Juventude
em Marcha se desenvolve sob o signo da hipnose.
Algo hipnótico te faz dormir ou te deixa siderado?
Na resposta a essa questão, abrem-se os portões
da glória ou a porta de saída da sala
de exibição. Nós ficamos com a
primeira opção, pois Juventude em Marcha
é um daqueles raros filmes que, alterando apenas
uma ou duas coisas na nossa percepção
geral das coisas no cinema, modificando docilmente
a relação que se tem diante de pessoas
em frente a uma câmera, reconfigura inteiramente
a relação que temos com as imagens, tanto
de um ponto de vista da representação
quanto, sobretudo, da organização interna
das coisas que ocupam o quadro e das relações
geométricas de composição do espaço.
Ao assistir a Juventude em Marcha, parece que
pousamos num outro planeta e vemos um artefato, um objeto
cultural inteiramente novo, que só por coincidência
chama-se, junto com outros filmes, cinema. Não
é toda hora que um filme aparece e parece reinventar
o cinema ao descobrir maneiras novas de posicionar uma
câmera e dispor pessoas e objetos em frente a
ela. Melhor ainda: isso não acontece sob a égide
do exercício de um ineditismo, de um exibicionismo
vistoso qualquer, mas ao contrário, humildemente,
pela necessidade interna do filme de se relacionar com
seus personagens. Se o novo filme de Pedro Costa parece
um filme de outro planeta, é menos por ter pouco
a ver com as questões terrenas (ao contrário,
pode-se dizer que o filme tem muito mais a ver com as
questões terrenas do que quase todos os outros
filmes já feitos) mas por se organizar de forma
muito diferente dos outros filmes que conhecemos, estabelecer
um ritmo, uma duração, uma atmosfera inteiramente
diferentes da nossa relação mais costumeira,
e além disso tornar ridículas certas questões
de base nas subdivisões de registro: ficção/documentário,
representação/
espontaneidade, roteiro/fala livre. Mas, na verdade,
essas são questões inteiramente exteriores
a Juventude em Marcha. O filme pode espantar
por essas razões exteriores, mas ele encanta
por motivos totalmente diferentes.
Uma câmera posicionada freqüentemente a alguns
graus acima da linha paralela ao solo (contra-plongés),
uma câmera geralmente disposta apontando para
as linhas verticais que limitam as paredes, uma luz
direcionada muitas vezes na parte central inferior da
tela, criando uma partilha incomum de luz e sombras.
Às vezes, a câmera se coloca também
fora do eixo vertical de 90º em relação
ao solo. E pronto. Basta o uso sistemático desses
elementos e Juventude em Marcha reinventa o olhar,
reinventa a organização visual do quadro.
Nasce um equilíbrio de composição
estranho e sedutor, sem profundidade de campo ou ponto
de fuga, em que cada movimento para perto ou longe do
quadro implica sobretudo num aumento ou diminuição
das dimensões da figura. Se lembra alguma coisa,
lembra Cézanne que, aliás, é
influência do casal Straub/Huillet, que por sua
vez influenciou Costa em suas linhas brutas que
restituíam materialidade àquilo que era
pintado. Pois é um sentimento de materialidade
incomum que brota da visão de Juventude em
Marcha, de um espaço que ganha outra pregnância,
de rostos, olhares e disposição de corpos
que, fugindo do naturalismo de interpretação,
ganham outros contornos e são carregados de sentidos
diferentes podemos associar a Bresson ou à
dupla Straub/Huillet, mas na verdade a única
semelhança é a fuga total do naturalismo.
Essa câmera em contra-plongé, essa luz
incomum, esse posicionar-se da câmera diante de
fundos que fazem > (geralmente dentro dos aposentos
de uma casa) ou < (geralmente fora) criam ao mesmo
tempo um sentimento simultâneo, quiçá
paradoxal, de monumentalidade e intimidade, de um apego
aos personagens e a suas questões, mas ao mesmo
tempo uma grandiosidade que surge a partir do ângulo
em que se filma (o contra-plongé como a opção
preferida para filmar figuras que detêm poder).
Falamos em personagens, mas é impreciso. Temos
Ventura, nosso protagonista ou guia, que se desloca
entre os barracos favelizados do bairro de Fontainhas
e os novos apartamentos, de um branco asséptico,
que foram construídos pelo Estado para o processo
de realojamento. O filme não desenvolve nenhuma
controvérsia além da visual: Fontainhas,
mesmo suja, parece muito mais calorosa do que as opressivas
paredes brancas das novas construções.
É um pouco esse sentimento de passado aquecido
que passa por Ventura, um certo elemento de companheirismo
que havia entre os operários, um sentimento que
também povoava a comemoração da
independência de Cabo Verde (Ventura, como diversos
outros personagens, são imigrantes do Cabo Verde),
acontecida no mesmo 5 de julho em que Ventura conquistou
a futura mãe de seus filhos. Juventude em Marcha
se constrói nessa indefinição entre
vida amorosa e liberdade política, seio familiar
e vida comunitária. De fato, todos aquele que
Ventura encontra, ele considera como filhos. E aos filhos
a gente dá a mão, aos filhos a gente ouve,
aos filhos a gente presta assistência, aos filhos
a gente oferece abrigo. Elegância e delicadeza
de Ventura, que em seu terno preto e sua camisa branca
surrada representa o sentimento perdido de uma classe
perdida (dir-se-ia um novo Príncipe Salina, saído
não da classe aristocrática mas da extinta
classe operária?), um sentimento de passado que
se mistura ao seu amor perdido. Afinal, a solenidade
com que Ventura dita a seu amigo Lento uma carta não
revelaria aí a lembrança da possível
carta que Ventura escreveu a seu primeiro amor quando
deixou Cabo Verde e foi para Portugal? Não seria
essa carta, assim como a vitrola que toca a música
de libertação política "Labanta
Braço", uma lembrança nostálgica,
ao mesmo tempo sentimental e política, de um
outro estado de coisas?
Juventude em Marcha também revela o paradoxo
do seu título. "Juventude em Marcha"
é um dos lemas da libertação caboverdiana,
mas no filme não vemos jovens, e se eles estão
em alguma coisa, não é em marcha. Ao contrário,
eles evoluem numa lentidão que o filme acolhe
e aquece. Movimento, por assim dizer, quem faz mesmo
é Ventura, com seu coração de ouro,
com seu senso anacrônico de fraternidade revolucionária,
passando de canto em canto, visitando seus filhos adotivos,
passando de Fontainhas para seu novo apartamento, ou
visitando o museu que ajudou a construir como pedreiro.
A marcha dessa juventude não vai no sentido evocado
pela libertação do país e por Ventura.
O filme se monta, assim, a partir de uma relação
entre passado e presente, um presente em que se vive
atualmente e um passado que se vive na memória,
um passado de esperança e um presente que se
vive na morosidade do dia-a-dia, na lenta ressaca do
depois (assim, o filme tece um diálogo possível
com outro tour de force de duração, o
belíssimo Amantes Constantes de Philippe
Garrel). Mas se Juventude em Marcha aponta para
um passado revolucionário e um presente desesperançoso
através da figura de Ventura, ao mesmo tempo
ele mostra uma intensa confiança nos poderes
da arte em resistir ao estado das coisas, em criar ritmos,
atmosferas e comportamentos que exigem uma adaptação,
uma mudança de sintonia da parte do espectador.
Juventude em Marcha não é um filme
que se ganha de mão beijada, mas que se conquista.
Lógica revolucionária num mundo ainda
e sempre separado, transformado em mercadoria, desaquecido.
O filme de Pedro Costa é uma grande utopia de
comunidade, uma comunidade que se estende ao espectador,
mas apenas se ele quiser. Filme livre, ele repassa essa
liberdade ao espectador. E é por tudo isso que
Juventude em Marcha encanta e deslumbra. Adiante,
Pedro Costa!
Ruy Gardnier
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