
muito difícil de mastigar.
E isto é tudo. O que pode dizer um diretor de
seu filme sem exceder em zelo ou em presunção?
Jean Renoir, que jovem foi um apaixonado ceramista,
costumava dizer que a cerâmica e o cinema têm
isto em comum: o autor sabe sempre aquilo que quer fazer,
mas uma vez colocada a obra no forno não sabe
nunca bem se aparecerá como ele quis, ou ao menos
em parte diversa. Eu deixei longamente no forno Vagas
Estrelas da Ursa. Longa foi a gestação
e, terminadas as refilmagens, longo o período
transcorrido antes de montá-lo. Ninguém
mais que eu está hoje ansioso para saber se este
"quiz de almas" terá tido o
seu ponto exato de cozimento.
E para terminar, um agradecimento a todos os meus colaboradores,
dos habitués (os meus assistentes, o cenógrafo,
a assistente de cenografia, a figurinista, o montador;
e sobretudo a roteirista) aos "noviços"
(o câmera, o diretor de produção
e o seu grupo, os técnicos de som). Devo a todos
eles se este filme complexo e tortuoso nasceu do modo
mais simples e sereno possível.
Luchino Visconti
(publicado
originalmente no livro Vaghe stelle dell’Orsa...,
Cappelli editore, Itália: Rocca San Casciano,
1965; tradução de Isabela Montello).
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