Provavelmente,
não sem razão, quando no futuro a historiografia do
cinema brasileiro se debruçar sobre a produção realizada
entre a década de 90 e o final da primeira década do
século XXI, irá considerar Sonhos e Desejos como
mais um dentro de uma nova leva de filmes ambientados
no período da ditadura militar. Assim como a cinematografia
argentina dos anos 80 para cá, a cinematografia brasileira
do mesmo período volta e meia circula por essa ambiência
histórica. Ambiência talvez seja o melhor termo a ser
empregado a esses filmes, porque na maioria das vezes,
os anos 60/70 são utilizados apenas como pano de fundo,
como clima ou como uma simples roupagem a vestir os
personagens. A vida pessoal e a individualidade dos
protagonistas são postas em primeiro plano e o principal
conflito reside justamente no embate entre esses fatores
e o painel político em vigor. O que se pretende afirmar
é: como a História e a conjuntura social, política e
econômica interferem e modificam a vida e as relações
afetivas de cada um.
Como o Homem é em primeira instância um ser social,
um produto essencialmente histórico e fruto de seu tempo,
logo, a sua subjetividade e a sua experiência de vida
sempre estará subordinada ou regida pelo seu contexto.
Essa concepção, embora preponderante nessas realizações,
varia de gradação dependendo do filme. Se em Para
Frente Brasil (Roberto Farias, 1982) vemos um homem
comum, apolítico, fechado em seu mundo pessoal e familiar
ser capturado pela repressão por engano simplesmente
porque estava no lugar errado e na hora errada, em Cabra
Cega (Tony Venturi, 2004) encontramos um casal de
guerrilheiros confinados em um aparelho, articulando
suas subjetividades à máxima potência. Grosso modo,
podemos afirmar que se os primeiros filmes brasileiros
sobre a ditadura militar, contemporâneos ao período
da redemocratização – Para Frente Brasil, O
Bom Burguês (Oswaldo Caldeira, 1979) –, concebem
o momento histórico como uma ruptura maior na vida de
seus personagens na medida em que eles a princípio estavam
à parte desse processo, filmes recentes como Ação
entre Amigos (Beto Brant, 1998), Cabra Cega
e Sonhos e Desejos executam o movimento inverso.
Nesses três filmes, os protagonistas são indivíduos
politizados, conscientemente engajados, são corpos que
se movimentam contra a corrente e que se chocam contra
a ordem instituída. Porém, sendo parte de grupos armados
contra o regime militar, todos eles são tomados pela
superioridade de suas questões pessoais em detrimento
de seus papéis como agentes da revolução. Em Ação
entre Amigos, um guerrilheiro dos anos 60, agora
um militante do PT dos anos 90, praticamente obriga
os seus antigos companheiros a participarem de um ritual
de vingança contra o homem que os torturou. O protagonista
várias vezes frisa que a sua atitude não tem nada a
ver com política e que ela é unicamente pessoal. Em
Cabra Cega e em Sonhos e Desejos, os personagens
dos guerrilheiros são retratados dentro de um esconderijo
clandestino, local onde se desdobram relações amorosas.
Temos um casal no primeiro caso e um triângulo amoroso
no segundo.
Em um primeiro momento (anos 80), a política e a História
entram abruptamente na casa da “família brasileira”
como uma pedra que arrebenta a vidraça da janela. Metáfora
que nos lembra a cena de Os Sonhadores (Bernardo
Bertolluci, 2004) em que o maio de 68 invade pela janela
a casa onde três adolescentes abastados discutem sexo,
política e cinema. Os dois filmes brasileiros da era
Embrafilme anteriormente mencionados assumem essa perspectiva
e estão filiados a um certo cinema político de gênero,
também classificado como Cinema Político Espetacular.
Essa tendência surgida ainda na década de 60, e possuindo
como principais representantes diretores europeus (Costa-Gravas,
Elio Petri, Francesco Rossi), foi acolhida no contexto
da redemocratização latino-americana, notadamente na
Argentina e no Brasil. Conectados a nomes como Roberto
Farias, Héctor Babenco e Antonio Calmon, encontramos,
em certa medida, diretores argentinos como Luis Puenzo
(A História Oficial, 1983) e Héctor Olivera (La
Noche de los Lápices, 1987). Nos filmes brasileiros
recentes sobre o regime militar, embora constatemos
uma redução do espetacular e uma ênfase no enfoque das
relações humanas, nos deparamos com exceções: O que
é isso Companheiro? (Bruno Barreto, 1997) e Zuzu
Angel (Sergio Resende, 2006). No filme de Bruno
Barreto, a operação efetivada foi a de esvaziar qualquer
conteúdo político, utilizando para isso, além dos recursos
do espetáculo, a super psicologização dos personagens.
Quem não se lembra da risível crise existencial do torturador?
No filme de Rezende, vemos o retorno da velha fórmula:
mulher apolítica da classe alta se aproxima da realidade
motivada por uma circunstância pessoal. A politização
e o engajamento de Zuzu Angel só foi possível por causa
da morte de seu filho.
O choque entre vida afetiva e participação política,
individualidade e projeto coletivo, visto pelo ponto
de vista do pessoal, foi demarcado com cores mais fortes
nessa nova leva de filmes sobre a ditadura. Esse embate
e esse ponto de vista serão os alicerces de Sonhos
e Desejos. O primeiro longa-metragem de Marcelo
Santiago situará os seus três personagens principais
entre o desejo e a utopia. A sexualidade e o desejo
são trabalhados aqui como a expressão da individualidade
e a utopia como o sonho coletivo de uma geração. A coexistência
desses dois elementos em um mesmo indivíduo e a interferência
que um exerce sobre o outro são problematizados. O conceito
sexualidade versus comprometimento social é anunciado
desde a abertura de créditos, sendo facilmente compreendido.
O grande problema é que essa idéia é repetida exaustivamente
e, o que é pior, com uma sutileza de mamute. Em um flash
back de Cristiana (Mel Lisboa), é narrado como ela
se apaixonou por Saulo (Felipe Camargo). O professor
de literatura profere um discurso acerca da importância
do compromisso coletivo para os estudantes. Logo após
declamar suas palavras de ordem, Saulo vê a universidade
sendo invadida por militares e em resposta foge e se
esconde com Cristiana em uma salinha escura. Os dois,
mesmo com os soldados no lado de fora, se beijam e iniciam
ali mesmo uma relação sexual. Outras situações como
essa, que comprovam a mão pesada da direção, propagam
com a mesma “sutileza” a idéia e o tema central do filme.
No término de Sonhos e Desejos, a individualidade
triunfa. Se o fio condutor da narrativa estava na voz
over de Mel Lisboa, pela qual ouvimos a correspondência
trocada entre Cristiana (o codinome de guerrilheira)
e Clara (o nome original), na seqüência final vemos
a identidade verdadeira prevalecer. A guerrilheira e
seu amante assumem os seus verdadeiros nomes como um
gesto de libertação. A imagem do trem partindo, inserida
em uma paisagem bucólica e que parece não ter fim, nos
sugere a visualização de um bom destino para o casal.
A luta armada foi, para Clara, mais um de seus caprichos
de menina mimada. Um projeto coletivo que ela assumiu
como um subterfúgio para um projeto individual (ficar
ao lado de Saulo). A sua aderência à militância foi
uma moda, um biquíni da grife mais famosa e que se ela
não comprasse logo, passaria por desatualizada perante
as suas coleguinhas. Essa é a sensação que nos transmite
Sonhos e Desejos. A reunião de atores conhecidos,
inseridos em um ambiente repleto de clichês dos anos
60: uma moda para ser comprada e ponto final.
Estevão Garcia
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