JUVENTUDE EM MARCHA
Pedro Costa, Juventude em Marcha, Portugal, 2006

Juventude em Marcha se desenvolve sob o signo da hipnose. Algo hipnótico te faz dormir ou te deixa siderado? Na resposta a essa questão, abrem-se os portões da glória ou a porta de saída da sala de exibição. Nós ficamos com a primeira opção, pois Juventude em Marcha é um daqueles raros filmes que, alterando apenas uma ou duas coisas na nossa percepção geral das coisas no cinema, modificando docilmente a relação que se tem diante de pessoas em frente a uma câmera, reconfigura inteiramente a relação que temos com as imagens, tanto de um ponto de vista da representação quanto, sobretudo, da organização interna das coisas que ocupam o quadro e das relações geométricas de composição do espaço. Ao assistir a Juventude em Marcha, parece que pousamos num outro planeta e vemos um artefato, um objeto cultural inteiramente novo, que só por coincidência chama-se, junto com outros filmes, cinema. Não é toda hora que um filme aparece e parece reinventar o cinema ao descobrir maneiras novas de posicionar uma câmera e dispor pessoas e objetos em frente a ela. Melhor ainda: isso não acontece sob a égide do exercício de um ineditismo, de um exibicionismo vistoso qualquer, mas ao contrário, humildemente, pela necessidade interna do filme de se relacionar com seus personagens. Se o novo filme de Pedro Costa parece um filme de outro planeta, é menos por ter pouco a ver com as questões terrenas (ao contrário, pode-se dizer que o filme tem muito mais a ver com as questões terrenas do que quase todos os outros filmes já feitos) mas por se organizar de forma muito diferente dos outros filmes que conhecemos, estabelecer um ritmo, uma duração, uma atmosfera inteiramente diferentes da nossa relação mais costumeira, e além disso tornar ridículas certas questões de base nas subdivisões de registro: ficção/documentário, representação/
espontaneidade, roteiro/fala livre. Mas, na verdade, essas são questões inteiramente exteriores a Juventude em Marcha. O filme pode espantar por essas razões exteriores, mas ele encanta por motivos totalmente diferentes.

Uma câmera posicionada freqüentemente a alguns graus acima da linha paralela ao solo (contra-plongés), uma câmera geralmente disposta apontando para as linhas verticais que limitam as paredes, uma luz direcionada muitas vezes na parte central inferior da tela, criando uma partilha incomum de luz e sombras. Às vezes, a câmera se coloca também fora do eixo vertical de 90º em relação ao solo. E pronto. Basta o uso sistemático desses elementos e Juventude em Marcha reinventa o olhar, reinventa a organização visual do quadro. Nasce um equilíbrio de composição estranho e sedutor, sem profundidade de campo ou ponto de fuga, em que cada movimento para perto ou longe do quadro implica sobretudo num aumento ou diminuição das dimensões da figura. Se lembra alguma coisa, lembra Cézanne – que, aliás, é influência do casal Straub/Huillet, que por sua vez influenciou Costa – em suas linhas brutas que restituíam materialidade àquilo que era pintado. Pois é um sentimento de materialidade incomum que brota da visão de Juventude em Marcha, de um espaço que ganha outra pregnância, de rostos, olhares e disposição de corpos que, fugindo do naturalismo de interpretação, ganham outros contornos e são carregados de sentidos diferentes – podemos associar a Bresson ou à dupla Straub/Huillet, mas na verdade a única semelhança é a fuga total do naturalismo. Essa câmera em contra-plongé, essa luz incomum, esse posicionar-se da câmera diante de fundos que fazem > (geralmente dentro dos aposentos de uma casa) ou < (geralmente fora) criam ao mesmo tempo um sentimento simultâneo, quiçá paradoxal, de monumentalidade e intimidade, de um apego aos personagens e a suas questões, mas ao mesmo tempo uma grandiosidade que surge a partir do ângulo em que se filma (o contra-plongé como a opção preferida para filmar figuras que detêm poder).

Falamos em personagens, mas é impreciso. Temos Ventura, nosso protagonista ou guia, que se desloca entre os barracos favelizados do bairro de Fontainhas e os novos apartamentos, de um branco asséptico, que foram construídos pelo Estado para o processo de realojamento. O filme não desenvolve nenhuma controvérsia além da visual: Fontainhas, mesmo suja, parece muito mais calorosa do que as opressivas paredes brancas das novas construções. É um pouco esse sentimento de passado aquecido que passa por Ventura, um certo elemento de companheirismo que havia entre os operários, um sentimento que também povoava a comemoração da independência de Cabo Verde (Ventura, como diversos outros personagens, são imigrantes do Cabo Verde), acontecida no mesmo 5 de julho em que Ventura conquistou a futura mãe de seus filhos. Juventude em Marcha se constrói nessa indefinição entre vida amorosa e liberdade política, seio familiar e vida comunitária. De fato, todos aquele que Ventura encontra, ele considera como filhos. E aos filhos a gente dá a mão, aos filhos a gente ouve, aos filhos a gente presta assistência, aos filhos a gente oferece abrigo. Elegância e delicadeza de Ventura, que em seu terno preto e sua camisa branca surrada representa o sentimento perdido de uma classe perdida (dir-se-ia um novo Príncipe Salina, saído não da classe aristocrática mas da extinta classe operária?), um sentimento de passado que se mistura ao seu amor perdido. Afinal, a solenidade com que Ventura dita a seu amigo Lento uma carta não revelaria aí a lembrança da possível carta que Ventura escreveu a seu primeiro amor quando deixou Cabo Verde e foi para Portugal? Não seria essa carta, assim como a vitrola que toca a música de libertação política "Labanta Braço", uma lembrança nostálgica, ao mesmo tempo sentimental e política, de um outro estado de coisas?

Juventude em Marcha também revela o paradoxo do seu título. "Juventude em Marcha" é um dos lemas da libertação caboverdiana, mas no filme não vemos jovens, e se eles estão em alguma coisa, não é em marcha. Ao contrário, eles evoluem numa lentidão que o filme acolhe e aquece. Movimento, por assim dizer, quem faz mesmo é Ventura, com seu coração de ouro, com seu senso anacrônico de fraternidade revolucionária, passando de canto em canto, visitando seus filhos adotivos, passando de Fontainhas para seu novo apartamento, ou visitando o museu que ajudou a construir como pedreiro. A marcha dessa juventude não vai no sentido evocado pela libertação do país e por Ventura. O filme se monta, assim, a partir de uma relação entre passado e presente, um presente em que se vive atualmente e um passado que se vive na memória, um passado de esperança e um presente que se vive na morosidade do dia-a-dia, na lenta ressaca do depois (assim, o filme tece um diálogo possível com outro tour de force de duração, o belíssimo Amantes Constantes de Philippe Garrel). Mas se Juventude em Marcha aponta para um passado revolucionário e um presente desesperançoso através da figura de Ventura, ao mesmo tempo ele mostra uma intensa confiança nos poderes da arte em resistir ao estado das coisas, em criar ritmos, atmosferas e comportamentos que exigem uma adaptação, uma mudança de sintonia da parte do espectador. Juventude em Marcha não é um filme que se ganha de mão beijada, mas que se conquista. Lógica revolucionária num mundo ainda e sempre separado, transformado em mercadoria, desaquecido. O filme de Pedro Costa é uma grande utopia de comunidade, uma comunidade que se estende ao espectador, mas apenas se ele quiser. Filme livre, ele repassa essa liberdade ao espectador. E é por tudo isso que Juventude em Marcha encanta e deslumbra. Adiante, Pedro Costa!

Ruy Gardnier

 

 





Um espaço inteiramente reconfigurado...


... e uma utopia de comunidade (Ventura e um de seus filhos adotivos em (Juventude em Marcha de Pedro Costa)