A
proibição à entrada de mulheres
em estádios de futebol gera uma discussão
sobre a desigualdade de gêneros, e, portanto,
cria um questionamento sobre a justiça na sociedade
iraniana. A primeira impressão é:
já vi esse filme, e algumas vezes. Mas atenção!
Por trás das câmeras está um homem
chamado Jafar Panahi, que já foi considerado
novo gênio do cinema iraniano, já foi considerado
um mero diluidor de seu mestre, Abbas Kiarostami, e
também já foi considerado, ironia das
ironias, um has-been. Ainda que seus longas-metragens
não denotem um estilo tão sólido
quanto os filmes de Kiarostami, há neles interesse
suficiente para acompanhar sua trajetória com
gosto e cuidado. Se seu primeiro longa-metragem, O
Balão Branco, surgia no cenário dos
lançamentos nacionais um pouco para consolidar
o lugar-comum que apraz preguiçosos de que cinema
iraniano é criancinha chorando por algum objeto
perdido, o filme seguinte, O Espelho, já
revelava uma aplicação formal que retirava
o filme das convenções mais rasteiras
do naturalismo e, tanto pela adesão total ao
percurso da menina-protagonista quanto pelo preciso
acabamento, conferiam um caráter bastante distintivo
ao filme. O Círculo, ao invés de
perseguir apenas uma menina, criava um painel de como
a mulher é tratada desde o momento do nascimento
até a morte, integrando e largando as diversas
personagens ao longo da narrativa, criando um verdadeiro
personagem-coletivo (como O Encouraçado Potemkin
ou Aopção). Pronunciava-se
aí uma faceta nova em seu cinema, uma veemência
poítica inesperada no seio de um cinema que,
apesar de sempre muito político, escondia suas
preocupações sociais em tramas que a princípio
pouco tinham de contestadoras. Esse foi um passo que,
possivelmente, até pode ter inspirado Kiarostami
a fazer a obra-prima que é Dez.
Em Fora de Jogo, há muito dos filmes anteriores:
as personagens femininas, o costume social que se transforma
numa possibilidade de questionamento, a precisão
do dispositivo. É possível mesmo acreditar
que se trate de um filme-soma, de uma espécie
de síntese de seu trabalho. Mas a sensação
que se tem vendo o filme é, ao contrário,
a de que temos diante de nós um diretor que pensa
unicamente nas soluções dramáticas
mais adequadas a seus projetos, e que isso é
muito mais do que uma assinatura estilística
ou temática. A estética de Jafar Panahi
abre seu cinema para o mundo, ao passo que outras estéticas
só fazem adequar o mundo a ritmos, atmosferas
e recorrências estilísticas de autor que
o fecham em um cineaquário. E é essa disposição
de fazer um filme colado ao movimento do mundo, rodar
um filme como roda o mecanismo de uma máquina,
que torna o cinema de Jafar Panahi tão instigante.
O material, como já dissemos, não é
novo. Filme-processo, corre-corre, estamos já
num engarrafamento, um pai tenta resgatar sua filha
que está num dos ônibus que vão
em direção ao estádio onde o Irã
disputará contra o Bahrein uma partida que pode
lhe valer a classificação para a Copa
do Mundo de 2006. Em seguida, vemos um ônibus
de torcedores, acontece uma confusão, briga,
todo mundo sai de seu lugar, menos uma pessoa, uma figura
toda cheia de roupa, de traços delicados, vestida
como moleque, boné para trás, roupas largas.
Espectadores, anteciparemos por alguns instantes a reação
de um menino no mesmo ônibus: trata-se de uma
menina que precisa se disfarçar de homem para
entrar no estádio. Clandestina de primeira viagem,
ela observa como fazem outras meninas para burlar a
segurança, e é por intermédio dela
que nós também passamos as grades do estádio.
Ela continua seu percurso até esbarrar num segurança
e, desesperada por não saber como continuar,
entrega sua identidade. A partir daí, ela é
levada para uma espécie de gaiolinha improvisada
com grades de segurança onde estão outras
meninas, e lá ficarão durante quase todo
o jogo (e quase todo o filme). Daí, à
medida que somos apresentados às personagens
masculinas e femininas envolvidas na situação
e, conseqüentemente, às suas índoles
e comportamentos, o filme abruptamente abandona nossa
ex-protagonista e passa a seguir as ações
e intrigas de outros personagens.
Mas esse abandono não significa também
o abandono da intriga de thriller para chegar
às arquibancadas ou, pelo menos, ter notícias
do que acontece no jogo mesmo presas às grades.
O que Fora de Jogo faz é criar uma outra
linha de significação, paralela, que expõe
a nu uma partilha de direitos e deveres diferenciados
para homens e mulheres. Uma linha especulativa, nascida
nas trocas de diálogo entre os jovens soldados
e as jovens prisioneiras, que se acresce à tensa
intriga original, de tentar assistir ao jogo ou, pelo
menos, saber se o Irã está ganhando, de
quem foi o gol e como o time está em campo. Mas
o interessante, e é aí que o filme se
destaca das ficções habituais de questionamento
dos valores sociais ou mesmo dos filmes de tema político,
é que a narrativa não precisa recorrer
a nenhum personagem malvadinho para que se atravanque
a vida de nossas pequenas heroínas. Jafar Panahi
observa, ao contrário, como as intedições
ao universo feminino não depende da má
índole daqueles que as transformam em ato
os soldados são, na verdade, apenas bons rapazes
que devem fazer a tarefa que lhes foi designada a fim
de que não recebam sanções ,
mas estão enraizadas numa cultura que se atualiza
a cada tom de voz mais alto, a cada autorização
para usar a força, a cada vez que automaticamente
uma ação, um gesto, escondem sua própria
arbitrariedade nas costas do "sempre foi assim".
Nesse momento, Fora de Jogo cria ainda uma outra
camada, um thriller ainda mais emocionante, nos
olhos dos personagens jovens, seja quando eles fazem
o que devem fazer, mesmo que saibam que existe aí
uma auto-confessada injustiça, ou quando elas
fazem aquilo que não deveriam fazer, mesmo que
saibam que reside em seus gestos a centelha da justiça.
No simples relutar acerca desse estado de coisas
um pensar antes do fazer automático, um voltar
atrás da decisão, ou até a suspensão
total da culpa , existe um sub-reptício
e profundo deslocamento da questão sobre a justiça
da partilha entre o que cada sexo pode e não
pode fazer.
Nos diálogos entre mulheres e homens, elas pedem
motivos para não serem permitidas nos estádios.
Aforas as mais costumeiras respostas pleonásticas
"porque só é permitido entrar
homens" , volta e meia aparece uma resposta,
para ser em seguida questionada de volta pelas meninas.
Num momento, um jovem fala: "Porque os homens se
comportam mal, falam muito palavrão". Curiosa
lógica, que ao invés de reprimir aqueles
que se comportam mal, exclui aquelas que, a princípio,
se comportariam bem (pois nada exclui que elas também
queiram xingar). Mas ao mesmo tempo é uma lógica,
por vias transersas, também protetora: é
também por vergonha de expor as mulheres à
má-educação dos homens que os soldados
tentam justificar essa separação. Essa
proteção pode se dar por delicadeza, mas,
como se sabe, também pode ser uma maneira muito
eficaz de esconder o preconceito. E aí Fora
de Jogo novamente se destaca, ao equacionar ternura
e violência sem fazer uso mesquinho de qualquer
um dos dois ("no fundo ele usa a ternura para proibir",
ou "ele proíbe porque no fundo ama"),
apenas colocá-los ligados num mesmo lance, imbricados
da mesma forma que o desejo desses jovens de ajudar
as meninas porque sabem que elas têm direito,
e a impossibilidade de ajudá-las porque isso
significaria extensão do contrato.
As moças são transportadas antes do final
do jogo, e o furgão deixa o estádio
com motorista, um soldado, as meninas e mais um menor
portando fogos de artifício, também proibidos
a alguns minutos de acabar o jogo. A cidade está
inteiramente mobilizada, pois afinal o Irã está
prestes a faturar a classificação para
a Copa. Gradativamente, o furgão vai sendo contaminado
pelo espírito da classificação
que se confirma, e o inesperado se produz. Momento de
epifania, de beleza mística, em que uma intervenção
quase mágica suspende a culpa de todos e, pelo
menos uma vez, pouco importa se somos soldados ou presos,
sujeitos ou assujeitados, homens ou mulheres. Desfeita
a lógica da separação, desfazem-se
os elos "justos" que a tradição
impõe a despeito mesmo do bom senso daqueles
que a fazem cumprir. Abre-se uma possibilidade, para
um equilíbrio mais justo, mais igual, para um
diálogo maior entre papel feminino e papel masculino.
Uma hora ou outra, a comemoração terminará,
voltarão todos às suas casas, e com os
ânimos de volta ao normal, se restabelece a antiga
ordem. mas no coração de alguns jovens,
homens e mulheres, estará mantida a lembrança
do dia em que as distinções se esfacelaram
em nome de uma alegria maior. É na confirmação
sem soluções fáceis desse estado
de coisas que parece nunca mudar mas que teima em mudar
aos poucos que Fora de Jogo emociona, e Jafar
Panahi encontra o espaço de fazer seu cinema,
que sabe ser mais político na chegada do que
na partida, mais na forma do que no tema, mais na frontalidade
do que na pompa da relevância. Impedidas de assistir
ao futebol, nossas heroínas acabaram ganhando
um jogo talvez bem mais importante.
Ruy Gardnier
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