Pois
além de bobo o garotinho também é
burro. Não sabe quem foi Hitler, chama Renoir
de Lenoir, porque também não sabe o que
é impressionismo, ouviu a palavra "blasfêmia"
e, sem saber o que significava, começou a repeti-la
fora de contexto. Fred precisa ser educado, e isso sabemos
desde o começo. Do banco carona de um carro,
o rapaz começa a desfiar seu rosário pouco
articulado em defesa das relações rápidas
e sem envolvimento, fala do número de parceiros
com quem já transou, em como os caça pela
internet ou em bares por aí, sempre certo de
que não haverá uma segunda noite com nenhum
deles. Pois além de bobo e burro, nosso garotinho
também não sabe amar, e no projeto educativo
de Lionel Baier a primeira tarefa é despertar
algum sentimento que não a frieza nesse coração.
Naquele mesmo carro da primeira seqüência,
sentado no banco do motorista, estava um sujeito que
nunca veremos, pois sempre representado através
de uma câmera que filma em ponto-de-vista. Ouvimos
a voz, acompanhamos várias conversas dessa nova
amizade, vemos a reação de Fred à
suas palavras, mas o rosto permanece incógnito.
O nome desse sujeito, personagem de Garotinho Bobo,
é também Lionel, e quando dizíamos
"projeto educativo" não havia nenhum
exagero nisso.
Estamos já acostumados ao modo como Garotinho
Bobo irá se apresentar, o vídeo digital
sempre cercando personagens e situações
com uma volúpia estranha, jump-cuts como profissão
de fé da montagem, a associação
automática entre a sujeira e a mobilidade da
imagem com a idéia de um documentário.
Que Lionel Baier assuma a assinatura desse olho de maneira
tão direta, não só incluindo-se
no universo ficcional do filme, mas também guardando
para si o papel de real transformador da vida do protagonista,
faz pensar numa certa disposição autoral
que transcenda a organização de uma encenação,
que já não se contenta apenas com esse
serviço, por uma necessidade quase instintiva
de tomar parte dela, e aí deixar de ser apenas
organizador, virar também objeto da encenação,
arriscando-se à se influenciar como criatura
naquilo que é sua própria criação.
Esse reposicionamento de Baier, ao contrário
de garantir espaço para que Garotinho Bobo
se relacione com seus personagens e temas de maneira
mais livre, acaba instalando no interior dele uma sensação
de controle próxima do insuportável, porque
o diretor nunca consegue realmente colocar-se como personagem.
Quando seu ponto-de-vista aparece na tela, sua voz não
deixa nunca de soar como a de uma instância superior
a instruir um rebanho.
Acabamos por assistir Fred numa bateria de testes e
exercícios que terão certamente a conquista
da capacidade de amar como meta. No caminho a idéia
de ascensão ao paraíso não será
negada, pelo contrário. Se essa trajetória
simples, um tanto surrada mas ainda assim passível
de algum interesse, encontra nesse garotinho bobo um
desafio (é alguém que conta para a melhor
amiga, feliz da vida, que ganhou 300 francos na noite
anterior transando com um homem de 85 anos), nada em
Fred justificava a radicalidade da experiência
a que Lionel Baier o submete. Filho de um cinema que
urge pelo acontecimento, necessariamente trágico,
incapaz que é de admitir a condução
de uma narrativa que de fato se desenvolva, sem que
nenhum tratamento de choque precisa tirá-la sempre
do chão, Garotinho Bobo vai eventualmente
matar uma personagem importante, suicida sem motivo
aparente e com alguma culpa atribuída ao próprio
protagonista, ele mesmo só definitivamente transformado
e entrado no time dos que amam depois de sofrer um acidente
de carro e ir parar no hospital. Nenhum problema nessa
vontade doutrinária de Baier. Mas o que o espectador
que não quer tomar lições de vida
de um filme tem a ver com isso?
Rodrigo de Oliveira
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