FLANDRES
Bruno Dumont, França, 2006

Do campo verde e cinzento do interior da França para o deserto pálido e amarelado da Tunísia: o choque provocado pela radical diferença entre as palhetas de cores no primeiro corte de Flandres que contrasta os dois espaços explorados pelo filme dá a exata dimensão da articulação proposta por Bruno Dumont. Neste filme, como em seus anteriores, o posicionamento de câmera, o enquadramento, a mise-en-scène, o trabalho de som, a fotografia e a interpretação contribuem harmonicamente para a criação de um universo em que a aspereza, a dureza e a aridez fazem do homem elemento privilegiado de choque. Se em A Vida de Jesus e em A Humanidade este choque parecia nascer da insuportabilidade de uma comunidade fechada demais, sem espaços de respiro, sufocada por suas mesquinharias e pequenas tiranias cotidianas, e pelo contato próximo demais entre homem e natureza, ele revela-se, em 29 Palms, uma dinâmica da própria relação estabelecida por sua câmera entre os personagens e o mundo. O deserto da cidade-título afasta a "comunidade" do cenário, para focar um casal e sua vivência de um estado de conflito, no qual o atrito surgido entre eles é reverberado e incentivado pela paisagem. Percebemos, então, que o deserto, para Dumont, é como uma verdade da alma humana e não uma metáfora conveniente a um ou outro microcosmos ou forma de vida. E o paralelo estabelecido por Flandres entre estes dois espaços distintos – o interior francês e o deserto – é a confirmação de uma visão de mundo existente para além de ambientes e personagens.

A desumanização – ou desertificação do humano – que Dumont promove atira os homens numa secura sórdida e desencantada, na qual a fisiologia (acompanhada de uma psicologia puramente instintiva) é a lei principal. O "eu te amo" vem como palavras monocórdias saídas de um corpo "depositado" em cima de outro, como um atestado de "dependência física". A relação íntima e próxima dos personagens com a natureza, assim como a aproximação das máquinas (símbolos de agressividade) desta natureza, compõe um universo regrado pela brutalidade – as motos ensurdecedoras de A Vida de Jesus, o carro em 29 Palms, o trator que corta a imagem e os helicópteros e armas que atacam os tímpanos em Flandres. E, neste universo, não há dialética possível, não há contracampo: homens, natureza e máquinas compartilham a mesma lógica de um funcionamento agressivo e desprovido de sentimentos. A observação do trabalho que realizam é fria e ignora a circulação, contemplando apenas uma amarga progressão, uma estaticidade que pesa e anuncia um estado de coisas com pendor para a eternidade (seria a metrópole um cenário impossível para o diretor?). Neste sentido, Dumont está na contramão dos irmãos Dardenne, que depositam em um trabalho em curso um determinante de humanidade. Para André, protagonista de Flandres, trabalhar no campo, transar com a namoradinha ou participar de um tiroteio na guerra são ações que se equivalem e que ele performa mecanicamente. E é esta noção de equivalência que percorre o filme em sua principal articulação de sentido.

O deserto, que rechaça a vida com sua aspereza, com sua areia granulada sugerindo o pontilhismo da imagem, não está em contraste com o campo mais acolhedor, de verde aveludado que preenche; há uma continuidade conceitual, uma equivalência significante – a "costura" que Dumont realiza entre seus dois primeiros filmes e 29 Palms. O espírito que anima a guerra (uma guerra genérica, não-identificada) é o mesmo que move os homens em seu cotidiano morto. A animosidade a que assistimos não é muito diferente do permanente clima de tensão e de iminência de atrito que circunda os personagens na França. Sem justificativas, sem História, esta guerra torna-se apenas um conflito entre homens, a destilar seus piores instintos, um conflito declarado, que lhes permite extravasar a violência sub-reptícia a cada um de seus gestos. Donos de uma natureza mórbida e mergulhados em um mundo sem contrapontos à sua experiência exasperadora, à sua existência "mecânica", os personagens de Bruno Dumont não se "degradam" e, portanto, não se condenam. Não há castigo e a morte está na vida. A gravidade do registro – o tempo que parece pesar fisicamente nas ações e destinar o mundo à estaticidade – não abre espaço para um fluxo que escapasse, para um desejo qualquer que pudesse buscar um caminho por entre os cortes, como ocorre em Bresson.

A lógica da "equivalência", que aproxima em montagem paralela Flandres da Tunísia e sugere uma continuidade entre a ausência de "humanidade" da guerra e a de uma vidinha sem perspectivas é também o que vai estabelecer uma relação direta entre o sexo e a morte, através do impulso de violência. Não se trata, porém, de uma violência que agride o espírito, porque já não há espírito, mas de uma dureza irremediável que se faz sentir como tônica dominante da existência humana. Ao invés de propagador de vida, o sexo deflagra um impulso de morte (em Flandres, o aborto e o enlouquecimento histérico da namoradinha de André e o estupro da muçulmana, que leva à retaliação; em 29 Palms a relação nefasta entre o regojizo do assassinato e o do orgasmo, presente especialmente no urro animal do protagonista; em A Humanidade, o abuso-homicídio da garotinha como binômio inseparável).

Dumont define a humanidade pelo avesso, compondo um mundo no qual declaradamente a vida é como um fardo, uma atividade a ser levada a cabo penosamente, uma sina compartilhada desoladamente com a natureza. Neste mundo, em que um estupro não é muito diferente de um sexo consentido e onde a convivência está sempre no limite da suportabilidade, a saudade, a dor, o medo e o amor são instintos afiliados da agressividade, frutos da agrura de uma vida imposta, de uma sujeição à sobrevivência. Espécie de existencialismo invertido (pois não há melancolia, não há lamento, não há alma), a visão de mundo de Dumont define uma profunda descrença no mundo, uma falência do social e mesmo uma perturbadora desconfiança das faculdades cartesianas do homem, exercendo um peso inegável sobre cada um de seus planos e moldando à perfeição um universo próprio. A sua elegância e sobriedade narrativas determinam uma progressão de acontecimentos inexoráveis, um desencanto imanente, que faz dos homens seres à mercê de uma tragicidade sem implicações dramáticas, pois que caracteriza um estado de coisas perfeitamente naturalizado. O apaziguamento que sobrevém à aridez inerente a este deserto da alma é, portanto, o grande incômodo e o principal efeito de choque deste cinema. Somos corroídos pela placidez com que a vida é resumida a uma funcionalidade seca, doída e banal. Partindo do ceticismo e do desencanto fatal dos seus primeiros filmes, Dumont desemboca numa missão anti-humanitária confessa, em que suas afirmações cinematográficas vão se somando de forma a compor um complexo coeso, em que a violência se apresenta como instinto humano privilegiado, trazendo a reboque o desagradável conjunto sexo-morte. Podemos nos perguntar se haveria aí nesta ausência de "abstração" (de sentimentos e pensamentos), nesta materialidade distorcida e neste naturalismo perturbador (resultados de uma câmera que sugere uma observação isenta, mas que denota de forma manifesta uma representação insuflada de um olhar muito definido) alguma intenção pedagógica, algo para além do impacto emocional gratuito de professar tão enfaticamente tamanho desgosto. Ou, então, apenas lamentar profundamente que este louvável domínio da linguagem cinematográfica esteja a serviço de uma tal concepção da vida (a afirmação de uma não-vida).


Tatiana Monassa