Há
quanto tempo não víamos um filme verdadeiramente
bom de Stephen Frears? Os mais entusiastas diriam uns
dez, os não-fanáticos diriam uns quinze.
Em todo caso, em nenhum de seus filmes desde Os Imorais
víamos a elegância e a concisão
de feitura, nada de um estilo definido que fazia
de Sammy e Rosie e Minha Adorável Lavanderia
belos filmes, nada da precisa análise de aristocracia
e dos jogos de sedução observada em Ligações
Perigosas. Enfim, assistindo a coisas como Mary
Reilly, Terra de Paixões, Coisas
Belas e Sujas ou o desastroso Liam, é
impossível culpar alguém que tenha proclamado
a incapacidade do diretor de realizar novamente algum
bom filme. Mas eis que o velho Frears retorna e entrega
a nós uma obra fina, sofisticada, sutil e de
uma doce e cotundente percepção histórica.
A Rainha aparece numa safra de filmes que, de
uma forma ou outra, utilizam a ficção
para retrabalhar uma vivência política
recente com um grau de frontalidade pouco comum em filmes
do gênero (tanto pela veemência como pela
pouca distância no tempo que separa os eventos
de suas dramatizações). Temos O Crocodilo
de Nanni Moretti exorcizando os anos em que Berlusconi
tomou de assalto o imaginário da população
italiana, temos Bamako de Abderrahmane Sissako
instaurando um tribunal para julgar a atuação
das instituições financeiras internacionais
na pauperização da África contemporânea,
e aqui temos Stephen Frears que na Inglaterra revive
a repercussão da morte da princesa Diana na vida
inglesa para tecer um fino retrato não da rainha
Elizabeth, como se poderia acreditar, mas de como é
a cultura da publicidade e do escândalo que dá
as caras na vida da sociedade de hoje, e não
mais a nobreza ou os antigos códigos de pudor
e tradição.
O filme situa-se entre a eleição de Tony
Blair para Primeiro Ministro e a repercussão
pública da morte da Princesa Diana. Nesse drama,
os personagens são a família real, de
um lado, e Tony Blair e seus assessores, de outro. O
que está em jogo é o coração
do povo britânico. Existe uma astúcia imensa
da parte de Stephen Frears em organizar o tabuleiro
dessa forma. De qualquer outra, o filme seria apenas
uma fórmula fácil para ridicularizar uma
instituição francamente anacrônica
como a coroa britânica (não que Frears
não faça suas tiradas, ele faz). Mas,
do jeito que A Rainha se estrutura, o filme vira
um jogo entre o calculismo populista e aproveitador
de um homem sem sentimentos além da auto-promoção
Tony Blair, evidentemente e uma mulher
que se comporta de acordo com seus sentimentos e sem
estardalhaço, como mandam as boas normas de educação
em que foi criada. A situação se complica:
um noticiário, pouco se importando com os procedimentos
padrão de hasteamento, lamenta que a bandeira
britânica não está estendida a meio-pau
no Palácio de Buckingham, e isso cria uma celeuma
que vem somar-se ao fato de que a rainha nunca gostou
de Diana. Enchurrada de manifestações,
notícias e pesquisas de imprensa que mostram
uma enorme queda de popularidade em relação
à coroa da Inglaterra. Que fazer? Resta algo
além de render-se ao culto oportunista dos shows
de televisão e dos happenings midiáticos?
Stephen Frears faz uma coisa que parece simples e recorrente,
mas é complicada e só acontece de vez
em quando: ele filma uma mudança histórica,
uma alteração da sensibilidade de um povo
ao armar o teatrinho de uma rainha que sempre foi admirada
por sua reserva e senso de ordem, mas agora é
conclamada a expor-se em praça pública,
na arena, para digladiar com os leões. Ao mesmo
tempo, vemos a eclosão de dois tempos, o da antiga
nobreza, em que os mortos da família real são
enterrados com séquito de oficiais do exército
e planejados anos à frente, e o da nova nobreza,
ancorada na devoção cega do público
e mediada pela presença massiva nos meios de
comunicação, baseada na fotogenia e nas
assessorias de imprensa, em quantos popstars é
possível chamar para transformar um enterro numa
atração mundial (o filme tira sua onda
para cima de Elton John e do cortejo de celebridades).
É um novo mundo, com outras regras, um mundo
de valores fluidos e de moralidade mais fluida ainda.
Sobrevive quem tiver a maior cara de pau.
Em A Rainha, o grande vilão não
é Elizabeth, como também não é
Tony Blair. É, poderíamos dizer, o imperativo
dos novos tempos, que fazem com que uma matéria
estúpida de televisão ganhe ares de denúncia,
e o povo que delira a partir dela vir às ruas
e exigir a presença da rainha em luto público.
Se o público pede uma rainha-autômato,
que se mexeria quando os outros quisessem, Stephen Frears
compõe junto com Helen Mirren uma mulher frágil,
obrigada a sair de sua posição pessoal
e histórica, mudar de humor e sensibilidade.
Seu ideal é o cervo, que corre as campinas da
propriedade real em plena liberdade, até ser
assassinado por um rifle. Como o cervo, ela terminará
devorada pelos leões da multidão, perdendo
toda sua autonomia em prol da manutenção
da popularidade da coroa. Ela sofre, e esse sofrimento,
diante da incompreensão e estupidez que ronda
o affair Diana, torna-a a única figura com alguma
simpatia de todo o imbróglio. Tardiamente, ela
aprenderá a jogar o jogo, mais como capitulação
do que como gesto populista. Quanto a Tony Blair, Frears
sabe injetar toda sua acidez construindo um personagem
que sabe tranqüilamente manipular uma multidão,
uma figura obcecada e seduzida pelo poder, que como
bom arrivista sabe mudar de opinião de acordo
com a posição que ocupa. Tempos novos
exigem novas figuras políticas? Se sim, é
preciso que a arte encontre novas maneiras de retrabalhar
o imaginário da política na sociedade.
O mínimo a dizer de A Rainha é
que o filme faz sua parte com muito garbo e inteligência.
Ruy Gardnier
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