A
imagem dos créditos de abertura emerge, refletida, da
poça d’água: a linha do horizonte com a torre de transmissão
radiofônica à esquerda, enquanto em off se sintonizam
diversas estações. Imediatamente, Robert Altman estabelece
a atmosfera nostálgica e onírica que envolve A Última
Noite, reforçada pelo plano seguinte – em que a
câmera leve e etérea de Ed Lachman flutua para mostrar
o café, iluminado e multicolorido – e através da narração
de Guy Noir, paródia carinhosa aos filmes policiais
da Hollywood clássica. Melancólica e profundamente terna,
a tragicomédia sobre o canto do cisne do mais antigo
programa de auditório ainda no ar do rádio americano,
prestes a ser cancelado para que o estúdio se transforme
em estacionamento, também fala das mudanças que a entrada
em cena das grandes corporações financeiras trazem,
passando implacáveis por cima dos sentimentos alheios,
e de como aquele grupo de velhos amigos, “a prairie
home companion”, mantém-se unido apesar de tudo.
É a última apresentação do show há trinta e tantos anos
em cartaz (tempo que mesmo os participantes são incapazes
de precisar). Robert Altman alterna o programa que se
desenvolve – filma apenas o palco, jamais a platéia,
como em The Last Waltz, de Martin Scorsese, sobre
o derradeiro concerto da The Band –, com bate-papos
nos bastidores. São vários núcleos dramáticos que se
entrecruzam, bem ao gosto do cineasta de MASH,
Nashville, Short Cuts, O Jogador
e Assassinato em Gosford Park: as irmãs Johnson
– performances inspiradíssimas de Meryl Streep e de
Lily Tomlin –, os cowboys Dusty e Lefty – a música a
respeito de piadas infames é impagável –, o mestre de
cerimônias que esteve em todas as transmissões, a filha
de Yolanda que pensa em suicídio, e a misteriosa presença
de Virginia Madsen como Asphodel, vagando pelos corredores
e camarins, ora sendo vista, ora passando despercebida.
Da mesma forma que Jessica Lange em All That Jazz,
de Bob Fosse, Asphodel é um anjo, elemento lúdico e
mágico da narrativa: porém, ela não chega como emissária
da morte e do sofrimento, e sim para trazer paz e conforto
– a fim de que se perdoem as falhas, e que se lembrem
do amor e do carinho que o outro foi capaz de dedicar.
A Última Noite segue na mesma balada de Asphodel.
O diretor, que talvez, aos 81 anos, realiza seu filme-testamento,
prefere não mergulhar na amargura de se queixar do passado
ou no cinismo de se negar a compreender o presente –
como fazem Ruy Guerra em Veneno da Madrugada
e Arturo Riepstein em Carnaval de Sodoma –, mas
antes glorificar as ótimas lembranças guardadas na memória,
a beleza dos momentos vividos e compartilhados. Altman,
cuja veia crítica e irônica tantas vezes derrapou para
a crueldade, jamais foi tão caloroso e humano. Assim
como Manoel de Oliveira – em Um Filme Falado,
Porto da Minha Infância, Viagem ao Princípio
do Mundo –, o cineasta americano compreende que
o passado está vivo e cristalizado no espaço (nas construções,
nos objetos) e no discurso daqueles que testemunham
o escoar do tempo: a fala emocionada das irmãs ao dedicarem
as músicas para a mãe que as incentivou – e a conversa
que travam no camarim, frente ao espelho, se trata de
bela ode às lembranças em comum –; as fotos e os itens
quase imperceptíveis que a câmera de Ed Lachman devassa
suavemente ao longo do estúdio; o cenário no palco,
casa íntima e afetuosa, embora se esteja no rádio; o
teatro em si, com suas linhas clássicas; o busto de
F. Scott Fitzgerald, que parece a todos observar.
Intimidade: A Última Noite fala de amigos, é
feito por amigos. Inegavelmente, sentimentos de identificação
e de simpatia perpassam a obra, como se o próprio espectador
fizesse parte da confraria e fosse chamado ao sonho.
Curioso que até o interventor, que gera dúvidas, apreensões
e dor pela iminência do fim, parece também enfeitiçado
pelo doce saudosismo, enquanto assiste ao show, quiçá
recordando da banda que teve na juventude. Altman entende
que se trata de um homem como os demais, com acertos
e erros, alegrias e tristezas, medos e expectativas,
de modo que sua morte em nada altera o destino trágico
do programa, pois o sistema hiper-racionalizado que
a economia humana criou para nos servir acabou se sobrepondo
e nos engolindo, através dos grandes conglomerados financeiros.
Não fosse Asphodel e A Última Noite cairia no
pessimismo que o medo e a desesperança acarretam. Ela,
ao contrário, permite que Altman aceite a morte e a
inevitabilidade do fim, olhando com afeto para os tempos
que se foram e para as lembranças que continuam.
Paulo Ricardo de Almeida
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