SONHOS E DESEJOS
Marcelo Santiago, Brasil, 2006

Provavelmente, não sem razão, quando no futuro a historiografia do cinema brasileiro se debruçar sobre a produção realizada entre a década de 90 e o final da primeira década do século XXI, irá considerar Sonhos e Desejos como mais um dentro de uma nova leva de filmes ambientados no período da ditadura militar. Assim como a cinematografia argentina dos anos 80 para cá, a cinematografia brasileira do mesmo período volta e meia circula por essa ambiência histórica. Ambiência talvez seja o melhor termo a ser empregado a esses filmes, porque na maioria das vezes, os anos 60/70 são utilizados apenas como pano de fundo, como clima ou como uma simples roupagem a vestir os personagens. A vida pessoal e a individualidade dos protagonistas são postas em primeiro plano e o principal conflito reside justamente no embate entre esses fatores e o painel político em vigor. O que se pretende afirmar é: como a História e a conjuntura social, política e econômica interferem e modificam a vida e as relações afetivas de cada um.

Como o Homem é em primeira instância um ser social, um produto essencialmente histórico e fruto de seu tempo, logo, a sua subjetividade e a sua experiência de vida sempre estará subordinada ou regida pelo seu contexto. Essa concepção, embora preponderante nessas realizações, varia de gradação dependendo do filme. Se em Para Frente Brasil (Roberto Farias, 1982) vemos um homem comum, apolítico, fechado em seu mundo pessoal e familiar ser capturado pela repressão por engano simplesmente porque estava no lugar errado e na hora errada, em Cabra Cega (Tony Venturi, 2004) encontramos um casal de guerrilheiros confinados em um aparelho, articulando suas subjetividades à máxima potência. Grosso modo, podemos afirmar que se os primeiros filmes brasileiros sobre a ditadura militar, contemporâneos ao período da redemocratização – Para Frente Brasil, O Bom Burguês (Oswaldo Caldeira, 1979) –, concebem o momento histórico como uma ruptura maior na vida de seus personagens na medida em que eles a princípio estavam à parte desse processo, filmes recentes como Ação entre Amigos (Beto Brant, 1998), Cabra Cega e Sonhos e Desejos executam o movimento inverso. Nesses três filmes, os protagonistas são indivíduos politizados, conscientemente engajados, são corpos que se movimentam contra a corrente e que se chocam contra a ordem instituída. Porém, sendo parte de grupos armados contra o regime militar, todos eles são tomados pela superioridade de suas questões pessoais em detrimento de seus papéis como agentes da revolução. Em Ação entre Amigos, um guerrilheiro dos anos 60, agora um militante do PT dos anos 90, praticamente obriga os seus antigos companheiros a participarem de um ritual de vingança contra o homem que os torturou. O protagonista várias vezes frisa que a sua atitude não tem nada a ver com política e que ela é unicamente pessoal. Em Cabra Cega e em Sonhos e Desejos, os personagens dos guerrilheiros são retratados dentro de um esconderijo clandestino, local onde se desdobram relações amorosas. Temos um casal no primeiro caso e um triângulo amoroso no segundo.

Em um primeiro momento (anos 80), a política e a História entram abruptamente na casa da “família brasileira” como uma pedra que arrebenta a vidraça da janela. Metáfora que nos lembra a cena de Os Sonhadores (Bernardo Bertolluci, 2004) em que o maio de 68 invade pela janela a casa onde três adolescentes abastados discutem sexo, política e cinema. Os dois filmes brasileiros da era Embrafilme anteriormente mencionados assumem essa perspectiva e estão filiados a um certo cinema político de gênero, também classificado como Cinema Político Espetacular. Essa tendência surgida ainda na década de 60, e possuindo como principais representantes diretores europeus (Costa-Gravas, Elio Petri, Francesco Rossi), foi acolhida no contexto da redemocratização latino-americana, notadamente na Argentina e no Brasil. Conectados a nomes como Roberto Farias, Héctor Babenco e Antonio Calmon, encontramos, em certa medida, diretores argentinos como Luis Puenzo (A História Oficial, 1983) e Héctor Olivera (La Noche de los Lápices, 1987). Nos filmes brasileiros recentes sobre o regime militar, embora constatemos uma redução do espetacular e uma ênfase no enfoque das relações humanas, nos deparamos com exceções: O que é isso Companheiro? (Bruno Barreto, 1997) e Zuzu Angel (Sergio Resende, 2006). No filme de Bruno Barreto, a operação efetivada foi a de esvaziar qualquer conteúdo político, utilizando para isso, além dos recursos do espetáculo, a super psicologização dos personagens. Quem não se lembra da risível crise existencial do torturador? No filme de Rezende, vemos o retorno da velha fórmula: mulher apolítica da classe alta se aproxima da realidade motivada por uma circunstância pessoal. A politização e o engajamento de Zuzu Angel só foi possível por causa da morte de seu filho.

O choque entre vida afetiva e participação política, individualidade e projeto coletivo, visto pelo ponto de vista do pessoal, foi demarcado com cores mais fortes nessa nova leva de filmes sobre a ditadura. Esse embate e esse ponto de vista serão os alicerces de Sonhos e Desejos. O primeiro longa-metragem de Marcelo Santiago situará os seus três personagens principais entre o desejo e a utopia. A sexualidade e o desejo são trabalhados aqui como a expressão da individualidade e a utopia como o sonho coletivo de uma geração. A coexistência desses dois elementos em um mesmo indivíduo e a interferência que um exerce sobre o outro são problematizados. O conceito sexualidade versus comprometimento social é anunciado desde a abertura de créditos, sendo facilmente compreendido. O grande problema é que essa idéia é repetida exaustivamente e, o que é pior, com uma sutileza de mamute. Em um flash back de Cristiana (Mel Lisboa), é narrado como ela se apaixonou por Saulo (Felipe Camargo). O professor de literatura profere um discurso acerca da importância do compromisso coletivo para os estudantes. Logo após declamar suas palavras de ordem, Saulo vê a universidade sendo invadida por militares e em resposta foge e se esconde com Cristiana em uma salinha escura. Os dois, mesmo com os soldados no lado de fora, se beijam e iniciam ali mesmo uma relação sexual. Outras situações como essa, que comprovam a mão pesada da direção, propagam com a mesma “sutileza” a idéia e o tema central do filme.

No término de Sonhos e Desejos, a individualidade triunfa. Se o fio condutor da narrativa estava na voz over de Mel Lisboa, pela qual ouvimos a correspondência trocada entre Cristiana (o codinome de guerrilheira) e Clara (o nome original), na seqüência final vemos a identidade verdadeira prevalecer. A guerrilheira e seu amante assumem os seus verdadeiros nomes como um gesto de libertação. A imagem do trem partindo, inserida em uma paisagem bucólica e que parece não ter fim, nos sugere a visualização de um bom destino para o casal. A luta armada foi, para Clara, mais um de seus caprichos de menina mimada. Um projeto coletivo que ela assumiu como um subterfúgio para um projeto individual (ficar ao lado de Saulo). A sua aderência à militância foi uma moda, um biquíni da grife mais famosa e que se ela não comprasse logo, passaria por desatualizada perante as suas coleguinhas. Essa é a sensação que nos transmite Sonhos e Desejos. A reunião de atores conhecidos, inseridos em um ambiente repleto de clichês dos anos 60: uma moda para ser comprada e ponto final.


Estevão Garcia