Mais
do que nas versões em curta e em média-metragem,
é no longa Onde a Coruja Dorme que a idéia
de um painel toma corpo. Não um painel dos compositores
da periferia do Rio de Janeiro ou do samba de morro
universo com o qual lida o documentário
, mas algo talvez mais ambicioso: os diretores
Márcia Derraik e Simplício Neto procuram
traçar o painel de um país, ou melhor,
de um determinado entendimento de país. A palavra
é dada a compositores da Baixada Fluminense como
Popular P, 1000tinho, Paulinho Alicate, entre outros,
em grande parte desconhecidos do grande público,
mas autores de alguns dos maiores sucessos gravados
por Bezerra da Silva.
Onde a Coruja Dorme não é um retrato
de Bezerra da Silva (no estilo "vida e obra"),
muito embora o sambista ocupe um lugar privilegiado
no conjunto do documentário. Também não
procura ser o registro do cotidiano dos compositores
em suas diversas outras profissões (bombeiro,
carteiro, técnico de refrigeração
etc.). O principal personagem de Onde a Coruja Dorme
é a palavra, o discurso e o seu ritmo. Letra
e música, prosa e poética: o país
é dito e lido pela ótica dos sambistas
da Baixada Fluminense. Márcia Derraik e Simplício
Neto registram essa leitura e a reelaboram num documentário
de extrema fluidez e agilidade.
É Bezerra da Silva quem de certa forma dá
corpo e unidade a esse discurso. Em um dado momento,
um dos compositores afirma ter em casa uma enorme quantidade
de músicas de amor. Nenhuma delas gravadas, pois
Bezerra da Silva não canta o amor: "seria
hipocrisia". A conversa é necessariamente
outra.
"Você com o revólver na mão
é um bicho feroz/ Sem ele anda rebolando e até
muda de voz". Via Bezerra da Silva, é a
ética da malandragem a base do discurso que interessa
a Márcia Derraik e a Simplício Neto. Bem
entendido: malandragem significa inteligência,
nas palavras do próprio Bezerra. Longas seqüências
do documentário dedicam-se a refletir sobre essa
guerra entre malandros e otários, quase uma metáfora
política do país. Através das rodas
de samba, dos depoimentos e das imagens de arquivo (algumas
delas fabulosas), discute-se o tráfico de drogas
e de armas, os políticos picaretas e ladrões,
os falsos pais-de-santo, os marginais otários
e os marginais malandros, a violência generalizada
da tortura policial, do racismo, da "deduragem"
e de outras manifestações de falta de
ética inadmissíveis para quem não
vive a realidade da classe média e dos dóceis
valores de solidariedade domingueira em torno da Lagoa
ou da orla-Zona Sul.
A própria indústria fonográfica
é acusada de explorar os anônimos compositores.
Bezerra da Silva é o elo que une os dois pólos.
Não por acaso, surge caminhando por uma favela
e dando um depoimento com o morro em segundo plano,
ou em seu escritório, cercado de discos de platina
pendurados na parede. Bezerra da Silva tem livre trânsito
entre os "homens de negócio" e a "malandragem"
e provoca a mistura de uns com os outros, procurando
reverter a situação para o lado mais fraco:
acusado de fazer apologia à bandidagem, capitaliza
sabiamente malandramente essa imagem que
lhe impingem, como atestam as geniais e cinematográficas
capas dos discos em que Bezerra surge como um criminoso,
acuado num beco ou sendo levado para o xadrez.
De forma mais sutil, o próprio documentário,
em sua inclinação antropológica,
coloca-se em xeque, mais uma vez por intermédio
do discurso. A gíria, forma de resistência
e de afirmação, torna evidente a distância
entre as classes sociais, entre os dois mundos contrapostos
pelos personagens de Onde a Coruja Dorme. Os
intelectuais e universitários falam uma língua
ininteligível para a maior parte da população,
e é dessa forma que a classe dominante exerce
o seu poder; da mesma forma, o povo responde com a gíria,
e se ela não consegue transformar o quadro de
dominação, ao menos desequilibra a força
do opositor. No filme, alguns personagens exemplificam
para os entrevistadores determinadas expressões
e códigos, e os explicam em seguida. O documentário
assume seu "lugar".
Tendo a honestidade de se colocar distante do universo
retratado e, ao mesmo tempo, não cedendo à
piedade típica dos documentários que insistem
em ver no "povo" um inesgotável armazém
de bondade humana, a tônica de Onde a Coruja
Dorme é, enfim, a simpatia. Os documentaristas
são bastante simpáticos aos compositores
e estes, por sua vez, estão muito à vontade
diante da câmera, o que evidencia um cuidado exemplar
na condução das conversas, editadas com
mestria. O que chama a atenção, porém,
é que aqui não percebemos a intenção
de transformar o documentário numa janela
a revelar, por meio dos depoimentos, uma pretensa "realidade"
até então não "notada".
O documentário é bastante explícito
ao se assumir como recorte: o que interessa é
dar voz, substância ao pensamento dos que estão
sendo ali entrevistados.
Dar voz ao morro, como naquela clássica canção
de Zé Kéti, é exatamente o que
faz Bezerra da Silva. Com um gravador, o intérprete
instrui os compositores desconhecidos a deixarem gravados
os seus sambas; com o acesso que tem nas gravadoras,
imortaliza essas criações que, sem essa
intermediação, restariam provavelmente
perdidas. São extremamente felizes as imagens
em que os compositores, às vezes pouco à
vontade, estão diante do gravador cantando suas
composições acompanhados pelo ritmo das
palmas da mão. A atitude que Márcia Derraik
e Simplício Neto têm para com Bezerra da
Silva parece ser conduzida pela admiração
provocada por uma comunhão de propósitos:
o grande sambista é antes de mais nada um grande
documentarista.
Do nacional-popular ao musical-popular, Márcia
Derraik e Simplício Neto sintonizam-se com uma
particular sensibilidade contemporânea, isto é,
ritmo e letra. Onde a Coruja Dorme
pode ser visto como uma homenagem ao "cinema brasileiro
possível", aquele que se encontra não
propriamente nas imagens, mas sobretudo na música.
Luís Alberto Rocha Melo
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