IRMÃO PADRE, IRMÃ PUTA
Anders Morgenthaler, Princess, Dinamarca, 2006

August caiu numa armadilha, foi levado a acreditar que finalmente encontraria o algoz de sua irmã, mas na verdade se depara com uma gang de bandidos armados até os dentes, todos eles prontos a abatê-lo sem piedade. Uma luz surge do céu, e o ex-padre vira-se para ela, perguntando: “Porque me abandonaste?”. A resposta é uma negativa, nada de abandono, pelo contrário. A luz forte faz brilhar o crucifixo de ouro que um dos matadores está usando, e depois dessa dica de Deus, August enforca o sujeito com seu próprio cordão, e em 30 segundos derruba todos os outros que o ameaçavam. Quando Irmão Padre, Irmã Puta chega nesse ponto, já não provoca o desconforto anti-pregação que pode causar assim na descrição de uma de suas seqüências logo no começo de um texto. Naquela altura, o diretor Anders Morgenthaler já tinha deixado muito claro o lugar de onde profere seu discurso, e não há como ignorar a graça quase imbecil com que August recebe a benção divina e dispara seus golpes e tiros contra o mal encarnado. Este é possivelmente o filme mais honesto já produzido pela companhia dinamarquesa Zentropa, porque em nenhum momento nos é negado que ali naquela animação bonitinha e colorida se está defendendo exatamente aquilo que Triers e Vinterbergs nunca ousaram deixar claro em seus filmes, apesar de partirem exatamente do mesmo conceito: interessa aqui o impacto dos estragos e dos benefícios que o peso da culpa católica tem sobre aqueles que dela se deixam contaminar. Um irmão que obsessivamente portava uma câmera de vídeo na adolescência, e que com ela incentivou a irmã, promíscua incorrigível, a deixar-se filmar transando com o namorado, o que só podia resultar numa grande carreira futura como atriz pornô. O irmão entra para um seminário, e já padre retorna à cidade natal, assume a criação da filha que sua irmã deixara e busca vingança por sua morte. Tudo muito simples, tudo muito direto: mais honesto que isso, impossível.

Se é claro em sua proposta, Irmão Padre, Irmã Puta é absolutamente atrapalhado na construção dela enquanto imagem. Filho enjeitado do pop, o filme se depara constantemente com os ruídos de sua crença, mas escapa deles sempre pelo caminho do artifício, apostando no choque do sexo/sangue, ou nas simbologias supostamente auto-explicativas da mistura entre animação e imagens ao vivo. Seu modo de lidar com a violência, ao mesmo tempo que elogia certas referências atualíssimas no cinema, oferece sempre um atestado da mais absoluta incapacidade de se lidar verdadeiramente com este dado tendo seu projeto ideológico restritivo sido já tão bem enraizado em tudo o que reproduzira antes. Há muito de Kill Bill e Marcas da Violência no filme de Morgenthaler, sobretudo na reprodução pormenorizada de certas situações, mas o trato que o diretor dinamarquês dá a elas reduz a referência à citação subdesenvolvida. O mote da vingança, sem o peso religioso, fazia do caminho da Noiva de Tarantino uma força incontrolável por qualquer outra instância que não ela própria, e a recuperação utópica do bebê perdido justificava toda pragmática do sangue falso jorrando de braços e pescoços. Adicionar a culpa católica nesse mesmo ambiente é tornar toda loucura dominada por uma força externa à própria possibilidade de independência do filme enquanto produto de insanidade semelhante. Tarantino fala sempre do cinema, Morgenthaler parece realmente acreditar que fala do mal que a indústria pornográfica causa às famílias de bem, da necessidade de reação cristã a esse absurdo. E quando esse discurso entra numa sinuca de bico, a opção é por ignorar que um dia chegou-se àquele canto da mesa. Como no filme de Cronenberg, há um momento em que Irmão Padre, Irmã Puta aproxima a representação do mal recuperado (o ex-bandido Tom Stall lá, o padre August aqui) da profanação do bem preservado (o filho de Stall e Mia, a sobrinha de August). Marcas da Violência deixava essa questão aberta, onde o assassinato estranhamente se justificava e era esquecido pela família, pai e filho igualados em atos mas ainda diversos em atitudes. Quando Mia, um bonequinho fofo que mais parece saído de um anime japonês que de um desenho dinamarquês, assassina à golpes de pé-de-cabra o responsável pela morte de sua mãe, é como se a justeza da tarefa (guiada por Deus, sempre por Ele) apagasse qualquer pergunta a respeito. Punidos por um final quase surpreendente, escrito não pelo Cristo cândido das Oliveiras mas pelo Cristo raivoso que expulsa à chicotadas os pagãos de seu templo, August e Mia logo receberão o afago de Anders Morgenthaler, que lhes proporciona uma praia no céu, com direito à pôr-do-sol e sorrisos de dever cumprido. Honesto, claro. Mas incrivelmente ruim.


Rodrigo de Oliveira