THE HOST
Bong Joon-ho, Gue-Mool, Coréia do Sul, 2006

Em poucos minutos, The Host já emenda três breves situações ocorridas em datas esparsas. Primeiro, em 2000, um cientista norte-americano ordena que seu assistente despeje na pia litros e mais litros de formaldeído. O assistente coreano argumenta que o produto químico tóxico cairá no esgoto e atingirá o Rio Han, espalhando-se por todo o sistema hídrico da cidade. Mas o americano repete que é uma ordem, e ele a obedece. Depois estamos em 2002. Um pescador apanha com sua caneca um minúsculo espécime esquisito, com sabe-se lá quantas nadadeiras. Ele comenta com um companheiro, que também fica intrigado, e logo depois o bichinho pula da caneca e retorna à água. Por fim, chegamos a 2006, para assistir a um homem de terno pulando do alto da enorme ponte sobre o Han. O título do filme aparece na água agitada pelo corpo do suicida. E só então seremos apresentados a Park Gang-du, o herói burlesco do filme, flagrado por um close enquanto dorme babando sobre o balcão do quiosque onde ele e o pai trabalham, situado à beira do rio. Nesses primeiros momentos, o filme já impressiona por sua mistura inusitada (e bastante dinâmica): um prólogo de cunho totalmente político se soma rapidamente ao bufão, ao épico e ao tragicômico. Percebemos, então, que se trata de um filme no mínimo especial, e bastam mais alguns minutinhos para termos a confirmação de que The Host é uma das maiores experiências com cinema de gênero dos últimos tempos.

O que se sucede a esse início de filme, de forma deslumbrante, é um tour de force de ação e suspense que desde já coloca Bong Joon-ho como o principal nome do novo cinema de gênero coreano. Do Rio Han surge o monstro anfíbio que ataca toda uma multidão. O começo da correria é antológico: Gang-du olha para fora de quadro e avista alguma coisa que modifica sua expressão; a câmera faz um travelling para frente aproximando-se dele e de seu pavor; no plano seguinte já vemos o monstro vindo na direção das pessoas a toda velocidade, mais assustador que o Alien e todos os dinossauros de Jurassic Park juntos. Boa parte da seqüência é filmada em planos longos, confusos, com muita movimentação de câmera e de figurantes. O momento em que o distraído Gang-du percebe, em meio à fuga, que a mão que segura não é a de sua filha Hyun-seo, mas de outra menina, inicia uma série de construções visuais sutis e ao mesmo tempo estonteantes, oriundas de um supremo apuro da decupagem. Bong consegue realmente surpreender com sua meticulosidade, inserindo o detalhe ínfimo, às raias do poético, no ápice das cenas mais tensas ou violentas.

Hyun-seo é capturada pelo monstro e levada para o esgoto, local que se comprova emblemático para Bong. No seu filme anterior, Memories of Murder, o cadáver de uma moça era achado num bueiro à beira da estrada, dando início ao retrato de uma cidade assombrada por crimes em série, nos últimos anos da ditadura coreana. Ao final, o policial protagonista olhava novamente para o mesmo bueiro: não havia mais cadáver, porém o que ele procurava, na verdade, era uma sujeira histórica, política, sem rosto nem solução. Agora, em The Host, há o retorno mais incisivo a esse cenário de esgoto, subterrâneo e imundo. O monstro sai do rio, e não do mar como Godzilla, pois o rio é aquilo que atravessa a cidade como uma artéria, entranha-se nela, distribui suas águas pelas tubulações do espaço urbano – participa, enfim, do ciclo de abastecimento e renovação da cidade. The Host se revela, assim, profundamente fincado como thriller social e político. Mas também como filme dono de vários momentos de puro delírio fantástico, de maravilhamento cinematográfico com a ação e com o lirismo que irrompe inesperadamente.

Para salvar Hyun-seo das garras do monstro, a família Park (Gang-du, o pai, o irmão e a irmã Nam-joo, que no início ganhara medalha de bronze numa competição de arco e flecha) se junta na ação de resgate, após um telefonema que a menina faz de um número de celular desconhecido. Antes eles precisam fugir da quarentena a que foram submetidos, uma vez que o governo divulga o alerta de que o monstro é hospedeiro de um vírus de alto poder de contágio. Os EUA consideram o governo coreano incompetente para lidar com a situação e intervêm. Mais tarde, o grande propósito dessa subtrama se resume naquela cena em que um médico americano diz que a história do vírus é falaciosa, mas que mesmo assim eles precisam abrir a cabeça de Gang-du para encontrar e isolar o vírus. É como entrar no Iraque para encontrar armas químicas virtuais. A doença em si não precisa existir, basta forjar o sintoma e o mundo, por conseguinte, aprovará a intervenção cirúrgica (termo muito usado, aliás, na época da Guerra do Golfo). Não estamos tão distante do modo como funciona a política do medo ao terrorismo.

Enumerar as variações de registro que The Host percorre pode sugerir um filme absolutamente desconjuntado e louco. Mas se há um adjetivo que não lhe cabe, é desconjuntado. Louco, isso sim. E muito. E ainda bem, pois aí está uma das qualidades únicas de Bong Joon-ho. Antes de The Host, um filme como Save the Green Planet, de Jang Jun-hwan, já tinha um formato esquizóide e múltiplo, indo da comédia screwball à ficção científica e passando por trama corporativa, dívidas afetivas e tudo a que se tem direito quando a concisão é jogada ao segundo plano. Mas em The Host é diferente. Primeiro porque as características formais de Save the Green Planet não chegam sequer a permitir comparação com a ousadia de estilo que Bong apresenta. Segundo porque esse trabalho de hibridação dentro do imaginário do cinema de gênero, trabalho no fundo dificílimo, é muito mais coeso no filme de Bong e ancorado em sentidos bastante precisos. Esse aspecto dele permanecerá singular mesmo em meio ao cinema coreano, para o qual a imbricação de gêneros já é um procedimento chave. Uma posição singular que o torna parente artístico de John Carpenter, cineasta com quem seu filme dialoga substancialmente (Gang-du desligando a TV com o pé, no final, durante o discurso oficial dos políticos, é uma cena que poderia estar em Fuga de Nova York ou Fuga de Los Angeles).

The Host não apenas possui um "personagem" monstro como é também, em si mesmo, um monstro mutante. E dos monstros, como vimos no filme, as pessoas fogem – ou se deixam devorar por eles (como está acontecendo na Coréia, onde o filme já bateu o recorde nacional de bilheteria e se aproxima dos 13 milhões de ingressos vendidos). O filme-monstro de Bong Joon-ho assim espalha seus tentáculos: melodrama, aventura urbana, thriller de horror, ficção política, comédia fantástica. Toda a seqüência final, épica e grandiosa, é como um esgarçamento a mais daquilo que o filme já parecia ter levado ao paroxismo. Sob a espessa nuvem amarelada, de gás extremamente tóxico, a multidão de manifestantes que combate a política de quarentena e pede a libertação de Gang-du, munida de faixas e camisetas vermelhas, se acha encurralada entre o ataque do monstro e a repressão do exército, enquanto Gang-du leva nos braços a filha já morta. A cena extravasa qualquer expectativa: catarse familiar, heroísmo extremo, atmosfera absurda, tudo se condensa. O cenário de guerrilha traz de volta o tempo da ditadura, ao passo que o monstro avança em direção a todos, militares ou jovens rebelados. Em que outro filme veremos uma imagem de cinema militante, como aquela do irmão de Gang-du com o punho levantado, segurando um coquetel molotov, ser seguida de uma gag (a garrafa escorrega de sua mão na hora em que seria jogada no monstro) e logo depois de um desfecho triunfante no estilo dos filmes de ação pomposos (a flechada em câmera-lenta de Nam-joo)? O golpe final, naturalmente, vem de Gang-du, que enterra uma lança de metal na goela do monstro. O plano-assinatura de Bong consiste então no detalhe da palma da mão do herói, onde vemos a marca circular deixada pelo ferro. A seqüência serve de resumo para as contorções de uma mise en scène capaz de alternar momentos de vertigem a outros de total hipostasia do movimento – pensar, respectivamente, no primeiro ataque do monstro e na sublime cena em que Hyun-seo tenta fugir do esgoto, mas algo a faz largar a corda em que havia se agarrado e ficar suspensa no ar, para alguns segundos depois o enquadramento se abrir e revelar que o monstro a enlaçou com o rabo, por isso ela parecia flutuar no plano anterior. Diante de uma tal abstração, em pleno ápice do terror, somos nós que começamos a flutuar.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 







Gang-du pega a filha pelo braço e foge do monstro,
na primeira das seqüências antológicas de The Host