HOMEM-FILME
Alain Cavalier, Le Filmeur, França, 2005

Pode um delicado hai-kai ser experimentado junto com um monte de outros, num mesmo tempo, acavaladamente? É a pergunta que se faz o longo da projeção de Homem-Filme, espécie de diário obsessivo rodado pelo diretor flagrando momentos de vida íntima com sua esposa, pequenos fragmentos de cotidiano, relação com parentes, quartos de hotel, uma certa fixação por banheiros... Em seus melhores momentos, o filme dá uma ou outra sensação de que o tempo é suspenso, que existe um instante que se cristaliza e, mesmo que mínimo, cria um sentido de inteireza. Não é uma apropriação do tempo muito comum do cinema, esse uso radical da parte contra o todo, a coletânea de momentos ao invés da progressão dramático-narrativa. Isso faz toda a particularidade de Homem-Filme, mas faz também sua principal deficiência.

Ora, num filme que aposta tanto no fragmento, o grande problema a ser resolvido é o da montagem entre eles. Questão que basicamente não se resolve: a montagem aparentemente se faz no play e no stop (só aparentemente, já que o próprio Cavalier fala com sua esposa sobre o processo de composição), os dias se passam sem que saibamos exatamente quanto tempo transcorreu entre um plano e outro. O que filmar disso tudo, então? Passarinhos se alimentando de larvas, o 11 de setembro, uma oração fúnebre a Claude Sautet num banheiro, um recipiente de papel higiênico que não funciona, um trocadilho sobre Palmolive, a disfunção hormonal da esposa, o próprio câncer de pele no rosto. Naturalmente, nada disso se faz com a mesma duração ou com a mesma gravidade. Mas o principal é que não se faz com o mesmo talento: Cavalier não é um grande versador, não tem algo particularmente interessante para dizer sobre o sofrimento ao saber do 11 de setembro, e em momentos até se revela que ele nem é tão filmeur assim.

Filmeur, mesmo, só no já desgastado cliché que associa filmar a ser o voyeur do próximo, como o lugar da inconveniência, velho desde os primórdios do cinema (As Seen Through a Telescope, 1900; Par le trou de serrure, 1901; ou a obra-prima The Big Swallow, 1901). Não que o filme não brinque com isso: num dos melhores momentos, Cavalier filma sua mãe dormindo numa cama, ponderando se não seria o momento de sua morte, e repentinamente ela abre os olhos e faz “bu”. Em outros, o filme padece da síndrome: mania em registrar contra a vontade o sofrimento da mulher, os momentos de padecimento e deformação do rosto com o câncer de pele e as múltiplas operações realizadas. Algo muito longe da obsessão de Jonathan Caouette no belíssimo Tarnation, em que a montagem reapropriava o sentido das filmagens. Aqui, é mais fruto da obsessão recente de Cavalier em filmar em digital, sem equipe, sozinho diante da criação. Que isso recaia nas velhas formas do diário, é uma notícia não muito boa. Ele próprio já fez melhor em Vies anteriormente. E o lirismo dos melhores momentos de Homem-Filme jamais suportariam comparação com Jonas Mekas ou Stan Brakhage, que souberam fazer do cinediário um uso muito mais interessante.


Ruy Gardnier