Se
é verdade que Nova York pode ser considerada
a cidade que nunca dorme, esta afirmação
é válida principalmente para pessoas como
Ahmad, o protagonista de Man Push Cart. Trabalhando
muitas horas por dia como vendedor de bagels
e café em seu trailer, ocupando as horas
vagas pirateando fitas pornôs e arrumando outros
negócios pequenos para economizar algum dinheiro,
acompanhamos sua jornada dia e noite na cidade. Não
há, porém, na Nova Iorque eternamente
acordada de Rahmin Bahrani nenhum glamour. Assim
como Michael Mann, o diretor de Man Push Cart
faz de seu filme um estudo sobre a noite urbana e suas
relações com os personagens, mas, ao contrário
do diretor de Miami Vice, não são as luzes
da cidade que dialogam com o protagonista. Ahmad perambula
por ruas e apartamentos ostensivamente escuros, de forma
com que seu rosto volta e meia se confunda ou seja apagado
pelo ambiente que o circunda. A excelente fotografia
do filme não se preocupa em priorizá-lo,
e, se por alguns momentos as luzes alcançam seu
rosto – sejam os faróis dos carros ou o Empire
State Building -, não é de forma bela
ou harmoniosa que ele é iluminado. Man Push
Cart é o drama dos imigrantes que vivem ora
no escuro ora nas luzes feitas por outros e destinada
a outros também.
Esse drama, porém, não é tratado
da forma mais fácil e perigosa: a miserabilista.
Ao contrário de Coisas Belas e Sujas,
de Stephen Frears, filme no qual cada fotograma era
dedicado a explorar como o imigrante ilegal na Inglaterra
é injustiçado e miserável, a crueza
de Man Push Cart, a interpretação
opaca de Ahmad Razvi, a falta de explicações
psicológicas do personagem dão ao filme
uma vida e uma força muito maiores do que se
esperaria a princípio dele. Sim, Ahmad é
pobre. Sim, o filme é melancólico, triste
e trágico. Sim, os imigrantes em Nova Iorque
realmente não têm muitas chances de sucesso.
Todas essas questões, contudo, acontecem de forma
natural, quase como se o diretor, no fundo, tentasse
construir um happy end, mas a realidade o impedisse.
Ahmad não é um simples modelo de papel,
mas um corpo andando, sendo modelado e resistindo pelas
ruas e esquinas da cidade. E, por ser impregnado dessas
ruas e esquinas, é que Man Push Cart se distancia
das concessões miserabilistas (que volta e meia
infelizmente surgem, na trilha sonora, na leve vilanização
de um amigo ou em alguns movimentos de câmera)
e transforma-se em um grande filme político.
Porque, em vez de discursar sobre, revela uma realidade.
É importante que essa revelação
se dê, e talvez não pudesse ser o contrário,
em um personagem totalmente opaco. Sabemos, ao longo
do filme, que Ahmad era um cantor de sucesso no Paquistão,
que foi à Nova Iorque com a mulher que amava,
que a mulher morreu e os pais dela consideram ele culpado,
que por causa disso Ahmad não pode ver seu filho.
Ao mesmo tempo, ficamos sem descobrir por que ele deixou
de ser um cantor, como e quando a mulher morreu, qual
a razão do protagonista ser considerado culpado
por isso. Mesmo o breve flashback – um homem feliz com
uma mulher, e pronto – que surge abruptamente serve
mais para esconder do que para revelar. Se não
há tempo, na vida de Ahmad, para ver seu filho,
quanto mais para psicologismos. Man Push Cart existe
unicamente no presente, na relação de
Ahmad com a cidade, com a espanhola que conhece, com
os amigos de rua vivendo em situação igual
a ele. O personagem tem uma história diferente
dos outros, mas e daí? A cidade engole a todos
da mesma maneira, e torcemos pela luta de Ahmad como
poderíamos torcer pela luta de seu vizinho. Um
dos grandes méritos de Man Push Cart é
o de inventar subtramas para esquecê-las logo
depois.
Nessa luta de um homem para escapar da prisão
de uma cidade, não é só a escuridão
da fotografia que exerce seu papel. O posicionamento
da câmera, quase sempre fechado, muitas vezes
confuso, procurando seguir os movimentos de Ahmad nos
pequenos espaços em que ele sobrevive; os cortes,
que parecem existir antes do momento esperado, seja
porque o plano ainda não teve tempo de respirar,
seja porque a seqüência ainda não
deveria ter acabado (muitas vezes ela é interrompida
antes do momento em que deveria ser justificada); e,
principalmente, o trabalho de som direto, servem não
apenas para reiterar a desorientação do
protagonista como para colocar-nos em uma situação
também de enorme incômodo em nossas poltronas.
A seqüência em que Ahmad perde seu carrinho
e, enquanto o procura, toda a tensão existe e
se amplia nas vozes de pessoas e buzinas de carros de
Nova Iorque, ensurdecedoras, já justificam plenamente
as opções do diretor, assim como os momentos
em que o protagonista leva seu trailer de madrugada
por entre os carros e seus faróis já dão
por si sós um belo retrato da melancolia urbana.
Não é só de prisões, porém,
que Man Push Cart é feito. Há,
em toda a encenação, a tentativa do protagonista
de escapar às esquinas de Nova Iorque, às
buzinas e luzes dos automóveis, aos trailers
de bagel e café dentro dos quais tem
de gastar 10 anos de sua vida. Quão maior é
essa sensação de aprisionamento, maior
também é a beleza de seu sentimento pelo
filho que nunca vê, de sua paixão pela
espanhola que vende jornal na banca vizinha, de sua
relação com o filhote de gato, das pequenas
cenas de cotidiano que permeiam a narrativa. Cada fuga
– ou, em outras palavras, cada pequena batalha travada
– passa a ter uma força e uma densidade surpreendentes,
cada olhar comporta dentro de si um peso enorme. E,
se este peso acaba por cair nos ombros de Ahmad – o
filho permanece distante, a mulher vai embora, o trailer
é roubado, o gato morre –, o fato de ele
continuar a resistir torna Man Push Cart um grande
filme. Na cena final, o protagonista ainda vende bagels,
no trailer do amigo, em plena madrugada, sem
olhar algum de tristeza na cara. Pois a vida ainda existe,
e, se há vida, uma forma estranha de esperança
a acompanha. Eis a melhor, e a mais triste, das tragédias.
Leonardo Levis
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