O
Céu de Suely, segundo longa-metragem de Karim Aïnouz,
chega quatro anos após Madame Satã. Quatro
anos que alimentaram a natural ansiedade em relação
ao novo trabalho de um diretor tão talentoso, que facilmente
assumiu posição de destaque no cinema brasileiro. Mas
por maior que fosse a expectativa, ela nada atrapalha,
dissolvendo-se na força e no lirismo com que somos interpelados
logo que o filme começa: uma imagem em super-8 mostra
a jovem Hermila sorridente, expansiva, desgovernada,
tendo o céu azul como cúmplice de uma busca por desejos
maiores que qualquer definição. A entrada da voz dela
em off aumenta a sensação de um tempo em suspenso,
remetido ao passado pela narração, porém atirado ao
presente puro. Hermila é a personagem que acompanharemos
de perto durante o filme. Ela retorna à cidade natal
depois de viver dois anos em São Paulo ao lado de Mateus,
com quem teve um filho. Terminada a cena em super-8,
seu olhar lasso é mostrado em detalhe, ocupando a tela
inteira, servindo de espelho para um espaço imaginário
que complementa o lugar de inscrição da personagem.
Após Hermila saltar do ônibus, com seu bebê no colo,
ela e Iguatu, a cidade em que o filme se passa, começam
a ser apresentadas em simultâneo.
Iguatu é uma cidadezinha perdida no interior do Ceará,
cortada pelo trem e pelas rodovias, de luzes e sons
que ecoam um mundo distante dali, o mundo das grandes
cidades. As mechas no cabelo de Hermila, resquício de
uma cultura da metrópole que ela habitou provisoriamente,
são como o constante ruído de fundo que traz ao filme
a idéia de que há uma infinidade de coisas acontecendo
a todo momento, mas em algum outro lugar. Iguatu, a
despeito da rusticidade de suas construções, da posição
geográfica isolada, da pobreza, capta as ondas que vêm
de longe, e que já chegam refratadas – versões em português
para canções pop americanas, um posto de gasolina que
se chama Veneza, um comércio de rua que por algum motivo
inexplicável cria um sentimento de feira internacional.
Os pontos de luz desfocados (como os faróis de carros,
caminhões e motos que passam na estrada) que cintilam
no fundo da imagem nas cenas noturnas parecem chamarizes
enviados à distância, mensagens luminosas de um mundo
mais povoado e mais veloz. A massa sonora, por sua vez,
prolonga o espaço habitado pelos personagens para além
dos limites de enquadramento, reforçando a idéia de
que eles – e sobretudo Hermila – são seres de um mundo
que não termina nas placas de boas vindas ou de adeus
a Iguatu. A mise en scène de Karim Aïnouz, de
influências claras, sabiamente retrabalhadas, segue
uma mesma lógica, e Iguatu passa a abrigar também a
Taipei de Adeus ao Sul (Hou Hsiao-hsien), a Datong
de Prazeres Desconhecidos (Jia Zhang-ke), a Paris
de Noites Sem Dormir (Claire Denis).
Na ambiência complexa que se cria, o filme busca um
conjunto de experiências que devem ser a porta de entrada
para a compreensão da personagem e, mais amplamente,
do que é ser jovem numa cidade como aquela – um espaço
ora inflacionado de signos, ora totalmente ausente deles.
Para atingir a intensidade da personagem, é preciso
antes embarcar na duração de suas ações, ouvir os sons
do trem e das motos, perceber de que forma a luz se
comporta, ser assombrado pelos mesmos fantasmas de evasão.
A dimensão social – e até política – da migração é um
desdobramento da parcela sensível do filme, dos sentimentos
e dos efeitos estéticos que ele provoca, e não o contrário.
O mesmo se aplica à dramaturgia: se os personagens possuem
os nomes dos atores que os interpretam, é porque a verdade
do ator e a do personagem se equivalem. Para Hermila
Guedes, a coisa vai mais longe. Vemos o raro momento
em que uma atriz nos faz sair de onde estivermos, não
importa o quão longe isso seja do sertão cearense (ou
do céu), para ficarmos mais próximos dela. Quanto mais
a experiência da personagem se prova individual e impartilhável,
mais inseridos nessa experiência ficamos. Quando Hermila
soma a seu corpo um outro nome, Suely, e tem a idéia
da rifa cujo prêmio será “uma noite no
paraíso” ao lado dela, o filme adquire uma atmosfera
mais densa, ainda que uma certa placidez continue pautando
a narrativa. Ela desestabiliza a comunidade, e ir embora
já não se resume mais a uma opção pessoal, sendo quase
uma necessidade, um reequilíbrio de forças – sua energia
era demais para aquele sistema. Como em Madame Satã,
a resposta para essa incompatibilidade entre o indivíduo
e o meio é dada pelo corpo.
O filme se deixa invadir por um olhar masculino ao mesmo
tempo ausente e onipresente (o que talvez dê no mesmo).
Um olhar que se instala nas bordas da imagem, como a
tencioná-la a partir do fora-de-campo. É o olhar de
Mateus, amor perdido, que não volta com Hermila para
Iguatu nem vai se encontrar com ela depois: fica em
São Paulo enquanto ela aguarda na rodoviária (momento
em que a melancolia sai do fundo e chega ao primeiro
plano). E é também o olhar de todos os homens, desde
João, apaixonado por Hermila, até os desconhecidos que
compram as rifas ou simplesmente partilham de um olhar
coletivo e sem local definido, de múltiplas modalidades
– posse, carinho, fetiche, desejo, agressão... O
Céu de Suely se concentra em personagens femininas,
a começar pela protagonista, e constrói o olhar masculino
como algo que inevitavelmente se infiltra na imagem
– passam aí afetos, mas também códigos sociais opressores.
Basta pensar na impressionante cena no quarto de motel
em que Suely vai com o vencedor da rifa: ela se despe
para um personagem cujo rosto demora a aparecer, demora
a ser enquadrado, unindo essas duas esferas de presença
e ausência, dentro e fora de campo. A dança tímida de
Suely é perturbadora, o andamento dramático ameaça atingir
um ponto de ruptura, após o qual seria impossível continuar
a cena, manter sua força, e ocorre um corte por saturação,
levando o filme já para o meio do ato sexual, a música
sendo interrompida bruscamente.
Facilidade estética? Talvez o contrário,
a exemplo do que os planos de céu azul filmados
por Aïnouz representam: imagens ásperas,
saturadas de cor e de granulação. Se o
cinema brasileiro já tinha visitado vários
sertões, do mitológico ao perfumado, recebendo
uma renovada sensação física do
espaço em Cinema, Aspirina e Urubus, uma
coisa precisou esperar por Suely para ser vista: mais
que o solo, mais que a pele, o que há de árido
no sertão é o céu.
Ainda na primeira metade do filme, um belíssimo plano
mostra Hermila andando pela rua sozinha, à noite, até
que um ponto luminoso se destaca do fundo, cresce em
meio aos outros e se aproxima: é o farol da moto
de João, que pára e oferece carona a ela. Posteriormente,
no que talvez seja o plano mais bonito de O Céu de
Suely, Hermila está à beira da estrada, acompanhada
do sol que se põe. Ela sobe na garupa da moto de João
Miguel e eles saem pela estrada. O sol se pondo faz
um belo par com o farol da moto aceso. Após esse lindo
plano-seqüência, alguns planos mais curtos prolongam
o trajeto, e ela deita o rosto no ombro dele. Dois sóis,
um aquecendo o outro, mas sabemos que em algum momento
um deles terá de se pôr (como se confirma no último
plano do filme, João voltando sozinho de moto). É possível
que estetas do fluxo como Aïnouz, como Hou, Wong, Denis,
Apichatpong, estejam dizendo que é preciso romper a
máxima do “só se for a dois” para descobrir o mundo
de uma outra forma, ou para viajar estando sozinho e,
ao mesmo tempo, em meio a todos. Não seria essa a poesia
de um novo indivíduo flutuante, vetorizado, perplexo
diante de sua própria experiência de estar-no-mundo?
Sair do calor do abraço e seguir adiante: eis a condição
que se estabelece a esse indivíduo. Hermila parte sozinha,
discreto sorriso no rosto, enquanto João vai de moto
atrás do ônibus. Essa imagem apaga a idéia de um corpo
se trocando por dinheiro, e revela uma pessoa se transformando
em vetor, para atravessar o mundo, vivê-lo em
diagonal – como ele parece de fato pedir. O céu que
o filme nos entrega ao final é como um cartão-postal
impossível; a imagem desse mundo distante e impalpável
que Hermila/Suely irá conquistar.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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