Como
fazer um filme cujo protagonista é um agiota?
Esse parece ser o desafio mais interessante de O
Amigo da Família, filme estranho, díspar,
irregular, com alguns arroubos de inteligência
mas no geral muito fraco (o que não impede que
alguns momentos ele seja fascinante). Este terceiro
longa-metragem de Paolo Sorrentino (depois de L'uomo
in più e As Conseqüências do
Amor) é uma verdadeira colcha de retalhos,
misto entre a tradicional comédia italiana e
o próprio delírio dela, entre o desejo
de artesão e o de demiurgo, entre o banal e o
sublime. Certos planos e climas podem inclusive nos
remeter a belos filmes dos últimos anos (Não
se Mova de Sergio Castellitto, os filmes de João
César Monteiro ou David Lynch), para em seguida
os planos seguintes nos denotarem a insuficiência
artística do diretor. Nessa confusão toda
existe espaço para uma liberdade do espectador,
o espaço para um gosto, um prazer? Um pouco.
A graça de O Amigo da Família,
mesmo que mínima, reside na forma como Sorrentino
filma seu protagonista. Além de agiota, Geremia
é velho, sujo, usurário, corcunda, grotesco
e mais alguns aspectos que o tornam repugnante como
um todo. Apesar disso, e aí está o resíduo
de poder da ficção que sustenta o interesse
do filme, a câmera insiste sobre ele, a narração
pede que passemos a investir um outro olhar sobre ele,
que consideremos pelo menos por algum momento que essa
figura absolutamente desinteressante tenha de fato algum
motivo para receber uma consideração mais
generosa. E isso acaba instalando O Amigo da Família
num regime de dissonância de identificação
que tem um gosto distinto, incomum no cinema. Ao mostrar
como esse personagem bizarro e interesseiro (ou seja,
alguém que não merece identificação
ficcional) é ao mesmo tempo alguém solitário,
já que todo mundo só desenvolve relações
com ele na base da troca, o filme acaba instalando o
espectador num lugar interessante, em que ele não
tem as regras do jogo para seguir e precisa consatruir
sozinho seu próprio caminho.
Ao mesmo tempo, fica claro que tudo que o filme faz
com isso não é suficiente. Na confusão
de reunir o mundo real e o imaginário do personagem,
de estabelecer uma narrativa que vai de episódio
em episódio sem uma âncora precisa que
os una, o filme acaba se fragmentando demais e perde
rapidamente um maior interesse. A escolha de Sorrentino
por filmar tudo de maneira meio estranha, entre bizarro-Coen
e virtuoso-De Palma, às vezes ganha bons trunfos
(como o belo plano das pernas que se abrem por trás
do corpo de Geremia, ou a breve seqüência
da menina dormindo de seios nus na árvore), mas
em geral é de uma irregularidade e de uma falta
de coesão que fazem a feiúra saltar aos
olhos. Experiência limitada e interessante, O
Amigo da Família ao menos revela uma grande distância
do rame-rame de comédias sentimentais para pessoas
de bom coração que infesta o circuito
exibidor brasileiro. Já é alguma coisa.
Ruy Gardnier
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