O
nome não deixa muito claro, mas Pro Dia Nascer
Feliz é um filme sobre educação
no Brasil. E, claro, num país tão
socialmente contrastado e de dimensões continentais
como o Brasil, tudo é questão do recorte
que se faz, e de como se operam as interrelações
dos lugares e das situações específicas
que se vai registrar. Nesse primeiro desafio, João
Jardim se sai formidavelmente bem. A tentação
de chamar a atenção para as patentes diferenças
geográficas e de classe é tão grande
quanto fácil, e a idéia de fazer um uso
"dialético" montando e integrando lugares
e problemáticas heterogêneas cairia rapidamente
num denuncismo confortável e no lugar-comum.
E o que Pro Dia Nascer Feliz faz? Analisa cada
segmento por si mesmo, criando quatro blocos homogêneos
de instalação num ambiente, filmando os
lugares, tomando depoimentos de alunos e professores,
enfim, criando um esforço de compreensão
a partir do que se filma, com um interesse maior no
que está diante da câmera do que com a
tese que está embaixo do braço. Assim,
vemos inicialmente as precárias condições
de uma escola na cidade de Manari, em Pernambuco, depois
somos transportados para uma escola em Duque de Caxias,
Rio de Janeiro, em seguida vamos para Itaquaquecetuba,
no interior de São Paulo, e por fim paramos numa
escola de elite da cidade de São Paulo.
Vemos diferenças? Claro. Uma escola de cidade
pequena enfrenta problemas que uma escola de cidade
grande não enfrenta, as crianças numa
cidade pobre vivem dificuldades diferentes daquelas
de uma cidade rica. Mas o que o filme mostra com extrema
competência é que o dinheiro não
faz necessariamente uma criança mais feliz do
que outra, assim como uma educação mais
qualificada pode ocasionar tantas oportunidades na vida
quanto criar pacientes de consultórios de psicanálise.
Assim, vemos a aluna-poeta de Manari que consegue construir
para si, com todas as circunstâncias contra, uma
vida esclarecida, ao passo que algumas alunas de um
colégio rico do Alto de Pinheiros lutam para
saber o que querem da vida. Cada segmento é afrontado
por seus próprios problemas. Alguns dizem respeito
à falta de condições, mas todos
são afetados pelo modo de vida das redondezas
e pelas circunstâncias específicas dos
bairros e cidades em que estão situados. Assim,
a escola de Caxias vive o problema da criminalidade
e a escola rica de São Paulo não consegue
viver com o fato de ser um bunker de riqueza
em meio à pobreza e falta de meios da maior parte
do país. Cada situação é
respeitada, sem tecer hierarquias ou expor ao ridículo
algum dos lados. Claro, existe a tendência de
espectador em empatizar com os pobres e minimizar os
problemas dos ricos, considerados como fúteis
(o que provoca por vezes reações monstruosas
por parte da platéia), mas João Jardim
consegue orquestrar seu filme a partir de uma estrutura
que deixa cada segmento viver sua própria vida,
respirar sua própria respiração.
Numa segunda parte, o filme intercala e integra seus
segmentos a partir da questão da paternidade
(o que revela pais ausentes tanto em Manari quanto no
Alto de Pinheiros, ainda que a ausência se dê
por razões diversas) e, em seguida, para a questão,
igualmente paterna, do Estado e dos contrastes sociais
(plano aéreo clichê dos arranha-céus
e das favelas horizontais de Sâo Paulo), e ao
mesmo tempo o filme toca na questão da violência
dos jovens, que também se dá de formas
heterogêneas em cada ambiente. É nesse
momento que o filme evidencia uma de suas insuficiências,
a de buscar pronunciadamente alguns casos de exceção,
culminando em dois depoimentos de crimes de aluno, ambos
em áudio sem imagem, um ilustrado pela tela preta
(meninos falando que roubam por ódio ou por falta
do que fazer) e outro com a chuva batendo nas poças
em câmera lenta (uma menina que narra um assassinato
que cometeu no colégio, de forma deliberada e
orgulhosa com o feito porque a pena para menor é
ínfima). Por mais que seja absolutamente necessário
se referir a casos como este, as cenas sobretudo
a narração do assassinato se revelam
como algo oportunistas no filme, seja pela pieguice
das soluções de imagem para fazer caber
o áudio, seja porque certras questões
muito mais gerais e decisivas da educação
acabam sendo obnubiladas pela força desses depoimentos.
O filme também recorre à empatia com certos
personagens como forma um pouco fácil de desenvolver
uma relação calorosa com a platéia
não à toa, faz retornar a adorável
aluna-poeta de Manari no fim do filme , mas no
geral o filme consegue mais do que fazer apenas um inventário
dos maiores problemas da educação no Brasil,
chegando inclusive a exercitar certos questionamentos
mais teóricos e contemporâneos como a adequação
dos programas escolares às necessidades da vida
dos alunos e à necessidade de uma reformulação
completa do papel entre professor e aluno, uma vez que
a relação de respeito ao mestre construída
ao longo de séculos parece não mais fazer
efeito nos dias de hoje. Filme de grandes qualidades
e alguns evidentes defeitos, Pro Dia Nascer Feliz
funciona como o ponto de partida para um questionamento
sobre educação por parte não só
dos professores, mas de todos aqueles interessados na
importância da transmissão de saber, e
na extrema necessidade que essa transmissão tem
na constituição da cidadania.
Ruy Gardnier
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