Um
poeta de outros tempos escreveu certa vez que por delicadeza
perdeu sua vida. Pois o filme Eu Me Lembro permite
que se diga exatamente o contrário sobre Edgard Navarro
e Guiga, o realizador e seu alter ego no filme: é pela
delicadeza do olhar que se encontra a vida e só assim
é que ela pode ser revista. A vida de Guiga, tal como
nos é contada, é uma sucessão de ritos de amadurecimento
sexual e afetivo - e, embora suas opções ao longo do
seu trajeto sejam bem mais transgressoras do que se
poderia esperar do senso comum dos dias de hoje, é justamente
a graça do relato que se impõe. Assim, todas as suas
histórias de tesão, descobertas e putarias transparecem
tamanhos pureza e humor que nada disso se revela chocante
ou incômodo. Xingar a mãe de puta, observar o seu sexo,
ver a nudez da vizinha, aprender a se masturbar, experimentar
substâncias, encontrar sua turma: em Eu Me Lembro,
tudo isso é parte graciosa do ritual de aprender a viver.
Seja no trecho em que fala das experiências da infância
e início da adolescência, certamente a parte mais engraçada
e doce do filme, seja na passagem para a vida adulta
- quando, após flertar de um jeito um pouco caricato
e travado com o sub-gênero "retrato de uma época", Eu
Me Lembro volta ao que tem de melhor, ou seja, falar
dos sentimentos íntimos de Guiga. É daí que o filme
tira a sua força.
Desse modo, Eu Me Lembro se distancia de quase
todo o cinema brasileiro recente (e não só brasileiro).
Por outro lado, pode-se dizer que este cinema memorialista
de Navarro é praticamente um filme-irmão de Alma
Corsária, de Carlos Reichenbach. Navarro levou fé
extrema no velho dito que ensina que falar da aldeia
é falar do mundo, e assim o seu filme falou de sentimentos
infantis plenamente identificáveis, não importa se tiveram
sua origem em lembranças pessoais, de outros ou apenas
invenções. Isso tudo poderia soar banal, mas não é o
caso: a graça e a inquietação do filme fazem do encontro
com ele uma sessão de relembranças e comparações. Não
tenha dúvida, caro leitor - enquanto via cada trecho
do filme, pensava eu, cá com minhas memórias: "Ah,
comigo não foi assim, foi assado"; "ah, isso
comigo também foi mais ou menos assim"... Não escolhemos
nem fugimos, apenas somos assim.
Esse grau de identificação que um filme pode gerar,
tão presente em Eu me Lembro - entre realizador
e personagem, entre personagem-realizador e espectador-personagem
-, é tratado como problema em um sem-número de textos
e filmes, inclusive alguns dos curtas e médias anteriores
do próprio Edgard Navarro. Se antes suas obras se caracterizavam
por uma aproximação até mesmo física entre realizador
e obra (como em O Rei do Cagaço e Exposed)
sem esconder a intenção de incomodar o espectador (lembrando
ainda da agressividade suicida do SuperOutro),
não é o caso de Eu Me Lembro - o tom confessional
e o humor trazem um clima de cumplicidade direta entre
seu universo e quem assiste. Não é de forma inconsciente
ou ingênua que o filme se deixa tomar por essa capacidade
encantatória do cinema narrativo: Guiga/Navarro sabe
muito bem por que caminhos suas viagens podem conduzir.
Esse trajeto de descobertas, conflitos e transgressões,
exposto com tanta doçura, pode transmitir a quem o vê
uma certa inquietação, uma vontade de olhar para si
- algo que ocorre como que por magnetismo, já que, no
fim das contas, essa vontade é o ponto de partida de
Eu Me Lembro.
Daniel Caetano
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