EU ME LEMBRO
Edgard Navarro, Brasil, 2005

Um poeta de outros tempos escreveu certa vez que por delicadeza perdeu sua vida. Pois o filme Eu Me Lembro permite que se diga exatamente o contrário sobre Edgard Navarro e Guiga, o realizador e seu alter ego no filme: é pela delicadeza do olhar que se encontra a vida e só assim é que ela pode ser revista. A vida de Guiga, tal como nos é contada, é uma sucessão de ritos de amadurecimento sexual e afetivo - e, embora suas opções ao longo do seu trajeto sejam bem mais transgressoras do que se poderia esperar do senso comum dos dias de hoje, é justamente a graça do relato que se impõe. Assim, todas as suas histórias de tesão, descobertas e putarias transparecem tamanhos pureza e humor que nada disso se revela chocante ou incômodo. Xingar a mãe de puta, observar o seu sexo, ver a nudez da vizinha, aprender a se masturbar, experimentar substâncias, encontrar sua turma: em Eu Me Lembro, tudo isso é parte graciosa do ritual de aprender a viver. Seja no trecho em que fala das experiências da infância e início da adolescência, certamente a parte mais engraçada e doce do filme, seja na passagem para a vida adulta - quando, após flertar de um jeito um pouco caricato e travado com o sub-gênero "retrato de uma época", Eu Me Lembro volta ao que tem de melhor, ou seja, falar dos sentimentos íntimos de Guiga. É daí que o filme tira a sua força.

Desse modo, Eu Me Lembro se distancia de quase todo o cinema brasileiro recente (e não só brasileiro). Por outro lado, pode-se dizer que este cinema memorialista de Navarro é praticamente um filme-irmão de Alma Corsária, de Carlos Reichenbach. Navarro levou fé extrema no velho dito que ensina que falar da aldeia é falar do mundo, e assim o seu filme falou de sentimentos infantis plenamente identificáveis, não importa se tiveram sua origem em lembranças pessoais, de outros ou apenas invenções. Isso tudo poderia soar banal, mas não é o caso: a graça e a inquietação do filme fazem do encontro com ele uma sessão de relembranças e comparações. Não tenha dúvida, caro leitor - enquanto via cada trecho do filme, pensava eu, cá com minhas memórias: "Ah, comigo não foi assim, foi assado"; "ah, isso comigo também foi mais ou menos assim"... Não escolhemos nem fugimos, apenas somos assim.

Esse grau de identificação que um filme pode gerar, tão presente em Eu me Lembro - entre realizador e personagem, entre personagem-realizador e espectador-personagem -, é tratado como problema em um sem-número de textos e filmes, inclusive alguns dos curtas e médias anteriores do próprio Edgard Navarro. Se antes suas obras se caracterizavam por uma aproximação até mesmo física entre realizador e obra (como em O Rei do Cagaço e Exposed) sem esconder a intenção de incomodar o espectador (lembrando ainda da agressividade suicida do SuperOutro), não é o caso de Eu Me Lembro - o tom confessional e o humor trazem um clima de cumplicidade direta entre seu universo e quem assiste. Não é de forma inconsciente ou ingênua que o filme se deixa tomar por essa capacidade encantatória do cinema narrativo: Guiga/Navarro sabe muito bem por que caminhos suas viagens podem conduzir. Esse trajeto de descobertas, conflitos e transgressões, exposto com tanta doçura, pode transmitir a quem o vê uma certa inquietação, uma vontade de olhar para si - algo que ocorre como que por magnetismo, já que, no fim das contas, essa vontade é o ponto de partida de Eu Me Lembro.


Daniel Caetano

 

 





Eu Me Lembro, de Edgard Navarro