Michael
Winterbottom sempre faz um filme inteiramente diferente
do outro. Seus filmes mais recentes têm em comum
o fato de tentar cativar uma atenção maior
através de um conteúdo abertamente pop
(A Festa Nunca Termina, Nove Canções),
de temáticas consideradas tabu (sexo explícito
no mesmo Nove Canções) ou o tratamento
de questões políticas mundialmente relevantes
(Neste Mundo). O Caminho para Guantanamo toma
este último caminho, fazendo uma denúncia
pungente da violação da liberdade individual
de três inocentes jovens britânicos de ascendência
árabe que são presos no Afeganistão,
torturados, humilhados e depois transportados para a
base americana de Guantanamo, em Cuba, onde mais uma
vez passarão por um tratamento vexatório
e serão destituídos de suas privacidades,
do exercício religioso e até da comunicação
com outros seres humanos. Tudo isso por simples presunção
de culpa, sem o menor indício de participação
terrorista a não ser o fato de que estavam no
lugar errado na hora errada.
Naturalmente, é muito louvável e digno
chamar a atenção do mundo através
da arte para uma realidade que a mídia dos países
pró-coalisão insiste em jogar para baixo
do tapete. Mas como é possível
defender um filme que trata seus personagens como se
fossem meros slogans de injustiça, se aproveitando
mais dos efeitos espetaculosos de denúncia do
que tentando restituir-lhes ficcionalmente a individualidade
e o tempo próprio que lhes foi retirado? É
nesse sentido que O Caminho para Guantanamo se
torna particularmente obsceno, nesse fetiche pela reconstituição
feita com câmera tremida, a fim de dar a sensação
de "documentário", com os testemunhos
em frente à câmera entremeados com as cenas
ficcionais que ganham "veracidade" a partir
das palavras dos personagens, com as reencenadas cenas
de tortura física e psicológica que servem
mais a um propósito sensacionalista do que a
um tratamento que respeite a liberdade do espectador.
Michael Winterbottom, com sua estética de alto
impacto (da mesma forma que se fala ginástica
de alto impacto), está mais interessado em fazer
engolir uma realidade que, aliás, é
uma que merece ser divulgada e conhecida por um grande
número do que em colocar alguma coisa,
qualquer coisa, em questão. Daí a eficiência
de mais recentes
como entretenimento político (no que o filme
funciona até bem, ficamos com raiva dos inimigos
e nos compadecemos com os amigos) mas a completa insuficiência
como filme político.
Existe alguns poucos momentos interessantes, como o
soldado ouvindo os prisioneiros improvisarem um rap
sobre estar em Guantanamo, ou os risos provocados pela
completa falta de informação por parte
do serviço de inteligência americano. São
momentos que criam alguma espécie de densidade
à ficção, uma densidade que parece
ser confiscada pelas estratégias predominantes
de denúncia documental que o filme tenta estabelecer
desde seu princípio. O
Caminho para Guantanamo é mais um desses filmes
da série "inocente sendo pego pelo turbilhão
dos acontecimentos", um tipo de filme que
já revela toda sua insuficiência porque
coloca a ênfase mais na injustiça da má-atribuição
de culpa do que nas atitudes dos repressores
é como se o filme dissesse que se eles fossem
culpados, tudo bem! Mas, ao mesmo tempo, é um
esquema de muito fácil identificação,
já que a princípio todo espectador se
considera um inocente e se identifica porque isso poderia
ter acontecido com ele. É claro que isso obscurece
todo tipo de questionamento político, faz do
filme "de tema político" simplesmente
mais um dos casos da ficção manipulatória
tão freqüente nos filmes ruins (mas um caso
particularmente mais problemático, porque se
faz passar por importante) e acaba chamando o espectador
mais pelo estômago do que pelo cérebro.
Fracasso, então. Nem tanto. No fundo, o que Michael
Winterbottom quer é chamar atenção.
Ruy Gardnier
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