August
caiu numa armadilha, foi levado a acreditar que finalmente
encontraria o algoz de sua irmã, mas na verdade se depara
com uma gang de bandidos armados até os dentes, todos
eles prontos a abatê-lo sem piedade. Uma luz surge do
céu, e o ex-padre vira-se para ela, perguntando: “Porque
me abandonaste?”. A resposta é uma negativa, nada de
abandono, pelo contrário. A luz forte faz brilhar o
crucifixo de ouro que um dos matadores está usando,
e depois dessa dica de Deus, August enforca o sujeito
com seu próprio cordão, e em 30 segundos derruba todos
os outros que o ameaçavam. Quando Irmão Padre, Irmã
Puta chega nesse ponto, já não provoca o desconforto
anti-pregação que pode causar assim na descrição de
uma de suas seqüências logo no começo de um texto. Naquela
altura, o diretor Anders Morgenthaler já tinha deixado
muito claro o lugar de onde profere seu discurso, e
não há como ignorar a graça quase imbecil com que August
recebe a benção divina e dispara seus golpes e tiros
contra o mal encarnado. Este é possivelmente o filme
mais honesto já produzido pela companhia dinamarquesa
Zentropa, porque em nenhum momento nos é negado que
ali naquela animação bonitinha e colorida se está defendendo
exatamente aquilo que Triers e Vinterbergs nunca ousaram
deixar claro em seus filmes, apesar de partirem exatamente
do mesmo conceito: interessa aqui o impacto dos estragos
e dos benefícios que o peso da culpa católica tem sobre
aqueles que dela se deixam contaminar. Um irmão que
obsessivamente portava uma câmera de vídeo na adolescência,
e que com ela incentivou a irmã, promíscua incorrigível,
a deixar-se filmar transando com o namorado, o que só
podia resultar numa grande carreira futura como atriz
pornô. O irmão entra para um seminário, e já padre retorna
à cidade natal, assume a criação da filha que sua irmã
deixara e busca vingança por sua morte. Tudo muito simples,
tudo muito direto: mais honesto que isso, impossível.
Se é claro em sua proposta, Irmão Padre, Irmã Puta
é absolutamente atrapalhado na construção dela enquanto
imagem. Filho enjeitado do pop, o filme se depara constantemente
com os ruídos de sua crença, mas escapa deles sempre
pelo caminho do artifício, apostando no choque do sexo/sangue,
ou nas simbologias supostamente auto-explicativas da
mistura entre animação e imagens ao vivo. Seu modo de
lidar com a violência, ao mesmo tempo que elogia certas
referências atualíssimas no cinema, oferece sempre um
atestado da mais absoluta incapacidade de se lidar verdadeiramente
com este dado tendo seu projeto ideológico restritivo
sido já tão bem enraizado em tudo o que reproduzira
antes. Há muito de Kill Bill e Marcas da Violência
no filme de Morgenthaler, sobretudo na reprodução pormenorizada
de certas situações, mas o trato que o diretor dinamarquês
dá a elas reduz a referência à citação subdesenvolvida.
O mote da vingança, sem o peso religioso, fazia do caminho
da Noiva de Tarantino uma força incontrolável por qualquer
outra instância que não ela própria, e a recuperação
utópica do bebê perdido justificava toda pragmática
do sangue falso jorrando de braços e pescoços. Adicionar
a culpa católica nesse mesmo ambiente é tornar toda
loucura dominada por uma força externa à própria possibilidade
de independência do filme enquanto produto de insanidade
semelhante. Tarantino fala sempre do cinema, Morgenthaler
parece realmente acreditar que fala do mal que a indústria
pornográfica causa às famílias de bem, da necessidade
de reação cristã a esse absurdo. E quando esse discurso
entra numa sinuca de bico, a opção é por ignorar que
um dia chegou-se àquele canto da mesa. Como no filme
de Cronenberg, há um momento em que Irmão Padre,
Irmã Puta aproxima a representação do mal recuperado
(o ex-bandido Tom Stall lá, o padre August aqui) da
profanação do bem preservado (o filho de Stall e Mia,
a sobrinha de August). Marcas da Violência deixava
essa questão aberta, onde o assassinato estranhamente
se justificava e era esquecido pela família, pai e filho
igualados em atos mas ainda diversos em atitudes. Quando
Mia, um bonequinho fofo que mais parece saído de um
anime japonês que de um desenho dinamarquês, assassina
à golpes de pé-de-cabra o responsável pela morte de
sua mãe, é como se a justeza da tarefa (guiada por Deus,
sempre por Ele) apagasse qualquer pergunta a respeito.
Punidos por um final quase surpreendente, escrito não
pelo Cristo cândido das Oliveiras mas pelo Cristo raivoso
que expulsa à chicotadas os pagãos de seu templo, August
e Mia logo receberão o afago de Anders Morgenthaler,
que lhes proporciona uma praia no céu, com direito à
pôr-do-sol e sorrisos de dever cumprido. Honesto, claro.
Mas incrivelmente ruim.
Rodrigo de Oliveira
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