A RAINHA
Stephen Frears, The Queen, Inglaterra/França/Itália, 2006

Há quanto tempo não víamos um filme verdadeiramente bom de Stephen Frears? Os mais entusiastas diriam uns dez, os não-fanáticos diriam uns quinze. Em todo caso, em nenhum de seus filmes desde Os Imorais víamos a elegância e a concisão de feitura, nada de um estilo definido que fazia de Sammy e Rosie e Minha Adorável Lavanderia belos filmes, nada da precisa análise de aristocracia e dos jogos de sedução observada em Ligações Perigosas. Enfim, assistindo a coisas como Mary Reilly, Terra de Paixões, Coisas Belas e Sujas ou o desastroso Liam, é impossível culpar alguém que tenha proclamado a incapacidade do diretor de realizar novamente algum bom filme. Mas eis que o velho Frears retorna e entrega a nós uma obra fina, sofisticada, sutil e de uma doce e cotundente percepção histórica.

A Rainha aparece numa safra de filmes que, de uma forma ou outra, utilizam a ficção para retrabalhar uma vivência política recente com um grau de frontalidade pouco comum em filmes do gênero (tanto pela veemência como pela pouca distância no tempo que separa os eventos de suas dramatizações). Temos O Crocodilo de Nanni Moretti exorcizando os anos em que Berlusconi tomou de assalto o imaginário da população italiana, temos Bamako de Abderrahmane Sissako instaurando um tribunal para julgar a atuação das instituições financeiras internacionais na pauperização da África contemporânea, e aqui temos Stephen Frears que na Inglaterra revive a repercussão da morte da princesa Diana na vida inglesa para tecer um fino retrato não da rainha Elizabeth, como se poderia acreditar, mas de como é a cultura da publicidade e do escândalo que dá as caras na vida da sociedade de hoje, e não mais a nobreza ou os antigos códigos de pudor e tradição.

O filme situa-se entre a eleição de Tony Blair para Primeiro Ministro e a repercussão pública da morte da Princesa Diana. Nesse drama, os personagens são a família real, de um lado, e Tony Blair e seus assessores, de outro. O que está em jogo é o coração do povo britânico. Existe uma astúcia imensa da parte de Stephen Frears em organizar o tabuleiro dessa forma. De qualquer outra, o filme seria apenas uma fórmula fácil para ridicularizar uma instituição francamente anacrônica como a coroa britânica (não que Frears não faça suas tiradas, ele faz). Mas, do jeito que A Rainha se estrutura, o filme vira um jogo entre o calculismo populista e aproveitador de um homem sem sentimentos além da auto-promoção – Tony Blair, evidentemente – e uma mulher que se comporta de acordo com seus sentimentos e sem estardalhaço, como mandam as boas normas de educação em que foi criada. A situação se complica: um noticiário, pouco se importando com os procedimentos padrão de hasteamento, lamenta que a bandeira britânica não está estendida a meio-pau no Palácio de Buckingham, e isso cria uma celeuma que vem somar-se ao fato de que a rainha nunca gostou de Diana. Enchurrada de manifestações, notícias e pesquisas de imprensa que mostram uma enorme queda de popularidade em relação à coroa da Inglaterra. Que fazer? Resta algo além de render-se ao culto oportunista dos shows de televisão e dos happenings midiáticos?

Stephen Frears faz uma coisa que parece simples e recorrente, mas é complicada e só acontece de vez em quando: ele filma uma mudança histórica, uma alteração da sensibilidade de um povo ao armar o teatrinho de uma rainha que sempre foi admirada por sua reserva e senso de ordem, mas agora é conclamada a expor-se em praça pública, na arena, para digladiar com os leões. Ao mesmo tempo, vemos a eclosão de dois tempos, o da antiga nobreza, em que os mortos da família real são enterrados com séquito de oficiais do exército e planejados anos à frente, e o da nova nobreza, ancorada na devoção cega do público e mediada pela presença massiva nos meios de comunicação, baseada na fotogenia e nas assessorias de imprensa, em quantos popstars é possível chamar para transformar um enterro numa atração mundial (o filme tira sua onda para cima de Elton John e do cortejo de celebridades). É um novo mundo, com outras regras, um mundo de valores fluidos e de moralidade mais fluida ainda. Sobrevive quem tiver a maior cara de pau.

Em A Rainha, o grande vilão não é Elizabeth, como também não é Tony Blair. É, poderíamos dizer, o imperativo dos novos tempos, que fazem com que uma matéria estúpida de televisão ganhe ares de denúncia, e o povo que delira a partir dela vir às ruas e exigir a presença da rainha em luto público. Se o público pede uma rainha-autômato, que se mexeria quando os outros quisessem, Stephen Frears compõe junto com Helen Mirren uma mulher frágil, obrigada a sair de sua posição pessoal e histórica, mudar de humor e sensibilidade. Seu ideal é o cervo, que corre as campinas da propriedade real em plena liberdade, até ser assassinado por um rifle. Como o cervo, ela terminará devorada pelos leões da multidão, perdendo toda sua autonomia em prol da manutenção da popularidade da coroa. Ela sofre, e esse sofrimento, diante da incompreensão e estupidez que ronda o affair Diana, torna-a a única figura com alguma simpatia de todo o imbróglio. Tardiamente, ela aprenderá a jogar o jogo, mais como capitulação do que como gesto populista. Quanto a Tony Blair, Frears sabe injetar toda sua acidez construindo um personagem que sabe tranqüilamente manipular uma multidão, uma figura obcecada e seduzida pelo poder, que como bom arrivista sabe mudar de opinião de acordo com a posição que ocupa. Tempos novos exigem novas figuras políticas? Se sim, é preciso que a arte encontre novas maneiras de retrabalhar o imaginário da política na sociedade. O mínimo a dizer de A Rainha é que o filme faz sua parte com muito garbo e inteligência.

Ruy Gardnier