Do
campo verde e cinzento do interior da França para o
deserto pálido e amarelado da Tunísia: o choque provocado
pela radical diferença entre as palhetas de cores no
primeiro corte de Flandres que contrasta os dois
espaços explorados pelo filme dá a exata dimensão da
articulação proposta por Bruno Dumont. Neste filme,
como em seus anteriores, o posicionamento de câmera,
o enquadramento, a mise-en-scène, o trabalho
de som, a fotografia e a interpretação contribuem harmonicamente
para a criação de um universo em que a aspereza, a dureza
e a aridez fazem do homem elemento privilegiado de choque.
Se em A Vida de Jesus e em A Humanidade
este choque parecia nascer da insuportabilidade de uma
comunidade fechada demais, sem espaços de respiro, sufocada
por suas mesquinharias e pequenas tiranias cotidianas,
e pelo contato próximo demais entre homem e natureza,
ele revela-se, em 29 Palms, uma dinâmica da própria
relação estabelecida por sua câmera entre os personagens
e o mundo. O deserto da cidade-título afasta a "comunidade"
do cenário, para focar um casal e sua vivência de um
estado de conflito, no qual o atrito surgido entre eles
é reverberado e incentivado pela paisagem. Percebemos,
então, que o deserto, para Dumont, é como uma verdade
da alma humana e não uma metáfora conveniente a um ou
outro microcosmos ou forma de vida. E o paralelo estabelecido
por Flandres entre estes dois espaços distintos
– o interior francês e o deserto – é a confirmação de
uma visão de mundo existente para além de ambientes
e personagens.
A desumanização – ou desertificação do humano – que
Dumont promove atira os homens numa secura sórdida e
desencantada, na qual a fisiologia (acompanhada de uma
psicologia puramente instintiva) é a lei principal.
O "eu te amo" vem como palavras monocórdias
saídas de um corpo "depositado" em cima de
outro, como um atestado de "dependência física".
A relação íntima e próxima dos personagens com a natureza,
assim como a aproximação das máquinas (símbolos de agressividade)
desta natureza, compõe um universo regrado pela brutalidade
– as motos ensurdecedoras de A Vida de Jesus,
o carro em 29 Palms, o trator que corta a imagem
e os helicópteros e armas que atacam os tímpanos em
Flandres. E, neste universo, não há dialética
possível, não há contracampo: homens, natureza e máquinas
compartilham a mesma lógica de um funcionamento agressivo
e desprovido de sentimentos. A observação do trabalho
que realizam é fria e ignora a circulação, contemplando
apenas uma amarga progressão, uma estaticidade que pesa
e anuncia um estado de coisas com pendor para a eternidade
(seria a metrópole um cenário impossível para o diretor?).
Neste sentido, Dumont está na contramão dos irmãos Dardenne,
que depositam em um trabalho em curso um determinante
de humanidade. Para André, protagonista de Flandres,
trabalhar no campo, transar com a namoradinha ou participar
de um tiroteio na guerra são ações que se equivalem
e que ele performa mecanicamente. E é esta noção de
equivalência que percorre o filme em sua principal articulação
de sentido.
O deserto, que rechaça a vida com sua aspereza, com
sua areia granulada sugerindo o pontilhismo da imagem,
não está em contraste com o campo mais acolhedor, de
verde aveludado que preenche; há uma continuidade conceitual,
uma equivalência significante – a "costura"
que Dumont realiza entre seus dois primeiros filmes
e 29 Palms. O espírito que anima a guerra (uma
guerra genérica, não-identificada) é o mesmo que move
os homens em seu cotidiano morto. A animosidade a que
assistimos não é muito diferente do permanente clima
de tensão e de iminência de atrito que circunda os personagens
na França. Sem justificativas, sem História, esta guerra
torna-se apenas um conflito entre homens, a destilar
seus piores instintos, um conflito declarado, que lhes
permite extravasar a violência sub-reptícia a cada um
de seus gestos. Donos de uma natureza mórbida e mergulhados
em um mundo sem contrapontos à sua experiência exasperadora,
à sua existência "mecânica", os personagens
de Bruno Dumont não se "degradam" e, portanto,
não se condenam. Não há castigo e a morte está na vida.
A gravidade do registro – o tempo que parece pesar fisicamente
nas ações e destinar o mundo à estaticidade – não abre
espaço para um fluxo que escapasse, para um desejo qualquer
que pudesse buscar um caminho por entre os cortes, como
ocorre em Bresson.
A lógica da "equivalência", que aproxima em
montagem paralela Flandres da Tunísia e sugere uma continuidade
entre a ausência de "humanidade" da guerra
e a de uma vidinha sem perspectivas é também o que vai
estabelecer uma relação direta entre o sexo e a morte,
através do impulso de violência. Não se trata, porém,
de uma violência que agride o espírito, porque já não
há espírito, mas de uma dureza irremediável que se faz
sentir como tônica dominante da existência humana. Ao
invés de propagador de vida, o sexo deflagra um impulso
de morte (em Flandres, o aborto e o enlouquecimento
histérico da namoradinha de André e o estupro da muçulmana,
que leva à retaliação; em 29 Palms a relação
nefasta entre o regojizo do assassinato e o do orgasmo,
presente especialmente no urro animal do protagonista;
em A Humanidade, o abuso-homicídio da garotinha
como binômio inseparável).
Dumont define a humanidade pelo avesso, compondo um
mundo no qual declaradamente a vida é como um fardo,
uma atividade a ser levada a cabo penosamente, uma sina
compartilhada desoladamente com a natureza. Neste mundo,
em que um estupro não é muito diferente de um sexo consentido
e onde a convivência está sempre no limite da suportabilidade,
a saudade, a dor, o medo e o amor são instintos afiliados
da agressividade, frutos da agrura de uma vida imposta,
de uma sujeição à sobrevivência. Espécie de existencialismo
invertido (pois não há melancolia, não há lamento, não
há alma), a visão de mundo de Dumont define uma profunda
descrença no mundo, uma falência do social e mesmo uma
perturbadora desconfiança das faculdades cartesianas
do homem, exercendo um peso inegável sobre cada um de
seus planos e moldando à perfeição um universo próprio.
A sua elegância e sobriedade narrativas determinam uma
progressão de acontecimentos inexoráveis, um desencanto
imanente, que faz dos homens seres à mercê de uma tragicidade
sem implicações dramáticas, pois que caracteriza um
estado de coisas perfeitamente naturalizado. O apaziguamento
que sobrevém à aridez inerente a este deserto da alma
é, portanto, o grande incômodo e o principal efeito
de choque deste cinema. Somos corroídos pela placidez
com que a vida é resumida a uma funcionalidade seca,
doída e banal. Partindo do ceticismo e do desencanto
fatal dos seus primeiros filmes, Dumont desemboca numa
missão anti-humanitária confessa, em que suas afirmações
cinematográficas vão se somando de forma a compor um
complexo coeso, em que a violência se apresenta como
instinto humano privilegiado, trazendo a reboque o desagradável
conjunto sexo-morte. Podemos nos perguntar se haveria
aí nesta ausência de "abstração" (de sentimentos
e pensamentos), nesta materialidade distorcida e neste
naturalismo perturbador (resultados de uma câmera que
sugere uma observação isenta, mas que denota de forma
manifesta uma representação insuflada de um olhar muito
definido) alguma intenção pedagógica, algo para além
do impacto emocional gratuito de professar tão enfaticamente
tamanho desgosto. Ou, então, apenas lamentar profundamente
que este louvável domínio da linguagem cinematográfica
esteja a serviço de uma tal concepção da vida (a afirmação
de uma não-vida).
Tatiana Monassa
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