É
inevitável imaginar este novo filme de Richard
Linklater, mesmo sem ler qualquer sinopse ou indicação
de trama, tão somente pelo que o título
entrega, e não pensar imediatamente numa versão
ficcional de Super Size Me. Mais ainda, uma impressão
de que o documentário de Morgan Spurlock é
muito mais eficiente na denúncia dos malefícios
da dieta básica americana não pode ser
negada nem mesmo depois de realmente assistirmos Fast
Food Nation. O discurso alarmista de saúde
pública, a revolta cheia de estardalhaço
contra as grandes corporações que sustentam
uma indústria de vícios, a estratégia
de ataque, tudo isso já é de início
descartado por Linklater. Se o fast food compartilhado
pelos dois filmes é o mesmo, pensá-lo
em grande escala, ligado à uma idéia de
"nação", é o que irá
diferenciá-los. Que se deixe esse conceito de
eficiência para as cadeias de hambúrguer
que precisam melhorar suas vendas e para os filmes pobres
que têm uma cota de panfletos a distribuir.
A eficiência aqui está do outro lado da
mesa. Impossível dar conta de uma denúncia
quando o objeto da investigação não
é um fato extraordinário, ilha de exceção
num mar de regras, mas exatamente o contrário,
aquilo que é ordinário, comum, dividido
por todos. Fosse assim, Fast Food Nation se contentaria
com o mero filme-painel, diagnóstico generalizador
de um problema muito maior que sua capacidade consciente
de lidar com ele, um filme sobre a América e
tudo o que há de errado com ela, sendo o primeiro
erro essa mania metonímica inversa, que toma
o todo pela parte, atribuindo endemias e contemplando
grandezas no limite arrogante das duas horas de duração.
O interesse maior aqui não é propriamente
pelo resultado da conjunção de todos esses
dados culturais, a começar pela comida rápida,
que somada aos blockbusters, aos jogos de beisebol,
aos políticos conservadores e a todos os outros
elementos que possam compor essa suposição
de um "espírito americano" atual, resultado
esse que encaminharia o filme para um retrato perdido
entre a reportagem e o cinema, onde nenhuma das duas
possibilidades narrativas pudessem ser realmente levadas
à cabo. Se foi mesmo eficiente no modo como se
estabeleceu sobre a América, esse espírito
é perceptível não por si mesmo,
imaterial que é, mas por tudo aquilo que produziu
como indício de sua efetividade.
Dialogar com esses indícios, tendo Fast Food
Nation como espaço de encontro, é
o único modo possível de tentar pensar
esses dados culturais, e Linklater trará para
seu filme tudo aquilo que este país produziu
como imagem de sua própria permanência.
A nação da comida rápida não
é outra senão a nação que
criou um repertório visual que pretende bastar
enquanto forma de representação de sua
história, como se essas imagens fossem combinações
de lanche que se pedem pelo número, combinações
estabelecidas e que todos precisam saber de cor para
que seu consumo seja agilizado e simplificado. Assim,
tão conhecida quanto a imagem de um sanduíche
gorduroso sendo devorado instintivamente por alguém
é a imagem da escarrada secreta que um adolescente
que trabalhe fazendo esses sanduíches dê
no produto a ser servido a um cliente que o desagrade.
Postas em regime de equivalência, essas representações
visuais sugerem uma restrição radical
nas possibilidades de criação sobre a
idéia que se tenha desta nação,
e se Linklater está aqui mirando em algum alvo,
ele não é o da resignação
de uma população que assume sua incapacidade
de transformação, mas sim o da obrigação
de igual resignação imposta a todos aqueles
que se disponham a encarar essa incapacidade, a revisar
esses indícios.
Fast Food Nation irá encampar todas essas
imagens numeradas e dominadas, constrangendo sua situação
a partir do cansaço que cada uma delas deixa
sempre evidente. Greg Kinnear encarna novamente a figura
do all-american dad, já sem o caráter
tragicômico de Sujou... Chegaram os Bears.
Seu compromisso em investigar a suspeita de contaminação
da carne que sustenta os lucros cada vez maiores da
cadeia de lanchonetes em que trabalha, antes de tarefa
corporativa ou defesa da qualidade do produto servido
ao país, aparece como uma prestação
de contas íntima aos filhos, consumidores do
famoso sanduíche Big One, que toda noite esperam
por um conto de ninar antes de serem postos a dormir
pelo pai dedicado. Se vai eventualmente falhar na transformação
da ordem de trabalho que tem favorecido a contaminação
da carne, o tamanho da derrota será potencializado
pela certeza da inviabilidade de uma imagem all
num ambiente que sufoca qualquer tentativa de grandeza
que não seja a sua própria, resultado
da pequenez de cada um dos que tomam parte dela. Daí
que mesmo a aparição de Bruce Willis,
espécie de resumo da América branca e
bruta, será carregada de uma certa confusão
de discursos. Aliada à essa imagem do duro de
matar por excelência, uma fala desconcertante
sobre o clima de medo constante que parece dominar o
país, algo certamente ligado às ameaças
terroristas, mas que Willis usa como razão para
essa tentativa de endireitar a produção
de carne, como se o medo estivesse de tal maneira disseminado
a ponto de igualar antraz em correspondências
a coliformes fecais em hambúrgueres. "Às
vezes é preciso comer alguma merda", e assim
o capanga da indústria bovina encerra sua participação.
Pior é que esta frase não valha apenas
como a piada de um esperto sobre um executivo pobre-coitado,
mas exatamente como a base de sustentação
de toda essa cultura da conformação. Na
ponta fraca da cadeia, os imigrantes mexicanos que atravessam
a fronteira ilegalmente para trabalhar nos subterrâneos
da indústria, essa idéia é ainda
mais evidente. Incapazes de escapar do caráter
de produtos dessa conjunção, apresentados
como resultado de tudo o que já se aferrou como
a imagem do subdesenvolvimento, são encontrados
por Linklater numa chave claramente melodramática,
que esgota a originalidade em nome de maniqueísmos
(o bom rapaz, a namorada santa e sua irmã corrompida,
o capataz vilanesco). Nem mesmo os sotaques: em Fast
Food Nation é impossível esconder
o leve acento americano com que todos os imigrantes
falam, porque eles também são pura projeção
dessa idéia nacional. Do outro lado, no front
de defesa da produção livre de imagens,
nenhuma esperança no ativismo ecológico
adolescente, reação de boutique, nem no
ativismo do eu, como pretende o tio Ethan Hawke ao iluminar
a vida de sua sobrinha com dicas de auto-ajuda.
Se o caminho tomado por Fast Food Nation apontava
para alguma sugestão de reação,
ela logo será suplantada por uma melancolia absoluta.
Linklater aqui prescinde dos falsos professores de rock
ou dos treinadores bêbados de beisebol infantil,
porque a idéia que uma só pessoa possa
contaminar de entusiasmo e vontade de mudança
um ambiente tão acostumado à apatia é
simplesmente inviável. Se em Escola do Rock
e Sujou... Chegaram os Bears o diretor partia
sempre da reunião de estereótipos clássicos
(CDFs, patricinhas, gordinhos, efeminados, etc) para
construções que conseguissem escapar da
repetição de tipos ao mesmo tempo guardando
traços dessa origem que pudessem provar o quanto
ela ainda pode ter algum valor para a dramaturgia, em
Fast Food Nation a recorrência dos clichês
mostra-se sempre indisposta à qualquer dialética.
Organizando o repertório de imagens da nação,
Linklater prefere colocá-los contra a luz, enxergar
através deles. É essa aproximação
que imprime no filme aquela mesma idéia de conformação
que Fast Food Nation supostamente precisaria
combater. Sua desesperança, sua consciência
do poder de fogo reduzido diante de um inimigo de proporções
continentais, estiveram anunciadas desde as primeiras
seqüências. A batalha da realidade parece
perdida, e sua postura implacável não
se deixa marcar nem mesmo pelo registro detalhado de
toda insanidade do abate de gado num matadouro texano,
ela mesma já absorvida e conformada dentro do
espírito da nação. Mas a trincheira
de Linklater é o cinema, e aqui, mesmo com a
insistência das imagens esvaziadas de imagem,
ainda é possível pensar sobre esse vazio,
trabalhar nele, construir algo outro, e com filmes como
Fast Food Nation, até recuperar a fé
numa vitória daqueles inquietos demais para se
deixarem enquadrar.
Rodrigo de Oliveira
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