AS LEIS DA FAMÍLIA
Daniel Burman, Derecho de Família, Argentina, 2006

O argentino Daniel Burman veste de forma desavergonhada a camisa de cineasta judeu. E como tal não deixa também de assumidamente refletir em sua obra a herança de outros marcantes diretores também judeus. De Woody Allen vem a preferência por trabalhar com comédias agridoces, onde humor e drama se sobrepõem, pontuadas por um protagonista que se apresenta como alter-ego do autor – sempre chamado Ariel e vivido pelo ator-fetiche Daniel Hendler – cujo ponto de vista é destacado por uma narração em primeira pessoa. De Steven Spielberg vem a obsessão pela revisão de traumáticas relações entre pai e filho, sendo que a figura paterna carrega sempre em si algum fantasma a ser exorcizado. Mesmo em Todas as Aeromoças Merecem o Céu (2002), filme que guarda características ímpares em sua obra, a protagonista feminina vinha de uma relação complicada com a mãe.

Com isso, podemos perceber que uma maior originalidade não é fator a ser considerado na filmografia de Burman. Mostra-se aqui flagrante, no entanto, sua busca por trabalhar em um universo autoral, marcado pela exploração de temas, personagens e ambientações recorrentes. Esperando o Messias (2000), O Abraço Partido (2004) e agora As Leis da Família (2006) podem, em muitos aspectos, serem considerados praticamente um mesmo filme, guardando suas devidas variações. O que fica claro na visão conjunta do trio é a evolução de Burman. Se o primeiro é filme em muitos aspectos insatisfatório, com As Leis da Família o diretor consegue alcançar um domínio incontestável de sua proposta. Seja na manipulação do tempo narrativo, onde predomina a agilidade no trato da comédia, seja no amadurecimento de uma abordagem temática sobre as relações familiares.

As primeiras cenas de As Leis da Família sugerem uma repetição do que já fora visto em O Abraço Partido. A narração do dia-a-dia do pai do protagonista, advogado, assim como ele, é apresentado com detalhes, do mesmo modo como fora, na abertura do filme de 2004, a rotina da galeria. Mas logo veremos que o novo filme de Burman vai optar por um rumo diverso. Fica inicialmente claro que Ariel segue a mesma profissão do pai porém em atividades diversas, preferindo o magistério e a defensoria pública a colocar-se ao lado do pai no tradicional escritório. Não há como negar um flagrante distanciamento entre pai e filho, mas ao contrário de O Abraço Partido, onde a figura do pai ausente era carregada em traumas intensos, esses traumas praticamente inexistem em As Leis da Família. Essa ausência de traumas torna-se, portanto, não somente uma característica marcante, como também uma das principais razões para o êxito do filme.

É assim que, mesmo que Burman ressalte nela os aspectos cômicos e pitorescos, a vida de Ariel e sua família corre num fluxo de naturalidade. Ariel Perelman vai galgando etapas em sua trajetória – pessoal, sentimental, profissional - sem maiores tropeços, que poderiam ser sugeridos por sua personalidade e comportamento, digamos, peculiar. Vemos aqui também uma visão mais complexa do tema da paternidade pois desta vez, Ariel, além de filho é também pai de um garoto de 2 anos. Parte daí a principal questão que permeia As Leis da Família: como assumir os diversos papéis – pai, marido, filho - que a rotina familiar demanda em um indivíduo, preservando ao mesmo tempo uma identidade pessoal e uma vida profissional atribulada.

Surge então a lembrança de outra comédia recente que parte de um pressuposto semelhante: Click de Frank Coraci. Se a persona cinematográfica de Daniel Hendler guarda, especialmente em As Leis da Família, cada vez mais diversas características que vemos também em Adam Sandler, vale a pena destacar como, partindo de um mesmo assunto, dois filmes seguem rumos extremamente diversos para concretizar o encontro dos protagonistas consigo mesmo e com seus papéis familiares. No filme americano, todas as reflexões e conseqüentes resoluções para o personagem de Sandler surgem a partir de elementos da ordem do extraordinário, como o aparelho de controle-remoto que lhe permitiria assumir o controle total de sua vida, mas que acaba por gerar cada vez mais um total descontrole. Já no filme de Burman, Ariel irá assumir a percepção e resolução de seus questionamentos através de elementos puramente ordinários, de um fluxo natural da vida cotidiana.

Com isso, toda a narrativa de As Leis da Família vai se desenvolvendo a partir de uma quase total ausência de conflitos, numa sucessão de não-eventos. Burman é extremamente feliz em frustrar as expectativas de que o tênue equilíbrio no qual vive a família Perelman poderia ser quebrado a partir de um elemento dramatúrgico que resultaria em alguma ruptura traumática. E, apesar dessa possibilidade de trauma ou conflito várias vezes ameaçar aparecer ao longo do filme – não faltariam aqui exemplos para elementos que, em roteiros estruturados em uma forma clássica, acabariam marcando pontos de virada, como uma viagem inusitada da esposa, a presença de uma babá seminua na cama de Ariel, ou mesmo a chegada da morte – tudo em As Leis da Família acaba sendo resultado de uma naturalidade acachapante que não é abandonada até a conclusão do filme.

Ao que tudo leva a sugerir, assim como seu personagem-símbolo Ariel, o diretor Daniel Burman parece, com As Leis da Família, ter galgado mais alguns estágios de maturidade e superação de traumas evidentes em sua obra anterior. Esse amadurecimento que se concretiza numa maior interiorização e personalização da abordagem pode ser também destacado a partir do momento em que o tema da crise econômica, determinante não somente em Esperando o Messias e O Abraço Partido, mas também em parcela extremamente significativa da produção argentina recente, aparece aqui apenas de forma sutilmente tangencial. Se novos rumos serão trilhados pelo cineasta a partir de agora, só o tempo e os novos filmes dirão. O que não se pode duvidar é que fica no ar uma expectativa intensa sobre o que Burman poderá oferecer daqui pra frente.


Gilberto Silva Jr.