Koistinen
trabalha de vigia noturno, há três anos, mas pretende
abrir sua própria empresa de segurança. Vez por outra,
lancha no trailer da única mulher com quem troca breves
palavras. Solitário, envolve-se com loira misteriosa
que, a mando dos gângsteres locais, engana-o para facilitar
o assalto à joalheria. Utilizando a estrutura narrativa
arquetípica ao filme noir, Aki Kaurismaki, em Luzes
na Escuridão, radicaliza o sentido fantasmagórico
que o herói já possuía em O Homem Sem Passado,
e transforma a cidade por onde ele vaga em imenso limbo,
região de passagem, na qual convergem os sonhos e as
esperanças do futuro e as frustrações e ausências do
dia-a-dia.
Pobre diabo, fracasso absoluto que sobrevive graças
a emprego miserável, acaba seduzido por mulher fatal,
que o leva ao crime contra sua vontade, enredando-o
na teia trágica do destino. Ponto de partida narrativo
de Luzes na Escuridão, a premissa, cara ao cinema
noir hollywoodiano dos anos 40 e 50, é, no entanto,
esvaziada por Kaurismaki, menos interessado na evolução
dramática dos acontecimentos do que na construção da
atmosfera fantasmática em que os personagens existem,
acentuando ainda mais o fatalismo que o filme herda
de Lang, Siodmak, Mann, Kubrick, Huston e Preminger.
Em Luzes na Escuridão, não há motivações psicológicas,
explicações para a perseguição que Koistinen sofre dos
bandidos (depois que participa involuntariamente do
roubo, ele continua a ser humilhado – primeiro, sendo
preso e, depois, espancado), ou mesmo quaisquer sinais
de afetos e de sentimentos exteriorizados: restam apenas,
ao contrário, indícios de vidas despedaçadas, que aguardam
no vácuo a realização de sonhos belos, mudos e impossíveis.
Sonhos de amor e de contato humano. Se em O Homem
Sem Passado, Kaurismaki proporciona ao desmemoriado
a chance de recomeçar na cidade operária que o acolhe
com carinho, sobretudo através do relacionamento com
a funcionária do Exército da Salvação, em Luzes na
Escuridão o diretor se mostra bem mais amargo e
duro quanto ao herói: salvo as conversas esporádicas
com a dona do trailer e com o menino negro, tão tênues
e frágeis que não despertam simpatia ou identificação
no espectador, Koistinen – ele próprio excessivamente
mecânico, contido, desconfiado, frio e lacônico – encontra-se
em mundo hostil, gélido e violento, no qual seus companheiros
de trabalho o odeiam e seu chefe não o conhece após
anos de serviço, em que repete todos os dias a mesma
rotina maçante, onde a firma de segurança, quando olha
para o futuro, torna-se miragem mais e mais longínqua
e inalcançável. De menor apelo cômico e, em conseqüência,
de maior dificuldade para se assimilar: lúgubre e soturno,
Luzes na Escuridão aposta na abundância de tempos
mortos, em que nada acontece ou nos quais a mesma ação
ocorre várias e várias vezes. Koistinen anda para lá
e para cá, janta em casa, come no trailer, lava pratos,
sempre no vazio de significados e na expectativa de
que estes finalmente lhe apareçam.
Kaurismaki lança-se na ousada proposta de filmar não
os objetos definidos, mas o que há entre eles (parafraseando
Jean-Luc Godard a respeito de Velázquez em O Demônio
das Onze Horas), visto que Luzes na Escuridão
procura justamente representar o “entre”, a passagem,
da frustração à esperança, da realidade ao sonho, da
morte à vida – sentimentos indefiníveis, ambientes incertos
e nebulosos. Koistinen está em permanente movimento,
a ponto de definir a prisão apenas como lugar de onde
não se pode sair, assim como o filme trabalha sobretudo
no crepúsculo ou na aurora, quando não se está nem de
dia, nem de noite. De modo que se retorna a Velázquez,
pintor do crepúsculo (segundo Jacques Aumont em O
Olho Interminável), do momento em que as coisas
parecem se fundir no ar, em que seus contornos se apagam
e o olhar começa a perceber sonhos e fantasmas – o mundo
de horror que o cineasta inventa para Koistinen, no
qual o presente não passa de um fardo e o futuro, de
uma ilusão, em que o trato com o próximo é marcado pela
mesquinhez e pela crueldade e no qual não se pode fugir
do próprio destino.
Quando menos se espera, porém, Aki Kaurismaki ainda
reserva a Koistinen um instante de indescritível beleza:
a amiga que, ao final, ajuda-o, tocando-lhe as mãos.
É como se, embora inverossímil, fosse absolutamente
fundamental acreditar na redenção e na vida. A necessidade
de ter fé, o tema de Luzes na Escuridão.
Paulo Ricardo de Almeida
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