MAN PUSH CART
Rahmin Bahrani, Man Push Cart, EUA/Irã, 2005

Se é verdade que Nova York pode ser considerada a cidade que nunca dorme, esta afirmação é válida principalmente para pessoas como Ahmad, o protagonista de Man Push Cart. Trabalhando muitas horas por dia como vendedor de bagels e café em seu trailer, ocupando as horas vagas pirateando fitas pornôs e arrumando outros negócios pequenos para economizar algum dinheiro, acompanhamos sua jornada dia e noite na cidade. Não há, porém, na Nova Iorque eternamente acordada de Rahmin Bahrani nenhum glamour. Assim como Michael Mann, o diretor de Man Push Cart faz de seu filme um estudo sobre a noite urbana e suas relações com os personagens, mas, ao contrário do diretor de Miami Vice, não são as luzes da cidade que dialogam com o protagonista. Ahmad perambula por ruas e apartamentos ostensivamente escuros, de forma com que seu rosto volta e meia se confunda ou seja apagado pelo ambiente que o circunda. A excelente fotografia do filme não se preocupa em priorizá-lo, e, se por alguns momentos as luzes alcançam seu rosto – sejam os faróis dos carros ou o Empire State Building -, não é de forma bela ou harmoniosa que ele é iluminado. Man Push Cart é o drama dos imigrantes que vivem ora no escuro ora nas luzes feitas por outros e destinada a outros também.

Esse drama, porém, não é tratado da forma mais fácil e perigosa: a miserabilista. Ao contrário de Coisas Belas e Sujas, de Stephen Frears, filme no qual cada fotograma era dedicado a explorar como o imigrante ilegal na Inglaterra é injustiçado e miserável, a crueza de Man Push Cart, a interpretação opaca de Ahmad Razvi, a falta de explicações psicológicas do personagem dão ao filme uma vida e uma força muito maiores do que se esperaria a princípio dele. Sim, Ahmad é pobre. Sim, o filme é melancólico, triste e trágico. Sim, os imigrantes em Nova Iorque realmente não têm muitas chances de sucesso. Todas essas questões, contudo, acontecem de forma natural, quase como se o diretor, no fundo, tentasse construir um happy end, mas a realidade o impedisse. Ahmad não é um simples modelo de papel, mas um corpo andando, sendo modelado e resistindo pelas ruas e esquinas da cidade. E, por ser impregnado dessas ruas e esquinas, é que Man Push Cart se distancia das concessões miserabilistas (que volta e meia infelizmente surgem, na trilha sonora, na leve vilanização de um amigo ou em alguns movimentos de câmera) e transforma-se em um grande filme político. Porque, em vez de discursar sobre, revela uma realidade.

É importante que essa revelação se dê, e talvez não pudesse ser o contrário, em um personagem totalmente opaco. Sabemos, ao longo do filme, que Ahmad era um cantor de sucesso no Paquistão, que foi à Nova Iorque com a mulher que amava, que a mulher morreu e os pais dela consideram ele culpado, que por causa disso Ahmad não pode ver seu filho. Ao mesmo tempo, ficamos sem descobrir por que ele deixou de ser um cantor, como e quando a mulher morreu, qual a razão do protagonista ser considerado culpado por isso. Mesmo o breve flashback – um homem feliz com uma mulher, e pronto – que surge abruptamente serve mais para esconder do que para revelar. Se não há tempo, na vida de Ahmad, para ver seu filho, quanto mais para psicologismos. Man Push Cart existe unicamente no presente, na relação de Ahmad com a cidade, com a espanhola que conhece, com os amigos de rua vivendo em situação igual a ele. O personagem tem uma história diferente dos outros, mas e daí? A cidade engole a todos da mesma maneira, e torcemos pela luta de Ahmad como poderíamos torcer pela luta de seu vizinho. Um dos grandes méritos de Man Push Cart é o de inventar subtramas para esquecê-las logo depois.

Nessa luta de um homem para escapar da prisão de uma cidade, não é só a escuridão da fotografia que exerce seu papel. O posicionamento da câmera, quase sempre fechado, muitas vezes confuso, procurando seguir os movimentos de Ahmad nos pequenos espaços em que ele sobrevive; os cortes, que parecem existir antes do momento esperado, seja porque o plano ainda não teve tempo de respirar, seja porque a seqüência ainda não deveria ter acabado (muitas vezes ela é interrompida antes do momento em que deveria ser justificada); e, principalmente, o trabalho de som direto, servem não apenas para reiterar a desorientação do protagonista como para colocar-nos em uma situação também de enorme incômodo em nossas poltronas. A seqüência em que Ahmad perde seu carrinho e, enquanto o procura, toda a tensão existe e se amplia nas vozes de pessoas e buzinas de carros de Nova Iorque, ensurdecedoras, já justificam plenamente as opções do diretor, assim como os momentos em que o protagonista leva seu trailer de madrugada por entre os carros e seus faróis já dão por si sós um belo retrato da melancolia urbana.

Não é só de prisões, porém, que Man Push Cart é feito. Há, em toda a encenação, a tentativa do protagonista de escapar às esquinas de Nova Iorque, às buzinas e luzes dos automóveis, aos trailers de bagel e café dentro dos quais tem de gastar 10 anos de sua vida. Quão maior é essa sensação de aprisionamento, maior também é a beleza de seu sentimento pelo filho que nunca vê, de sua paixão pela espanhola que vende jornal na banca vizinha, de sua relação com o filhote de gato, das pequenas cenas de cotidiano que permeiam a narrativa. Cada fuga – ou, em outras palavras, cada pequena batalha travada – passa a ter uma força e uma densidade surpreendentes, cada olhar comporta dentro de si um peso enorme. E, se este peso acaba por cair nos ombros de Ahmad – o filho permanece distante, a mulher vai embora, o trailer é roubado, o gato morre –, o fato de ele continuar a resistir torna Man Push Cart um grande filme. Na cena final, o protagonista ainda vende bagels, no trailer do amigo, em plena madrugada, sem olhar algum de tristeza na cara. Pois a vida ainda existe, e, se há vida, uma forma estranha de esperança a acompanha. Eis a melhor, e a mais triste, das tragédias.


Leonardo Levis