O CÉU DE SUELY
Karim Aïnouz, Brasil, 2006

O Céu de Suely, segundo longa-metragem de Karim Aïnouz, chega quatro anos após Madame Satã. Quatro anos que alimentaram a natural ansiedade em relação ao novo trabalho de um diretor tão talentoso, que facilmente assumiu posição de destaque no cinema brasileiro. Mas por maior que fosse a expectativa, ela nada atrapalha, dissolvendo-se na força e no lirismo com que somos interpelados logo que o filme começa: uma imagem em super-8 mostra a jovem Hermila sorridente, expansiva, desgovernada, tendo o céu azul como cúmplice de uma busca por desejos maiores que qualquer definição. A entrada da voz dela em off aumenta a sensação de um tempo em suspenso, remetido ao passado pela narração, porém atirado ao presente puro. Hermila é a personagem que acompanharemos de perto durante o filme. Ela retorna à cidade natal depois de viver dois anos em São Paulo ao lado de Mateus, com quem teve um filho. Terminada a cena em super-8, seu olhar lasso é mostrado em detalhe, ocupando a tela inteira, servindo de espelho para um espaço imaginário que complementa o lugar de inscrição da personagem. Após Hermila saltar do ônibus, com seu bebê no colo, ela e Iguatu, a cidade em que o filme se passa, começam a ser apresentadas em simultâneo.

Iguatu é uma cidadezinha perdida no interior do Ceará, cortada pelo trem e pelas rodovias, de luzes e sons que ecoam um mundo distante dali, o mundo das grandes cidades. As mechas no cabelo de Hermila, resquício de uma cultura da metrópole que ela habitou provisoriamente, são como o constante ruído de fundo que traz ao filme a idéia de que há uma infinidade de coisas acontecendo a todo momento, mas em algum outro lugar. Iguatu, a despeito da rusticidade de suas construções, da posição geográfica isolada, da pobreza, capta as ondas que vêm de longe, e que já chegam refratadas – versões em português para canções pop americanas, um posto de gasolina que se chama Veneza, um comércio de rua que por algum motivo inexplicável cria um sentimento de feira internacional. Os pontos de luz desfocados (como os faróis de carros, caminhões e motos que passam na estrada) que cintilam no fundo da imagem nas cenas noturnas parecem chamarizes enviados à distância, mensagens luminosas de um mundo mais povoado e mais veloz. A massa sonora, por sua vez, prolonga o espaço habitado pelos personagens para além dos limites de enquadramento, reforçando a idéia de que eles – e sobretudo Hermila – são seres de um mundo que não termina nas placas de boas vindas ou de adeus a Iguatu. A mise en scène de Karim Aïnouz, de influências claras, sabiamente retrabalhadas, segue uma mesma lógica, e Iguatu passa a abrigar também a Taipei de Adeus ao Sul (Hou Hsiao-hsien), a Datong de Prazeres Desconhecidos (Jia Zhang-ke), a Paris de Noites Sem Dormir (Claire Denis).

Na ambiência complexa que se cria, o filme busca um conjunto de experiências que devem ser a porta de entrada para a compreensão da personagem e, mais amplamente, do que é ser jovem numa cidade como aquela – um espaço ora inflacionado de signos, ora totalmente ausente deles. Para atingir a intensidade da personagem, é preciso antes embarcar na duração de suas ações, ouvir os sons do trem e das motos, perceber de que forma a luz se comporta, ser assombrado pelos mesmos fantasmas de evasão. A dimensão social – e até política – da migração é um desdobramento da parcela sensível do filme, dos sentimentos e dos efeitos estéticos que ele provoca, e não o contrário. O mesmo se aplica à dramaturgia: se os personagens possuem os nomes dos atores que os interpretam, é porque a verdade do ator e a do personagem se equivalem. Para Hermila Guedes, a coisa vai mais longe. Vemos o raro momento em que uma atriz nos faz sair de onde estivermos, não importa o quão longe isso seja do sertão cearense (ou do céu), para ficarmos mais próximos dela. Quanto mais a experiência da personagem se prova individual e impartilhável, mais inseridos nessa experiência ficamos. Quando Hermila soma a seu corpo um outro nome, Suely, e tem a idéia da rifa cujo prêmio será “uma noite no paraíso” ao lado dela, o filme adquire uma atmosfera mais densa, ainda que uma certa placidez continue pautando a narrativa. Ela desestabiliza a comunidade, e ir embora já não se resume mais a uma opção pessoal, sendo quase uma necessidade, um reequilíbrio de forças – sua energia era demais para aquele sistema. Como em Madame Satã, a resposta para essa incompatibilidade entre o indivíduo e o meio é dada pelo corpo.

O filme se deixa invadir por um olhar masculino ao mesmo tempo ausente e onipresente (o que talvez dê no mesmo). Um olhar que se instala nas bordas da imagem, como a tencioná-la a partir do fora-de-campo. É o olhar de Mateus, amor perdido, que não volta com Hermila para Iguatu nem vai se encontrar com ela depois: fica em São Paulo enquanto ela aguarda na rodoviária (momento em que a melancolia sai do fundo e chega ao primeiro plano). E é também o olhar de todos os homens, desde João, apaixonado por Hermila, até os desconhecidos que compram as rifas ou simplesmente partilham de um olhar coletivo e sem local definido, de múltiplas modalidades – posse, carinho, fetiche, desejo, agressão... O Céu de Suely se concentra em personagens femininas, a começar pela protagonista, e constrói o olhar masculino como algo que inevitavelmente se infiltra na imagem – passam aí afetos, mas também códigos sociais opressores. Basta pensar na impressionante cena no quarto de motel em que Suely vai com o vencedor da rifa: ela se despe para um personagem cujo rosto demora a aparecer, demora a ser enquadrado, unindo essas duas esferas de presença e ausência, dentro e fora de campo. A dança tímida de Suely é perturbadora, o andamento dramático ameaça atingir um ponto de ruptura, após o qual seria impossível continuar a cena, manter sua força, e ocorre um corte por saturação, levando o filme já para o meio do ato sexual, a música sendo interrompida bruscamente.
Facilidade estética? Talvez o contrário, a exemplo do que os planos de céu azul filmados por Aïnouz representam: imagens ásperas, saturadas de cor e de granulação. Se o cinema brasileiro já tinha visitado vários sertões, do mitológico ao perfumado, recebendo uma renovada sensação física do espaço em Cinema, Aspirina e Urubus, uma coisa precisou esperar por Suely para ser vista: mais que o solo, mais que a pele, o que há de árido no sertão é o céu.

Ainda na primeira metade do filme, um belíssimo plano mostra Hermila andando pela rua sozinha, à noite, até que um ponto luminoso se destaca do fundo, cresce em meio aos outros e se aproxima: é o farol da moto de João, que pára e oferece carona a ela. Posteriormente, no que talvez seja o plano mais bonito de O Céu de Suely, Hermila está à beira da estrada, acompanhada do sol que se põe. Ela sobe na garupa da moto de João Miguel e eles saem pela estrada. O sol se pondo faz um belo par com o farol da moto aceso. Após esse lindo plano-seqüência, alguns planos mais curtos prolongam o trajeto, e ela deita o rosto no ombro dele. Dois sóis, um aquecendo o outro, mas sabemos que em algum momento um deles terá de se pôr (como se confirma no último plano do filme, João voltando sozinho de moto). É possível que estetas do fluxo como Aïnouz, como Hou, Wong, Denis, Apichatpong, estejam dizendo que é preciso romper a máxima do “só se for a dois” para descobrir o mundo de uma outra forma, ou para viajar estando sozinho e, ao mesmo tempo, em meio a todos. Não seria essa a poesia de um novo indivíduo flutuante, vetorizado, perplexo diante de sua própria experiência de estar-no-mundo? Sair do calor do abraço e seguir adiante: eis a condição que se estabelece a esse indivíduo. Hermila parte sozinha, discreto sorriso no rosto, enquanto João vai de moto atrás do ônibus. Essa imagem apaga a idéia de um corpo se trocando por dinheiro, e revela uma pessoa se transformando em vetor, para atravessar o mundo, vivê-lo em diagonal – como ele parece de fato pedir. O céu que o filme nos entrega ao final é como um cartão-postal impossível; a imagem desse mundo distante e impalpável que Hermila/Suely irá conquistar.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 





Hermila Guedes e João Miguel em O Céu de Suely