PRO DIA NASCER FELIZ
João Jardim, Brasil, 2006

O nome não deixa muito claro, mas Pro Dia Nascer Feliz é um filme sobre educação no Brasil. E, claro, num país tão socialmente contrastado e de dimensões continentais como o Brasil, tudo é questão do recorte que se faz, e de como se operam as interrelações dos lugares e das situações específicas que se vai registrar. Nesse primeiro desafio, João Jardim se sai formidavelmente bem. A tentação de chamar a atenção para as patentes diferenças geográficas e de classe é tão grande quanto fácil, e a idéia de fazer um uso "dialético" montando e integrando lugares e problemáticas heterogêneas cairia rapidamente num denuncismo confortável e no lugar-comum. E o que Pro Dia Nascer Feliz faz? Analisa cada segmento por si mesmo, criando quatro blocos homogêneos de instalação num ambiente, filmando os lugares, tomando depoimentos de alunos e professores, enfim, criando um esforço de compreensão a partir do que se filma, com um interesse maior no que está diante da câmera do que com a tese que está embaixo do braço. Assim, vemos inicialmente as precárias condições de uma escola na cidade de Manari, em Pernambuco, depois somos transportados para uma escola em Duque de Caxias, Rio de Janeiro, em seguida vamos para Itaquaquecetuba, no interior de São Paulo, e por fim paramos numa escola de elite da cidade de São Paulo.

Vemos diferenças? Claro. Uma escola de cidade pequena enfrenta problemas que uma escola de cidade grande não enfrenta, as crianças numa cidade pobre vivem dificuldades diferentes daquelas de uma cidade rica. Mas o que o filme mostra com extrema competência é que o dinheiro não faz necessariamente uma criança mais feliz do que outra, assim como uma educação mais qualificada pode ocasionar tantas oportunidades na vida quanto criar pacientes de consultórios de psicanálise. Assim, vemos a aluna-poeta de Manari que consegue construir para si, com todas as circunstâncias contra, uma vida esclarecida, ao passo que algumas alunas de um colégio rico do Alto de Pinheiros lutam para saber o que querem da vida. Cada segmento é afrontado por seus próprios problemas. Alguns dizem respeito à falta de condições, mas todos são afetados pelo modo de vida das redondezas e pelas circunstâncias específicas dos bairros e cidades em que estão situados. Assim, a escola de Caxias vive o problema da criminalidade e a escola rica de São Paulo não consegue viver com o fato de ser um bunker de riqueza em meio à pobreza e falta de meios da maior parte do país. Cada situação é respeitada, sem tecer hierarquias ou expor ao ridículo algum dos lados. Claro, existe a tendência de espectador em empatizar com os pobres e minimizar os problemas dos ricos, considerados como fúteis (o que provoca por vezes reações monstruosas por parte da platéia), mas João Jardim consegue orquestrar seu filme a partir de uma estrutura que deixa cada segmento viver sua própria vida, respirar sua própria respiração.

Numa segunda parte, o filme intercala e integra seus segmentos a partir da questão da paternidade (o que revela pais ausentes tanto em Manari quanto no Alto de Pinheiros, ainda que a ausência se dê por razões diversas) e, em seguida, para a questão, igualmente paterna, do Estado e dos contrastes sociais (plano aéreo clichê dos arranha-céus e das favelas horizontais de Sâo Paulo), e ao mesmo tempo o filme toca na questão da violência dos jovens, que também se dá de formas heterogêneas em cada ambiente. É nesse momento que o filme evidencia uma de suas insuficiências, a de buscar pronunciadamente alguns casos de exceção, culminando em dois depoimentos de crimes de aluno, ambos em áudio sem imagem, um ilustrado pela tela preta (meninos falando que roubam por ódio ou por falta do que fazer) e outro com a chuva batendo nas poças em câmera lenta (uma menina que narra um assassinato que cometeu no colégio, de forma deliberada e orgulhosa com o feito porque a pena para menor é ínfima). Por mais que seja absolutamente necessário se referir a casos como este, as cenas – sobretudo a narração do assassinato – se revelam como algo oportunistas no filme, seja pela pieguice das soluções de imagem para fazer caber o áudio, seja porque certras questões muito mais gerais e decisivas da educação acabam sendo obnubiladas pela força desses depoimentos.

O filme também recorre à empatia com certos personagens como forma um pouco fácil de desenvolver uma relação calorosa com a platéia – não à toa, faz retornar a adorável aluna-poeta de Manari no fim do filme –, mas no geral o filme consegue mais do que fazer apenas um inventário dos maiores problemas da educação no Brasil, chegando inclusive a exercitar certos questionamentos mais teóricos e contemporâneos como a adequação dos programas escolares às necessidades da vida dos alunos e à necessidade de uma reformulação completa do papel entre professor e aluno, uma vez que a relação de respeito ao mestre construída ao longo de séculos parece não mais fazer efeito nos dias de hoje. Filme de grandes qualidades e alguns evidentes defeitos, Pro Dia Nascer Feliz funciona como o ponto de partida para um questionamento sobre educação por parte não só dos professores, mas de todos aqueles interessados na importância da transmissão de saber, e na extrema necessidade que essa transmissão tem na constituição da cidadania.

Ruy Gardnier