FAST FOOD NATION
Richard Linklater, Fast Food Nation, EUA, 2006

É inevitável imaginar este novo filme de Richard Linklater, mesmo sem ler qualquer sinopse ou indicação de trama, tão somente pelo que o título entrega, e não pensar imediatamente numa versão ficcional de Super Size Me. Mais ainda, uma impressão de que o documentário de Morgan Spurlock é muito mais eficiente na denúncia dos malefícios da dieta básica americana não pode ser negada nem mesmo depois de realmente assistirmos Fast Food Nation. O discurso alarmista de saúde pública, a revolta cheia de estardalhaço contra as grandes corporações que sustentam uma indústria de vícios, a estratégia de ataque, tudo isso já é de início descartado por Linklater. Se o fast food compartilhado pelos dois filmes é o mesmo, pensá-lo em grande escala, ligado à uma idéia de "nação", é o que irá diferenciá-los. Que se deixe esse conceito de eficiência para as cadeias de hambúrguer que precisam melhorar suas vendas e para os filmes pobres que têm uma cota de panfletos a distribuir.

A eficiência aqui está do outro lado da mesa. Impossível dar conta de uma denúncia quando o objeto da investigação não é um fato extraordinário, ilha de exceção num mar de regras, mas exatamente o contrário, aquilo que é ordinário, comum, dividido por todos. Fosse assim, Fast Food Nation se contentaria com o mero filme-painel, diagnóstico generalizador de um problema muito maior que sua capacidade consciente de lidar com ele, um filme sobre a América e tudo o que há de errado com ela, sendo o primeiro erro essa mania metonímica inversa, que toma o todo pela parte, atribuindo endemias e contemplando grandezas no limite arrogante das duas horas de duração. O interesse maior aqui não é propriamente pelo resultado da conjunção de todos esses dados culturais, a começar pela comida rápida, que somada aos blockbusters, aos jogos de beisebol, aos políticos conservadores e a todos os outros elementos que possam compor essa suposição de um "espírito americano" atual, resultado esse que encaminharia o filme para um retrato perdido entre a reportagem e o cinema, onde nenhuma das duas possibilidades narrativas pudessem ser realmente levadas à cabo. Se foi mesmo eficiente no modo como se estabeleceu sobre a América, esse espírito é perceptível não por si mesmo, imaterial que é, mas por tudo aquilo que produziu como indício de sua efetividade.

Dialogar com esses indícios, tendo Fast Food Nation como espaço de encontro, é o único modo possível de tentar pensar esses dados culturais, e Linklater trará para seu filme tudo aquilo que este país produziu como imagem de sua própria permanência. A nação da comida rápida não é outra senão a nação que criou um repertório visual que pretende bastar enquanto forma de representação de sua história, como se essas imagens fossem combinações de lanche que se pedem pelo número, combinações estabelecidas e que todos precisam saber de cor para que seu consumo seja agilizado e simplificado. Assim, tão conhecida quanto a imagem de um sanduíche gorduroso sendo devorado instintivamente por alguém é a imagem da escarrada secreta que um adolescente que trabalhe fazendo esses sanduíches dê no produto a ser servido a um cliente que o desagrade. Postas em regime de equivalência, essas representações visuais sugerem uma restrição radical nas possibilidades de criação sobre a idéia que se tenha desta nação, e se Linklater está aqui mirando em algum alvo, ele não é o da resignação de uma população que assume sua incapacidade de transformação, mas sim o da obrigação de igual resignação imposta a todos aqueles que se disponham a encarar essa incapacidade, a revisar esses indícios.

Fast Food Nation irá encampar todas essas imagens numeradas e dominadas, constrangendo sua situação a partir do cansaço que cada uma delas deixa sempre evidente. Greg Kinnear encarna novamente a figura do all-american dad, já sem o caráter tragicômico de Sujou... Chegaram os Bears. Seu compromisso em investigar a suspeita de contaminação da carne que sustenta os lucros cada vez maiores da cadeia de lanchonetes em que trabalha, antes de tarefa corporativa ou defesa da qualidade do produto servido ao país, aparece como uma prestação de contas íntima aos filhos, consumidores do famoso sanduíche Big One, que toda noite esperam por um conto de ninar antes de serem postos a dormir pelo pai dedicado. Se vai eventualmente falhar na transformação da ordem de trabalho que tem favorecido a contaminação da carne, o tamanho da derrota será potencializado pela certeza da inviabilidade de uma imagem all num ambiente que sufoca qualquer tentativa de grandeza que não seja a sua própria, resultado da pequenez de cada um dos que tomam parte dela. Daí que mesmo a aparição de Bruce Willis, espécie de resumo da América branca e bruta, será carregada de uma certa confusão de discursos. Aliada à essa imagem do duro de matar por excelência, uma fala desconcertante sobre o clima de medo constante que parece dominar o país, algo certamente ligado às ameaças terroristas, mas que Willis usa como razão para essa tentativa de endireitar a produção de carne, como se o medo estivesse de tal maneira disseminado a ponto de igualar antraz em correspondências a coliformes fecais em hambúrgueres. "Às vezes é preciso comer alguma merda", e assim o capanga da indústria bovina encerra sua participação.

Pior é que esta frase não valha apenas como a piada de um esperto sobre um executivo pobre-coitado, mas exatamente como a base de sustentação de toda essa cultura da conformação. Na ponta fraca da cadeia, os imigrantes mexicanos que atravessam a fronteira ilegalmente para trabalhar nos subterrâneos da indústria, essa idéia é ainda mais evidente. Incapazes de escapar do caráter de produtos dessa conjunção, apresentados como resultado de tudo o que já se aferrou como a imagem do subdesenvolvimento, são encontrados por Linklater numa chave claramente melodramática, que esgota a originalidade em nome de maniqueísmos (o bom rapaz, a namorada santa e sua irmã corrompida, o capataz vilanesco). Nem mesmo os sotaques: em Fast Food Nation é impossível esconder o leve acento americano com que todos os imigrantes falam, porque eles também são pura projeção dessa idéia nacional. Do outro lado, no front de defesa da produção livre de imagens, nenhuma esperança no ativismo ecológico adolescente, reação de boutique, nem no ativismo do eu, como pretende o tio Ethan Hawke ao iluminar a vida de sua sobrinha com dicas de auto-ajuda.

Se o caminho tomado por Fast Food Nation apontava para alguma sugestão de reação, ela logo será suplantada por uma melancolia absoluta. Linklater aqui prescinde dos falsos professores de rock ou dos treinadores bêbados de beisebol infantil, porque a idéia que uma só pessoa possa contaminar de entusiasmo e vontade de mudança um ambiente tão acostumado à apatia é simplesmente inviável. Se em Escola do Rock e Sujou... Chegaram os Bears o diretor partia sempre da reunião de estereótipos clássicos (CDFs, patricinhas, gordinhos, efeminados, etc) para construções que conseguissem escapar da repetição de tipos ao mesmo tempo guardando traços dessa origem que pudessem provar o quanto ela ainda pode ter algum valor para a dramaturgia, em Fast Food Nation a recorrência dos clichês mostra-se sempre indisposta à qualquer dialética. Organizando o repertório de imagens da nação, Linklater prefere colocá-los contra a luz, enxergar através deles. É essa aproximação que imprime no filme aquela mesma idéia de conformação que Fast Food Nation supostamente precisaria combater. Sua desesperança, sua consciência do poder de fogo reduzido diante de um inimigo de proporções continentais, estiveram anunciadas desde as primeiras seqüências. A batalha da realidade parece perdida, e sua postura implacável não se deixa marcar nem mesmo pelo registro detalhado de toda insanidade do abate de gado num matadouro texano, ela mesma já absorvida e conformada dentro do espírito da nação. Mas a trincheira de Linklater é o cinema, e aqui, mesmo com a insistência das imagens esvaziadas de imagem, ainda é possível pensar sobre esse vazio, trabalhar nele, construir algo outro, e com filmes como Fast Food Nation, até recuperar a fé numa vitória daqueles inquietos demais para se deixarem enquadrar.


Rodrigo de Oliveira