Johnnie
To é um modulador de formas. Este conceito que sempre
permeou a obra do cineasta chega a sua face mais concreta
em Exiled. Embora possivelmente figure entre
os dez cineastas que mais dominem as formas cinematográficas
hoje, não interessa a Johnnie To ser um inventor. Neste
sentido ele se aproxima diretamente de Brian De Palma,
outro cujo domínio de espaço, câmera e tom lhe permitiu
retrabalhar todo um arsenal de imagens, criando a partir
disso um cinema completamente pessoal. Em Exiled
sobra uma dedicação à história do cinema, sendo o próprio
filme uma espécie de Meu Ódio Será Sua Herança
filmado por Sergio Leone e ambientado na Hong Kong dos
dias de hoje. Tudo isto sem soar meramente referencial,
pois Exiled é tudo menos um filme morto.
A longa seqüência de abertura já dá uma noção do clima
ultraformalista que tomará conta do filme. Numa verdadeira
obra-prima da espera, a esposa de Wo, um gangster local
que havia desaparecido por algum tempo e recentemente
retornara, recebe a visita de um grupo de gangsteres
contratados pelo antigo chefe de Wo para matá-lo. Ao
mesmo tempo, alguém que lhe deve a vida aparece para
defendê-lo. O que se segue é uma sucessão de planos
com a duração perfeita que vão aumentando a tensão gradualmente,
focando a espera dos grupos, da esposa e bebê de Wo,
e vai ganhando personagens a cada novo plano. A seqüência
é longa, e To já exibe seu talento impressionante para
o controle dos planos, enquadrando e cortando como poucos.
Tudo está na medida e a explosão em cena no momento
em que o embate finalmente ocorre é das maiores. Exiled
é um filme cuja única lógica é a de ser cinema. Daí
o fato de ser estilizado ao limite, sem um único plano
que não pareça ter sido calmamente arquitetado para
aquele espaço, aquelas movimentações. É uma espécie
de maneirismo elevado ao limite.
Todo este conceito de cinema é refletido diretamente
na dramaturgia que ele emprega. To se utiliza de uma
dramaturgia do absurdo, onde nada é posto em cena por
acaso, e o que há de mais mirabolante nas relações entre
os personagens deve acontecer. A situação-exemplo desta
noção da ausência do acaso é o trem com carregamento
de ouro que passaria pela montanha budista, um dos trabalhos
oferecidos ao grupo. Eles terminam passando o trabalho
e optando por algo que lhes parece mais realista, e
após uma quantidade considerável de ações diferentes
e de suma importância ocorrerem na trama, nosso grupo
acabará de frente para o trem de ouro. Quando Wo é seriamente
baleado por seu antigo chefe (Simon Yam, presença mais
que constante nas obras de To), o grupo liderado pelo
genial Anthony Wong o leva para um médico clandestino.
Quando ele termina de costurar a barriga de Wo, mais
uma das seqüências antológicas de Johnnie To ocorre:
seu chefe é levado para o mesmo local. O que se segue
é mais uma aula sobre como filmar um tiroteio num espaço
pequeno se utilizando de cada detalhe em cena.
Exiled também é um filme sobre amizade e honra,
construído em torno desta versão moderna do Wild
Bunch (o bando de selvagens) de Sam Peckinpah. A
conclusão da já descrita primeira seqüência é exemplar,
quando, após um longo tiroteio, a noção de família é
restituída na imagem de esposa e filho de Wo, e repentinamente
passa a completar, em grupo, a mudança da casa de Wo,
jantando, bebendo e se divertindo juntos. Estes cinco
homens nutrem uns pelos outros um sentimento de amizade
e admiração raro, e To faz crer isso em cada plano que
os filma juntos. Eles acabam por decidir que Wo possa
participar de um último trabalho junto do grupo, para
que possa deixar sua família em condições de seguir
sem ele. Na execução do trabalho, Wo termina por salvar
a vida do personagem de Anthony Wong, e em conseqüência
ficando à beira da morte. Essa noção de dar a vida pelo
parceiro está impregnada em toda a jornada destes personagens.
Mais que personagens, eles são também o mesmo grupo
de atores que dividiram cena em The Mission (1999),
aqui reunidos como outros personagens, mas onde To claramente
se usa deste sentimento de um grupo reunido. O sentimento
de honra também surge na relação que estabelecem com
o policial que cuida do carregamento de ouro que estava
no trem. Wong, mesmo tendo condições de simplesmente
tomar o ouro para o grupo, propõe que se divida o ouro
em partes iguais e que se fuja com elas. Mais tarde,
quando o grupo é posto contra a parede por seu antigo
chefe que ameaça a família de Wo, o policial lhes garante
que esperará até o amanhecer.
O momento em que chegam completamente alcoolizados para
o duelo final contra Simon Yam, cientes que ali enfrentariam
uma batalha que não poderiam vencer mas que era a coisa
certa a fazer, remete diretamente ao filme de Peckinpah.
Após um rápido embate, apenas o personagem de Wong é
mantido refém; os outros calmamente levam a mulher de
Wo e seu filho até o lado de fora, lhes dão um carro
e avisam a respeito do policial que os aguarda. Retornam
para dentro, mais uma vez cientes de que este movimento
lhes custará a vida, mas que abandonar um parceiro para
a morte seria pior ainda. O que se segue é o tiroteio
de abertura mais apoteótica possível, onde o resultado
é aquele que por mais que admirássemos os personagens,
era o único possível: a morte de todos os envolvidos.
Dois momentos já no fim reafirmam a capacidade de To
de fazer crer suas imagens mais absurdas através de
seu cinema: a lata de Red Bull voando em primeiro plano
abrindo o tiroteio e o último suspiro de Wong colocando
os óculos escuros para enfim poder morrer. Há ainda
a imagem final, com as fotografias de três momentos
daquele grupo unido. Primeiro, na juventude; segundo,
junto da família de Wo no começo do filme; e, por fim,
nas fotos que tiram instantes antes de partirem para
a morte. Este é o cinema de Johnnie To.
Guilherme Martins
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