Pode
um delicado hai-kai ser experimentado junto com um monte
de outros, num mesmo tempo, acavaladamente? É a pergunta
que se faz o longo da projeção de Homem-Filme,
espécie de diário obsessivo rodado pelo diretor flagrando
momentos de vida íntima com sua esposa, pequenos fragmentos
de cotidiano, relação com parentes, quartos de hotel,
uma certa fixação por banheiros... Em seus melhores
momentos, o filme dá uma ou outra sensação de que o
tempo é suspenso, que existe um instante que se cristaliza
e, mesmo que mínimo, cria um sentido de inteireza. Não
é uma apropriação do tempo muito comum do cinema, esse
uso radical da parte contra o todo, a coletânea de momentos
ao invés da progressão dramático-narrativa. Isso faz
toda a particularidade de Homem-Filme, mas faz
também sua principal deficiência.
Ora, num filme que aposta tanto no fragmento, o grande
problema a ser resolvido é o da montagem entre eles.
Questão que basicamente não se resolve: a montagem aparentemente
se faz no play e no stop (só aparentemente, já que o
próprio Cavalier fala com sua esposa sobre o processo
de composição), os dias se passam sem que saibamos exatamente
quanto tempo transcorreu entre um plano e outro. O que
filmar disso tudo, então? Passarinhos se alimentando
de larvas, o 11 de setembro, uma oração fúnebre a Claude
Sautet num banheiro, um recipiente de papel higiênico
que não funciona, um trocadilho sobre Palmolive, a disfunção
hormonal da esposa, o próprio câncer de pele no rosto.
Naturalmente, nada disso se faz com a mesma duração
ou com a mesma gravidade. Mas o principal é que não
se faz com o mesmo talento: Cavalier não é um grande
versador, não tem algo particularmente interessante
para dizer sobre o sofrimento ao saber do 11 de setembro,
e em momentos até se revela que ele nem é tão filmeur
assim.
Filmeur, mesmo, só no já desgastado cliché que
associa filmar a ser o voyeur do próximo, como
o lugar da inconveniência, velho desde os primórdios
do cinema (As Seen Through a Telescope, 1900;
Par le trou de serrure, 1901; ou a obra-prima
The Big Swallow, 1901). Não que o filme não brinque
com isso: num dos melhores momentos, Cavalier filma
sua mãe dormindo numa cama, ponderando se não seria
o momento de sua morte, e repentinamente ela abre os
olhos e faz “bu”. Em outros, o filme padece da síndrome:
mania em registrar contra a vontade o sofrimento da
mulher, os momentos de padecimento e deformação do rosto
com o câncer de pele e as múltiplas operações realizadas.
Algo muito longe da obsessão de Jonathan Caouette no
belíssimo Tarnation, em que a montagem reapropriava
o sentido das filmagens. Aqui, é mais fruto da obsessão
recente de Cavalier em filmar em digital, sem equipe,
sozinho diante da criação. Que isso recaia nas velhas
formas do diário, é uma notícia não muito boa. Ele próprio
já fez melhor em Vies anteriormente. E o lirismo
dos melhores momentos de Homem-Filme jamais suportariam
comparação com Jonas Mekas ou Stan Brakhage, que souberam
fazer do cinediário um uso muito mais interessante.
Ruy Gardnier
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