Dias
de Glória, de Rachid Bouchared, é um filme necessário.
Por sua importância temática, sua conotação política
e sua revalorização histórica – conta-se a participação
dos soldados colonizados que defenderam a França na
Segunda Guerra Mundial –, não pode ser ignorado. O diretor
revela uma história encoberta pela escrita oficial que,
em igual grau, permanece nas relações conflituosas –
e injustas - que continuam a existir entre franceses
originários e descendentes de africanos (ou africanos
em geral). Dias de Glória é, antes de tudo, um
filme necessário, e possivelmente este é seu maior mérito
e também defeito. Se esta história precisava ser contada,
Bouchared optou por fazê-la sem riscos, avanços ou outras
preocupações formais maiores. Afinal, é um filme necessário,
e todos – da criança parisiense ao velhinho da Alsácia
– precisam compreender isso. Quando, porém, o tema sobrepõe-se
ao modo como é tratado, este mesmo tema acaba por perder
sua força, sua importância, e, em última instância,
sua necessidade. Dias de Glória padece desse mal.
Não que seja, propriamente, um filme medíocre. O diretor
conhece bem os códigos do cinema clássico narrativo,
e os utiliza com propriedade. Os movimentos de câmera
têm uma certa elegância, as cenas de guerra uma certa
força – para a qual contribui o efeito de “cobrir a
lente” com a poeira saída do contato das bombas com
a areia –, os enquadramentos uma certa beleza. Os personagens
são bem construídos, cada um com sua função, e os atores
todos estão em sua melhor forma (no caso, o fato de
serem descendentes de africanos contribui para isso,
e não se pode dizer que o prêmio-conjunto de atuação
masculina em Cannes seja desmerecido). A história é
envolvente, e seu ineditismo aumenta esse valor. Enfim,
um filme bastante bem-feito, mesmo que nunca brilhante.
Ainda assim, Rachid Bouchared não dirige imbuído de
um espírito autoral ou um sentido de renovação da imagem.
E, afinal, se o objetivo de seu filme é fazer um questionamento
da história – como foi escrita –, também deveria se
fazer um questionamento da imagem – como foi filmada.
Ao utilizar-se dos códigos que, em certo sentido, reforçaram
a colonização de seu povo, o diretor acaba por afirmar
aquilo que, ao longo da projeção, nega.
Pode-se argumentar que, ao contrário, Rachid Bouchared
faz o filme mais político. Se todo seu discurso é de
inclusão dos africanos naquela pátria que deveria ser
também deles e que, por vários fatores, não é, nada
mais justo do que dar a esses africanos o direito de
fazer os mesmos filmes que os franceses – por sua posição
de colonizadores – têm desde que o cinema começou. Afinal,
toda a luta destes homens é para provar que eles, também,
são franceses. O grande problema desta noção, porém,
é que, dependendo das opções estéticas do diretor, esses
mesmos homens deixam de ser africanos. Não é porque,
em vez de uma trilha de James Horner nas cenas dramáticas,
a música incidental ganha o caráter de uma canção muçulmana
que toda uma cultura está justificada. Nem porque grandes
atores relegados normalmente ao papel de coadjuvantes
têm agora sua chance de brilhar que eles ganharam o
papel que merecem. Tampouco as constantes indagações
sobre o papel dos soldados naquela guerra tomam a forma
que deveriam. Um Resgate do Soldado Ryan – guardadas
as devidas proporções entre o sentimentalismo exacerbado
do diretor americano e o sentimentalismo contido do
diretor franco-argelino – sobre o outro lado da moeda
não deixa de ser, em parte, um O Resgate do Soldado
Ryan, ainda. Rachid Bouchared corta quando deve
cortar, fecha o plano quando um ator deve aparecer,
movimenta a câmera quando a cena pede. Se o tema é profundo,
o didatismo da imagem volta a discussão para o raso.
Talvez o melhor exemplo deste didatismo – e sintomático
de toda a construção narrativa – seja a forma com a
qual Bouchared trata os franceses e os africanos presentes
no campo de batalha. Os primeiros, mesmo com poucos
minutos de tela, são tachados como manipuladores, mentirosos,
enfim, verdadeiros vilões. Os segundos, ainda que com
suas diferenças de personalidade, são soldados de boa
índole e coração. Os segundos libertam realmente a França
dos alemães. Os primeiros ganham as mulheres, o dinheiro,
as patentes e a História (e existem cenas para explicar
cada uma dessas situações). Essa oposição simplista
é a base do cinema do diretor, que, se apresenta vários
méritos (em especial a discussão sobre qual é realmente
a pátria de homens perdidos entre serem retirados de
suas culturas e não aceitos em nenhuma outra), acaba
por perdê-los, a cada close, a cada panorâmica, a cada
corte. Dessa forma, a História, infelizmente, permanece
a mesma.
Leonardo Levis
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