Não
é fácil suportar os filmes de Alejandro
Jodorowsky. O cineasta chileno tem uma frase célebre
em que diz que a maioria dos cineastas faz filmes com
os olhos, ao passo que ele os faz com seus testículos.
Por mais exagerada que a frase possa soar, é
extremamente coerente com um certo sentido da obra de
Jodorowsky, de um cinema em busca de seu lado mais instintivo
de criação (ainda que ele os faça
sem dúvida com os olhos, dada sua capacidade
de criar imagens impressionantes em muitos sentidos).
Seus filmes trabalham uma evolução interessante
que está lá desde o começo de sua
carreira, quando lida diretamente com parceiros mais
próximos (como Fernando Arrabal), e vai, filme
a filme passando a ser cada vez mais único e
transgressivo.
Por maiores que sejam as qualidades de Fando y Lis,
seu primeiro longa, não é difícil
desmerecê-lo como mais um filme decalcado de Buñuel.
Muitos elementos que viriam a se solidificar como parte
da obra jodorowskiana já estavam presentes, como
o caminhar por um espaço indefinido, a idéia
da narrativa ser uma espécie de jornada. Mas
ainda é claro que trata-se de um cinema muito
identificado com um movimento, o que pode ser uma camisa
de força quando o cineasta é tão
livre como Jodorowsky. Figura cheia de misticismos,
o autor de El Topo sempre possuiu uma visão
forte e particular sobre os relacionamentos, a família,
e principalmente sobre religião. Seu fascínio
pelas relações passionais entre amantes
e familiares percorre toda sua obra. O amor de Fando
e Lis é apenas uma amostra de algo que viria
a ser cada vez mais explorado mais a frente. Em El
topo vemos a essência do sentimento de Jodorowsky
logo em sua abertura, sensacional, quando vemos o pistoleiro
– interpretado pelo próprio cineasta – que cavalga
em seu cavalo negro ao lado do filho nu, interpretado
por seu próprio filho, e vem informá-lo
de que já havia completado sete anos, e era agora
um homem. Junto dos dizeres, uma ordem: enterrar seu
primeiro brinquedo e um retrato de sua mãe.
No próprio El Topo ainda existem outras
imagens de relações passionais de maior
interesse. Em meio a sua longa jornada, o pistoleiro
El Topo irá em certo momento carregar consigo
uma mulher que chamará de Mara. Depois de algum
tempo juntos, ela lhe pede que prove seu amor enfrentando
os quatro mestres do deserto, um desafio que ele aceita.
A viagem pelo deserto, que começa como uma provação
de amor, se desliga por completo deste sentido, tornando-se
uma jornada para que ele se assuma de vez como uma figura
divina. Já Mara passa a se sentir enciumada por
uma pistoleira que passa a acompanhá-los no caminho.
Esse sentimento inicial, no entanto, rapidamente se
transforma em paixão. Ao fim deste ato da jornada
de nosso herói, Mara finalmente escolherá
entre os dois, metralhando El Topo.
A relação entre pais e filhos, que recebe
algum destaque em El Topo, retorna com impacto
em Santa Sangre, um de seus últimos trabalhos.
Na obra mais abertamente cigana de Jodorowsky, um jovem
que enlouquecera ao ver o pai decepar os dois braços
da mãe e depois se matar, foge do hospício
para se tornar os braços de sua mãe no
circo. Mais uma vez dois de seus filhos entram em cena
interpretando os protagonistas de cada um dos dois atos.
Boa parte de Santa Sangre é basicamente
sobre a jornada deste jovem para se desprender da imagem
de sua mãe que não lhe permitia enfim
estar livre. Trata-se de outro filme cheio de imagens
fortes, com um conceito bem definido, mas onde o surrealismo
instintivo já parece um pouco mais acomodado.
A imaginação e capacidade de construção
de Jodorowsky segue intacta, mas seu lado mais agressivo
é deixado um pouco de lado. O filme também
marca por ser uma obra mais definida, onde é
possível traçar onde Jodorowsky queria
chegar de forma direta. Uma das características
mais fortes de seu cinema sempre foi o das imagens estarem
num estado mais instintivo e indefinido. Em Santa
Sangre mesmo as mais fortes cenas, como as com a
cobra, aparecem de forma um pouco mais acomodada. O
que não lhes tira toda a força, de forma
alguma.
O aspecto religioso é algo presente em todas
as obras de Jodorowsky, que sempre mostrou-se interessado
neste mosaico de crenças que forma o mundo. Das
mais variadas, entre deuses e seres divinos, o imaginário
religioso povoa seus filmes, sendo talvez a questão
principal em El Topo. Mas é em The
Holy Mountain que se encontra seu filme mais diretamente
aberto ao assunto. Sem dúvida o mais surrealista
e porra-louca dos filmes do cineasta, Holy Mountain
mostra sem pudores as mais variadas formas de religião
e crenças, apontando para o vazio que se constrói
em torno de tantas delas. O menos narrativo de seus
filmes segue uma figura com a aparência de Cristo,
que caminha por cidade em que os mais variados eventos
sensacionalistas estão ocorrendo, num mundo dominado
pelo fascismo. Em certo momento, após ser alcoolizado,
ele é jogado em meio à um zilhão
de bonecos com a imagem de Cristo. Após ter um
acesso de ira, ele tenta carregar uma destas imagens
para uma igreja, mas é expulso dela. A figura
acabará se encontrando com um alquimista, conhecerá
a história de outras figuras divinas que vieram
de outros planetas e se juntaram numa jornada em busca
da montanha sagrada que guarda o segredo da imortalidade.
Mas isso tudo ocorre na última meia-hora de um
filme de duas horas. Todos os seres divinos possuem
uma imagem como as de Cristo, e antes de partirem em
sua jornada eles precisam queimá-las. Ainda há
pelo menos uma seqüência inacreditável,
quando Jodorowsky encena com lagartos e sapos uma espécie
de reino, com direito inclusive a figurino para os anfíbios.
A cena termina com uma explosão e sapos fugindo
de um vulcão de sangue. Feito após o sucesso
de El Topo, Jodorowsky aproveitou a oportunidade
de somar financiamento e liberdade, realizando um filme
único em todos os sentidos. É muito difícil
definir qualquer coisa em Holy Mountain, é
uma coleção de imagens sinistras, arquitetadas
com um apuro rigoroso. Pode não ser o melhor
trabalho do cineasta, mas é de longe o que mais
apresenta a essência dele, da sua busca pelo limite.
É o supra-sumo do cinema extremo.
Mas voltemos à sua obra-prima, El Topo.
Produzido como um faroeste spaghetti, o filme
lida com diversas situações do gênero
ao seu modo. O filme acompanha a jornada dessa figura
divina que o cineasta encarna em cena, que cavalga por
cidades destruídas, duela ao estouro de um balão,
se auto proclama Deus quando aplica sua justiça
à um coronel fascista: a castração.
Em certo momento, é possível até
mesmo acreditar que ele realmente o seja, não
só pela forma destemida como enfrenta os fascistas,
mas como quando transforma a água salgada em
doce para que sua amante beba. Mas aos poucos Jodorowsky
vai desfazendo essa imagem, e vamos percebendo uma figura
perdida, em busca de algo. Esta é a jornada de
El Topo pelo deserto surrealista de Jodorowsky. Sua
busca pelos duelos com os quatro mestres do deserto
que começam como uma prova de amor a sua amante
evoluem rapidamente para uma busca dele próprio,
talvez uma forma de descobrir e aceitar sua condição
de ser divino. O primeiro mestre que enfrenta é
o mais fascinante dos quatro, um homem cego que não
teme as balas e por isso não pode ser atingido.
Elas batem em seu corpo e caem no chão. O mestre
é assessorado por um duo formado por um homem
sem braços e outro sem pernas, unidos por um
laço. Pessoas deformadas e decapitadas são
figuras constantes na obra de Jodorowsky, que era fascinava
por estas figuras e sua imagem. Os duelos sempre fogem
da obviedade, acontecendo de formas bem diferentes umas
das outras. O quarto e último mestre é
um velho que trocou sua arma por uma rede de catar borboletas.
Os tiros ricocheteiam na rede e retornam na direção
de El Topo. Incapaz de vencê-lo, ele escuta do
velho que não mais teme a morte e prova isso
ao se matar.
A jornada de El Topo não termina aí, nem
quando é baleado por sua amante que o troca por
uma pistoleira. Atingindo um êxtase incomum, ele
é abandonado desacordado por elas e é
salvo por um grupo de seres abandonados pela sociedade.
Anos se passam e El Topo finalmente acorda de seu longo
exílio. Ele já não parece o mesmo,
inclusive fisicamente. Ele descobre que aquelas pessoas
deformadas eram abandonadas dentro de um túnel
por serem filhos de incestos, e assume como sua missão
divina libertá-los. Para isso sobe com uma mulher
anã até a cidade e a descobre devastada
por mais figuras fascistas, que adotam um símbolo
que em muito se assemelha ao da maçonaria. Neste
terceiro ato, vemos alguns dos momentos mais brilhantes
da obra de Jodorowsky, como quando filma cenas de comédia
ao estilo cinema mudo, nos números que a dupla
encena em busca de dinheiro. É quando fica evidente
o controle e o talento deste cineasta, capaz de se reinventar
a cada seqüência. O final explosivo é
fascinante e único, fechando um ciclo iniciado
na primeira cena do filme, e abrindo caminho para o
mundo que ali seguiria com aquele cavalo, montado pelo
filho de El Topo, a anã e seu novo filho.
O aspecto estético de El Topo, que busca
sempre uma imagem clássica dos faroestes italianos,
sem os piores tiques daquele gênero, pode enganar
sobre esta faceta de Jodorowsky. Ainda que sejam inúmeras
as imagens de muito poder visual no filme, é
até possível crer que não se está
diante da obra de um esteta. Já nas primeiras
imagens de Holy Mountain essa idéia se
dissipa, com o cineasta mostrando um rigor especial
na construção dos quadros, suas cores
e texturas. Santa Sangre também retoma
este cuidado visual mais apurado, parecendo em alguns
momentos uma pintura surrealista em movimento. Artista
multifacetado, palhaço de circo, dramaturgo,
autor de inúmeros livros e graphic novels,
vidente profissional: o homem que usava os olhos para
filmar com os testículos.
Guilherme Martins
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