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Sexta-feira, 06 de outubro de 2006
O Festival do Rio chegou ao fim mas nossa cobertura
ainda vai ficar por um tempinho, seja porque alguns
diversos textos prometidos ainda estão
para chegar, seja porque ainda tem repescagem e a chance
de alguns comentários de última hora,
e ainda por alguns juízos de conjunto que o fim
de um período como esses, vendo e pensando cinema
durante as vinte e quatro horas do dia, permite. Mas
fiquemos por enquanto com os comentários do último
dia de filmes. Em A Terra Abandonada, de Vimukthi
Jayasundara, ajuda conhecer um pouquinho o pano de fundo
da conturbada história recente do Sri Lanka,
país com uma história de vinte anos de
guerra civil. O filme utiliza um espaço desolado,
amaldiçoado (Forsaken Land é o
nome do filme em inglês) para evocar o estado
de espírito de todo o território. O filme
consegue alguns bonitos resultados, mas no geral funciona
como aquele mesmo cinema recheado de tiques de "cinema
artístico" que povoam o world-cinema que
costuma estar presente nos festivais internacionais.
Um lirismo fácil, situações soltas,
fotografia vistosa e rapidamente o filme desanda, e
enquanto os planos duram, duram, duram, a gente pensa
nas coisas urgentes que tem que fazer depois do Festival.
O pensamento vai longe. Era uma dessas apostas fortes
do Festival além do prêmio da Caméra
d'Or em Cannes, que geralmente não conta muito,
o filme teve elogios em
jornais bacanas e ganhou comentários muito positivos
de Kent Jones, um dos melhores críticos americanos
hoje que não se confirmaram. Como, aliás,
o Caméra d'Or desse ano, 12:08, Leste de Bucareste,
em que a inspiração se esgota com alguhns
poucos minutos e depois vira Zorra Total voltado
para o público cult. Em seguida, ali onde não
esperávamos tanto, vemos um Jafar Panahi em plena
forma com Fora de Jogo, em que o jogo de futebol
que daria a classificação ao Irã
para a Copa do Mundo é o ponto de partida para
um questionamento sobre as interdições
da sociedade, aqui objetivamente dirigidas às
mulheres, e como os mecanismos de poder se exercem e
se perpetuam à revelia do desejo e da índole
de seus executores. O parâmetro de Panahi, ainda
e sempre, é Kiarostami, mas em seus melhores
filmes ele sempre leva a estética kiarostamiana
a um afrontamento político mais direto com o
regime. E o que dizer do momento de epifania final,
em que a comemoração pela classificação
iguala a todos e suspende a culpa? Talvez seja meu momento
preferido de todo cinema de Panahi até
então, era a seqüência close-upiana
de O Espelho em que som e imagem se desarticulam.
Em seguida, Palácio de Verão, quinto
longa-metragem de Lou Ye, que virou diretor-revelação
do cinema chinês com O Rio Suzhou e agora
faz tudo para perder o título. Seu talento não
foi confirmado com Borboleta Púrpura,
e Palácio de Verão pode ser um
filme simpático, bonito em momentos, mas é
um filme tão frouxo esteticamente que até
chega a dar dó. Confiança exagerada em
jump cuts e câmera instável, reiteração
de cenas de sexo filmadas sem maior gosto e sempre da
mesma forma e uma narrativa que não se arranja
muito bem com as passagens de tempo e com a atenção
aos outros personagens que não a protagonista.
Em seguida, claro, a cerveja da confraternização,
com presença recorde de contracampistas numa
mesa. Descanso merecido...
Quinta-feira, 05 de outubro de 2006
Camponeses rasgados e sujos, gestos pouco compreensíveis,
a vida em seus aspectos mais primitivos, trabalhar para
comer e ter abrigo. Estamos diante de um remake de A
Balada de Narayama? Not really. Rapidamente a impressão
se desfaz, e Mundo Novo de Emanuele Crialese
se constrói através da busca de uma família
camponesa italiana por um futuro melhor nos Estados
Unidos, um país vislumbrado e marquetado como
terra da fartura, em que animais e legumes ganham proporções
agigantadas, uma espécie de Canaã dos
tempos modernos. Primeira deficiência do filme:
um contraste monumental entre a ignorância inocente
dos matutos e a maldade dos aproveitadores ou o cientificismo
dos aplicadores de testes. Relação entre
humanidade vs. reificação meio primária,
uma definição de "calor humano"
e bondade meio clichezada (certamente já a vimos
muitas vezes antes) e sem matizes. Segunda deficiência:
uma enorme mão pesada que por vezes recai num
inesperado academicismo. Mundo Novo sobrevive,
então, a essas características tão
desoladoras? Sim, definitivamente, porque apesar de
toda carapaça oficialesca, do ritmo pesadão,
do "tema nobre", Emanuele Crialese realmente
tem o dom de usar a câmera para captar os sentimentos
e os olhares dos personagens, e o faz de forma poderosa,
rompendo a armadura de elefante branco que ameaçava
se cristalizar sobre o filme. Outro cineasta que nos
últimos filmes vem tendo que lidar com a síndrome
do elefante branco é Martin Scorsese, e nessa
negociação entre espetáculo de
grande estúdio e estilo pessoal fez dois filmes
apaixonantes na proposta mas irregulares em sua realização,
Gangues de Nova York e O Aviador. Confesso
que eu tinha muito medo de Os Infiltrados, e achava
que poderia ser a capitulação definitiva
de Scorsese à grandiloqüência unanimista
à George Stevens. Mas nada disso. Em Os Infiltrados,
o gênero vem se reinscrever de forma decisiva,
e dá uma pulsação vibrante que
me parece bem superior à de seus dois últimos
filmes. Pode-se torcer o nariz com certos diálogos
espertinhos que jogam pra galera, mas o filme consegue
criar uma atmosfera de tensão que me eletrizou
do começo ao fim, bem mais que o bom Infernal
Affairs de Andrew Lau, o original de Hong Kong no
qual Os Infiltrados se baseia. É sabida
a paixão que Scorsese tem pelo sistema de estúdios
da Hollywood clássica, e o amor que ele tem pelos
cineastas que conseguiam imprimir sua assinatura mesmo
que eles não pudessem escolher os roteiros que
filmavam ou os atores que seriam as estrelas. Só
que Scorsese começou a fazer filmes em outra
época em que a configuração artesão/cineasta
não se dava mais de forma tão cabal, e
em que a própria economia do gênero já
tinha sido desconsolidada e de certa forma, esgotada
ao longo da década de 60. Daí refilmar
Cabo do Medo, daí fazer filmes estrelados
por DiCaprio, como uma maneira de se autodesafiar e
aceitar-se nas mesmas condições desses
diretores de uma época adorada. Me parece que
Os Infiltrados é o primeiro filme que
realiza a contento essa tarefa, porque, quanto mais
Scorsese parece se esconder atrás da agilidade
e da eficiência narrativas, da ausência
de estilo pessoal, mais ele se mostra em suas marcas
registradas (uso de música, por exemplo) e sobretudo
na atmosfera criada, nos instalando num clima de paranóia
urbana e um quase total descontrole sobre como agir,
dado que a intervenção das coisas sobre
nós é maior do que a intervenção
que podemos ter sobre as coisas (não seria essa
característica algo que perpassa toda sua obra,
acompanhada do desejo, sempre frustrado, de ainda assim
conseguir controlar tudo?). Não sou um scorsesesmaníaco,
nunca fui, mas Os Infiltrados me pegou de jeito.
(RG)
Quarta-feira, 04 de outubro de 2006
Ótimo entrar num filme de festival em que você
não sabe nada além da nacionalidade e
da temática, não tem nenhuma referência,
jamais ouviu falar do título ou do nome do diretor.
Ótimo? Peraí. Neve... criancinha... filme
sensível... trilha sonora de pianinho... efeitos
devastadores da Segunda Guerra na vida familiar de um
grupo de pessoas... imigração forçada...
trauma infantil... mãe boazinha e madrasta malvada...
mise-en-scène que faz Ron Howard parecer
Otto Preminger... Entre o zZzzZzz e a porta de saída,
preferi a segunda, e essa é a história
de por que Minha Vida Sem Minhas Mães,
filme finlandês de Klaus Härö, não
terá nem pílula na revista. Aproveito
o tempo livre para fazer compras, reabastecer os DVD-Rs,
comprar alguns DVDs (Cassino e Spartacus,
ambos em edição de colecionador, vinte
merréis cada um), e em seguida rumo ao Palácio,
onde vejo pela primeira vez o excelente Eletrodoméstica
de Kleber Mendonça Filho e revejo o igualmente
belo Eu Me Lembro de Edgard Navarro. O Kleber,
creio, todo leitor da revista conhece pelo quadro de
cotações, e também pelo site Cinemascópio.
De filme em filme, comendo bem pelas beiradas, ele vai
se transformando no melhor curta-metragista brasileiro
da década, pelo menos até agora e até
prova em contrário (pois há alguns contendores
que brigam dignamente pelo "título").
Eletrodoméstica fala de tédio, de vida
cotidiana e regrada, do poder dos objetos técnológicos
sobre nossas vidas, mas é sobretudo um filme
que faz delirar tudo isso retirando a transcendência
a partir do prosaico. Alain Bergala fala do agenciamento
kiarostamiano, de acoplamentos que permitem que se ultrapasse
os obstáculos. Aqui, a mesma coisa: o aspirador
de pó deixa de aspirar o chão e aspira
a fumaça de um cigarro de maconha (afinal, dona
de casa não pode dar bandeira para os filhos),
a máquina de lavar se transforma num vibrante
parceiro sexual. OK, a notícia não é
nova, o filme já circulou por uma série
de festivais, mas eu perdi todos e só vi agora.
Além do mais, é tão raro ver curtas-metragens
realmente bons no Festival (há sempre exceções,
claro, como A Miss e o Dinossauro 2005 e o filme
de Allan Sieber, mas a seleção do Festival
se esmera em trazer para o espectador obras inassistíveis
a cada ano) que a simples aparição de
um deles já é motivo de destaque. Em seguida,
a sessão continua entre a moralidade e a transgressão
com Eu Me Lembro, belíssimo filme memorialista
de Edgard Navarro, conjugando o sentimental e o anarquizante,
o libertário com as agruras familiares, a adorável
indisciplina infantil com a necessidade do crescimento
("Quero crescer para fazer tudo que é proibido",
diz o personagem de Guiga). Um filme que acha seu ritmo
no tranco e nunca mais abandona, maravilhoso, passando
de memória em memória com desenvoltura
e sem a necessidade das colagens atenuantes do "bom
tom". Um lirismo apaixonante ("Foi minha primeira
decepção religiosa", fala Guiga quando
vê que pelo vidro fosco, quebrado por uma pedra
lançada de estilingue, existe apenas o quintal
da vizinha, e não a casa de Deus, como escutara
de sua irmã), uma índole que foge de qualquer
parasitismo "histórico" (ou seja, estamos
diante de um território totalmente diferente
dos Zuzu Angels da vida) e uma sensibilidade
distintiva transposta para o cinema com talento e rigor.
É o meu filme brasileiro do ano. Num ano que
ainda tem Crime Delicado e O Céu de
Suely, a briga é bem boa. Em seguida, vi
a nova papagaiada de Patrice Chéreau, Gabrielle,
em que a provável maior qualidade do filme, a
fotografia de Eric Gautier, era estragada pela exibição
em digital de uma matriz pra lá de vagabunda.
Se a mise-en-scène já parecia a de um
telefilme metido a besta, a exibição em
vídeo faz parecer que estamos vendo uma daquelas
soporíferas minisséries do Eurochannel.
Em seguida, Os Anjos Exterminadores, filme misterioso
que se arroga e cumpre o desbravar de um terreno pantanoso
e controverso, a relação entre desejo
sexual feminino e transgressão, e ao mesmo tempo
a conseqüente questão da representação
do sexo no cinema. O filme usa com astúcia algumas
facilidades estilísticas que aproximam o filme
de um pornosoft (trilha musical vagabunda, iluminação
idem, protagonista canastrão) mas o questionamento
do filme vai muito além do que simplesmente mostrar
duas ou três moçoilas se pegando. Belo
filme, espécie de companion piece de Coisas
Secretas mas talvez, e nesse momento é
o que me parece, melhor do que ele , e também,
a seu jeito, um filme extremamente perturbador ao traçar
as relações entre prazer e ridículo,
gozo e transgressão, tabu e sanidade, sedução
e mentira e uma série de outras chaves que o
filme insere meio que sub-repticiamente na intriga.
(RG)
Terça-feira,
03 de outubro de 2006
Bons tempos em que a dúvida insistente de um
filme era se um homem e uma mulher tinham se encontrado
no ano anterior em Marienbad. Esse ano, a insistente
questão, levada às raias do insuportável,
é saber se houve ou não gente na praça
de uma cidadezinha da Romênia antes ou depois
de 12:08. Dependendo da resposta, vai ser confirmada
ou não a existência de uma revolução
que se anteciparia à simples continuação
dos festejos começados em outras cidades a partir
da viagem de Ceausescu para fora do país. A maneira
como 12:08 Leste de Bucareste realiza essa "investigação"
para mostrar o absurdo da questão da nova independência
do país é até simpática,
mas esse lance de filmar um simples episódio
para mostrar o absurdo total de uma situação
já foi feito inúmeras vezes antes (exemplo:
Terra de Ninguém de Danis Tanovic), e
revela sinceramente uma apreensão muito cômoda
e confortável de um "tema grande",
claro, posando de "crítica" a um estado
de coisas. Mas o pior de tudo é a forma como
o filme ultrapassa muitas vezes a simples caricatura
para tirar umas risadas fáceis do espectador,
sobretudo no programa de televisão que ocupa
a segunda metade do filme. Em seguida, salva o dia Exiled,
belo filme de Johnnie To (que alterna sua grafia o tempo
todo com "Johnny", então fica difícil
estabelecer um padrão), uma pistol opera evocativa
dos filmes da década de 60 de Seijun Suzuki ou
da trilogia dos dólares de Leone, claro, vertidas
ao ultraestiloso e carregado jeito-Hong Kong de filmar.
Quem já viu Breaking News, Fulltime
Killer ou Eleição sabe que
To é um cineasta que não se contenta com
as formas mais convencionais de transpor uma história
para a tela. Ao contrário, a história
é apenas um fio de atenção para
o balé de imagens a ser criado. Nesse sentido,
o filme do Festival que mais se compara com Exiled
é Dália Negra, de Brian De Palma,
em que a narrativa visual segue em paralelo com
e, no caso de Brian De Palma, funciona até contra
a historinha a ser contada. Num debate
sobre cinema contemporâneo no começo
do ano, mencionei uma separação dos cineastas
de ação entre cineastas do estático
(em que o quadro é mais importante do que o movimento),
como Tarantino, King Hu ou Sergio Leone ao qual
acrescentaria tranqüilamente De Palma e Melville
, e os cineastas cinéticos, em que o movimento
transborda a limpidez do quadro, como Chang Cheh, Tsui
Hark e Robert Rodriguez. É um cinema menos "elegante",
em que o equilíbrio e a harmonia contam menos
que a velocidade das ações filmadas, e
essa própria instabilidade do quadro em conter
as ações faz com que os filmes ganhem,
e muito, em fruição. Johnnie To está
definitivamente entre os cineastas cinéticos.
E é tranqüilamente um dos melhores realizadores
de gênero hoje no mundo. Dia seguinte, vou à
Barra para continuar o encanto com Juventude em Marcha,
filme que se conquista e sobre o qual não se
pára de pensar com facilidade. Em segunda visão,
fica ainda mais impressionante a construção
visual do filme, e como cada imagem mantém seu
mistério, com sua pouca luz, seus enquadramentos
complexos, sua duração, o ritmo de seus
planos. E fica ainda mais clara a complexidade da organização
conceitual, em que o realojamento de uma favela para
um novo bairro evoca possíveis relações
com a transição de Cabo Verde para Portugal,
com a hipótese de se sentir estrangeiro para
sempre, deslocado pela questão da nacionalidade
ou pela classe. O filme de Pedro Costa é em muitos
aspectos um filme de fantasmas, de espectros que persistem,
de sombras móveis, ma ao mesmo tempo não
há nada de imaterial no filme, pelo contrário.
Pela duração dos planos, pelos enquadramentos,
pela iluminação, temos a sensação
contrária, a de uma materialidade forte, um contato
quase direto, "não filtrado", com as
pessoas e as coisas. Em seu maravilhoso livrinho sobre
Abbas Kiarostami, lido na primeira semana do Festival,
Alain Bergala indaga: "O que é um autor
verdadeiro? Não é um cineasta que impõe
suas obsessões a sua obra, mas alguém
que acaba por encontrar suas imagens obsessivas no mundo
sem mesmo ter procurado por elas, como um presente que
se ganha do real". Ele continua: "Uma tal
chance encontrar por acaso seu sujeito de predileção
na realidade se merece. Essa graça só
pode advir a um cineasta que crê num cinema mais
forte que seu próprio controle". Essas palavras
cabem perfeitamente a Pedro Costa e a Juventude em
Marcha, filme do Festival que, até agora,
mais se aproxima da epifania kiarostamiana do real,
aidna que não tenha relação direta
ou indireta, a propriamente dizer, com a estética
de Kiarostami. Terminado o livro de Bergala, editado
na coleção "Les Petits Cahiers"
da editora dos Cahiers du Cinéma, e tendo visto
Juventude em Marcha, é a vez de retomar,
mesmo porque não tinha lido inteiro, um livro
sobre Cézanne, um pintor que a partir de seu
ideal de fidelidade e por seu estilo particular de pintura,
também almejava um contato bruto, originário,
com a materialidade das coisas. Daí termos hoje,
além de uma "foto do dia", uma "tela
do dia". As artes se comunicam. (RG)
Segunda-feira, 02 de outubro de 2006
Domingo de eleição, domingo de poucos
filmes. Assim foi o dia de ontem para mim. Só
saí de casa à noite, para assistir ao
simpático filme romeno, 12:08 Leste de Bucareste.
Simpático pelos belos momentos de comédia,
e também pelo jeito com que filma personagens
fracassados e espaços decadentes (sem miserabilismo,
sem falsas distâncias). A revolução
de dezembro de 1989 aconteceu ou não aconteceu
na pequena cidade em que eles vivem? Essa pergunta é
refeita incessantemente no programa de TV que ocupa
praticamente toda a segunda metade do filme. A fotografia
da praça deserta, compondo o cenário de
fundo do estúdio, parece ter essa resposta. Num
plano arriscado, a câmera se fixa na foto e o
filme põe realmente em risco o que construía
(mas os planos dos postes de luz se acendendo recolocam
o filme nos trilhos). Demorei a embarcar na proposta
do diretor Corneliu Porumboiu, mas comecei a gostar
do filme quando, a um só tempo, finalmente achei
uma cena engraçada e percebi que havia um conceito
mais forte do que eu imaginava por trás daquele
mini-painel de anacronismo e derrota social. Falo da
cena em que a bandinha toca uma música latina
no estúdio de TV, para a irritação
do diretor da emissora, que pede que toquem uma música
romena. A câmera então faz o contraplano,
mostrando o outro lado do estúdio, e fica de
costas para a bandinha enquanto é tocada a música
romena. Daí em diante começou um filme
interessante para mim. Depois de 12:08 Leste de Bucareste
vi Backstage, de Emmanuelle Bercot, drama musical
que tem seus momentos. Aguardem minha crítica.
(...) Mas eu gostaria mesmo é de falar um pouco
sobre um filme visto no sábado. Flandres,
de Bruno Dumont, que já está muito bem
analisado no texto da Tati Monassa, começa parecendo
ser mais do mesmo, mais da mesma paisagem, da mesma
violência latente, do mesmo apagamento de expressões,
do mesmo choque entre a animalidade pura e a aura quase
mística de seus personagens, enfim, mais do mesmo
Dumont dos filmes anteriores. O universo dele é
solo material: pés filmados em detalhe enquanto
pisam o chão, sons captados do ambiente em primeiro
plano, agredindo o ouvido, sobrenaturalismo dos gestos
e das paisagens. Mas é também terreno
simbólico, mais precisamente cenário do
apocalipse bíblico. Quando o rapaz vai para a
guerra, e aparece de cabeça raspada, percebemos
a grande influência de Dumont para realizar este
filme, o que apenas se confirma na cena seguinte: Flandres
retoma toda uma seqüência de Nascido
para Matar, de Stanley Kubrick, e a interpreta segundo
a forma-robô do cinema de Dumont. Lá onde
Kubrick havia realizado seu filme-cérebro (como
o definiu Bill Khron), Dumont tenta filmar eliminando
o pensamento, como se o projeto exigisse um olhar estritamente
pulsional, uma certa crueza ou brutalidade imanente.
Mas não se filma um estupro como se filma um
chão repleto de folhas secas, ao menos não
sem escapar da hipocrisia. O paralelismo entre o cenário
de guerra e a cidade de onde os soldados saíram,
e a afirmação de que os espaços
se equivalem, não traz 1/20 da força de
O Franco Atirador, de Michael Cimino. Dumont,
que muitos comparam a Robert Bresson desde A Vida
de Jesus, na verdade é o contrário
dele: Bresson dava a um radinho de pilha ou a uma flor
murcha a mesma vida que dava a seus "modelos"
(como chamava os atores), enquanto Dumont esvazia a
vida de tudo, desertifica o mundo e seus seres. (LCOJr.)
Domingo, 01 de outubro de 2006
Dia de eleição, e surge uma bela novidade:
o diretor de Eleição, Johnny To,
terá seu mais novo filme, Exiled, exibido
no lugar de Sem Gás, Sem Rumo, hoje, na
terça e na quarta-feira. É Estação
Botafogo 2, então corram logo. Dois dias sem
escrever nesse diário, e dois leitores escrevem
comentando a nossa cobertura. Wellington Liberato pede
comentários sobre os filmes da Première
Brasil, em especial sobre O Cheiro do Ralo. Feliz
ou infelizmente, ninguém viu o filme do Heitor
Dhalia, que, sim, recebeu diversos elogios, mas ao mesmo
tempo muitos comentários reticentes ou inteiramente
negativos, como o de um professor amigo meu, de gosto
impecável, que saiu no meio do filme porque não
agüentava mais a estética e a adaptação,
que segundo ele fez o filme virar infanto-juvenil, da
obra do Mutarelli. E, convenhamos, quem viu Nina não
pode ser culpabilizado por fugir do novo filme de Heitor
Dhalia. Quanto aos outros filmes, já temos vários
comentários na página de críticas.
Quanto a Antonia, exibido ontem, fico bastante dividido.
O filme encanta muitas vezes, mas ao mesmo tempo é
muito pouco coeso, o timing é apressado
demais, por vezes a ficção se ancora demais
a motivos previsíveis a dissolução
do grupo, sobretudo. Mas é um filme vivo (como
tudo que a Tata faz, aliás). E isso conta bastante.
Já outro leitor, o Fran (não o Mosquera),
elogiava a cobertura do diário e pedia comentários
sobre Juventude em Marcha. Bom, já temos o meu
texto e temos também aqui os comentários
do Júnior. Ontem, o destaque negativo absoluto
é Enquanto Isso, um filme idiota do Diego
Lerman (que tinha feito antes o interessante Tão
de Repente) que basicamente copia os enredos multiplot
de acavalamento de situações constrangedoras
à maneira de 21 Gramas e Crash
No Limite. Bomba total. Em compensação,
The Host salvou o dia, num filme multigênero
total, um hibridismo que só os coreanos parecem
hoje saber fazer, um filme que casa comédia,
acidez política, drama, cinema fantástico
num todo coeso, delicioso de se assistir e extremamente
bem filmado. Bong Joon-ho já tinha impressionado
em Memories of Murder, e The Host consolida
seu nome como uma das figuras decisivas do cinema de
gênero hoje no mundo. Talvez ainda seja cedo para
dizer, mas Bong Joon-ho desponta como autor de maneira
muito semelhante ao modo como John Carpenter e David
Cronenberg apareceram no final dos anos 70, fazendo
filmes de terror e ficção que iam muito
além das implicações mais convencionais
do gênero. (RG)
Sábado, 30 de setembro de 2006
Nossa dica do dia é Bamako, que hoje
à noite passa pela última vez. Há
uns dias eu havia prometido falar sobre o filme, mas
acabei desistindo da crítica (Ruy e Raphael gostaram
mais que eu do filme, e por isso "mereciam"
mais escrever a crítica). Com o belo texto do
Ruy já no ar, acrescento apenas umas coisinhas.
Eu tenho quase certeza de que os multiculturalistas
de plantão não devem apreciar tanto o
filme. O deslocamento político que Sissako faz
em relação ao hibridismo cultural e à
fluidez de signos (pensar na cena spaghetti,
ou nos meninos com uniformes de futebol do Kaká
e do Batistuta) é de uma ordem que frustra a
maioria daqueles estudos, tão eufóricos
ao exaltar os dribles culturais que volta e meia emergem
das mazelas africanas e terceiro-mundistas. Em Bamako,
isso serve apenas para reforçar a idéia
de opressão, de eterna colonização
(a própria vizinhança é barrada
na porta do "tribunal", não pode acompanhar
o processo em que seu destino está sendo discutido),
da posição ingrata que o continente africano
ocupa no mapa social, político e econômico
do mundo. Naquela cena em que um ancião levanta
do meio do grupo de testemunhas do julgamento, pequena
obra-prima dentro do filme, Bamako revela uma
força subterrânea, que precisa se impor
como estranhamento, como desvio radical de linguagem
e de expressão do corpo. Não consigo ver
aquilo como teatralidade: a voz, a entonação,
o canto expressivo, a falta de legendas, a falta de
mediação entre aquela linguagem e os códigos
do dispositivo jurídico, tudo aquilo me parece
de uma vida para além dos limites que o próprio
filme tinha se colocado até então. O que
o ancião "fala" só pode ser
entendido por nós na medida em que não
entendemos nada. Ele diz, e isso é de uma tristeza
profunda, que a fala africana jamais será percebida
pelos brancos como fala, mas apenas como tagarelice,
lamentações indesejadas, ruído
que interfere no bom andamento do processo regido por
intelectuais e senhores da lei. Um povo condenado a
cantar sua condição de opressão?
Para que isso não se confirme, Sissako acredita
ser necessário um esforço de reconstrução
das próprias formas de entender aquele povo e
sua relação com o mundo. (...) E ontem
foi dia de Juventude em Marcha, de Pedro Costa.
Simplesmente uma experiência sublime e aterrorizante
ao mesmo tempo. Preciso rever o filme mais umas dua
vezes só para tentar começar a entender
a sua luz, ou ainda, a sua briga interna entre a luz
e a escuridão (sem qualquer clichê expressionista
nisso). Pedro Costa nos mostrou um continente desconhecido,
podem ter certeza. Ainda falaremos muito desse filme
por aqui. (LCOJr.)
Sexta-feira, 29 de setembro de 2006
Foram poucas horas de sono de ontem para hoje. A
ansiedade é grande: Juventude em Marcha,
de Pedro Costa, passa no Espaço Unibanco 3 às
14:15 e às 19:00. Estarei na segunda sessão,
pois antes disso ainda pretendo ver Vagas Estrelas
da Ursa, um dos filmes de Visconti que não
dá para perder. A partir de hoje o festival
entra num ritmo mais intenso, pois haverá em
todos os dias, até a quinta que vem, ao menos
um filme que deve ser visto agora, no festival, sob
o risco de não mais poder ser visto em cinema.
Pedro Costa hoje, amanhã Flandres e
The Host, domingo 12:08 Leste de Bucareste (aposta
de uma boa parte da redação que se entusiasmou
com o romeno do ano passado, A Morte do Sr. Lazarescu,
filme do qual eu fui um dos únicos a não
gostar), segunda El Topo e Os Deuses Malditos
(e Juventude em Marcha de novo), terça
Os Anjos Exterminadores (Brisseau comprado não
significa Brisseau a estrear) e Flandres de novo,
quarta Zidane e The Host, quinta Um
Casal Perfeito, Terra Abandonada, Fora de Jogo
e Palácio de Verão... E outros
que esqueci agora. Daqui em diante, teremos dias de
Festival do Rio. Dias em que veremos filmes que realmente
precisam de um evento como este para chegar até
nós. Por falar nisso... E Find Me Guilty,
do Sidney Lumet, será que entra em cartaz? Ou
ontem foi a última chance de vê-lo em cinema
por aqui? Caso as respostas sejam, respectivamente,
não e sim, uma pena. Pois é um filmaço.
A pergunta do Rodrigo de Oliveira ao final da sessão
continua ecoando: como, depois de um milhão de
filmes de tribunal, boa parte deles feita pelo próprio
Lumet, o cara ainda consegue achar uma geometria de
olhares e de enquadramentos tão especial, toda
uma nova forma de construir o espaço-tempo de
um julgamento? Find Me Guilty tem essa resposta
na mise en scène. E traz alguns dos melhores
momentos de comédia deste ano (afinal, trata-se
de um filme sobre um gagster). É triste
pensar que muitos desmerecerão o filme só
por ter Vin Diesel como protagonista. Ele está
excelente, provando que se sai infinitamente melhor
que um Stallone, por exemplo, nessa passagem de resgistro
(da ação truculenta para a comédia/drama).
É torcer para que entre em cartaz. (LCOJr.)
Quinta-feira, 28 de setembro de 2006
Um filme que só passaria no último dia do festival,
e que estava entre os mais aguardados por nós, substituiu
ontem a sessão de meia-noite do Estação Botafogo 1.
Um Casal Perfeito, de Nobuhiro Suwa, é um filme
imperdível do festival, mesmo que não trate de uma obra
100% brilhante e incontestável – e seus detratores certamente
surgirão aos montes. Na verdade, é tão fácil gostar
como não gostar do filme. O diretor de M/Other encena
uma ficção conjugal espelhada em modelos do cinema moderno
ou do “pré-moderno”. O Desprezo (mais especificamente
suas cenas entre quatro paredes) e Viagem à Itália,
neste caso, foram os dois filmes que mais me vieram
à mente – o modo digressivo como a narrativa caminha
lembra muito a obra-prima de Rossellini, sobretudo na
visita dela ao museu do Rodin. Valeria Bruni-Tedeschi
e Bruno Todeschini interpretam o casal que, prestes
a se separar, vai a Paris para o casamento de algum
amigo. Eles são arquitetos, e desde os primeiros minutos
estamos diante de um filme sobre a separação de um casal,
bien sûr, mas também sobre arquitetura, sobre
formas de habitação e de estetização do espaço. Os quadros
compostos por Suwa ao lado da diretora de fotografia
Caroline Champetier (que já tinha trabalhado com ele
em H story) são de fato incríveis, uma geometria
de interiores que recorta e restitui a vida do casal
através de paredes, portas, espelhos, camas. A luz é
também um recorte, quase nunca preenche o ambiente todo,
sempre escolhe seus pontos de incisão e reserva um lugar
para a escuridão. As formas de enquadrar e apresentar
os lugares em que eles estão são formas de exprimir
os sentimentos dos personagens: uma decupagem sensível
do espaço. Há, por exemplo, aquele plano magnífico e
angustiante, que termina com a porta que separa os dois
cômodos do quarto do hotel fechada (ver foto ao lado).
Eles estão hospedados no mesmo quarto, mas ele dorme
em uma pequena cama improvisada e ela fica sozinha na
cama de casal. Entre os dois, a porta que se fecha após
uma briga. A câmera permanece fixa durante um bom tempo
na porta, enquanto os dois personagens, um de cada lado
do quarto, ambos fora-de-quadro, fazem sons em off,
multiplicando a distância entre eles pelos dolorosos
minutos do plano. Não apenas nesse, mas em cada plano
do filme, Nobuhiro Suwa pensa uma forma sempre distinta
de construir sua mise en scène do divórcio –
entre um e outro personagem, logo entre um e outro compartimento
do espaço, entre a luz e os rostos, entre o quarto e
a rua, entre o casal e o mundo. Tudo conspirava no filme
para o fechamento de um círculo perfeito sobre o casal
imperfeito: a precisão dos planos, sua duração insistente,
o rigor das composições, a iluminação extremamente calculada,
tudo isso transformaria o filme em um aquário perverso,
onde a ironia do casal-modelo que se desfaz de forma
ordinária e sem grande explicação (pouco sabemos sobre
a vida de casados que eles tiveram) seria recoberta
por um filme-conceito, este sim, inquebrantável – o
filme se alimentaria da situação, seria tão mais forte
quanto maior fosse a fraqueza do casal. Mas antes que
o problema do casal pareça única e exclusivamente endógeno,
e antes que os personagens se transformem em marionetes
bergmanianas, o filme se vê atravessado por linhas de
fuga que estabelecem um tecido mais complexo. Em primeiro
lugar, o trabalho dos atores afronta as paredes imóveis
dos espaços fechados: ao contrário da estudadíssima
composição dos quadros e da iluminação, as atuações
modulam ao ritmo instável de suas improvisações. Se
isso cria um disparate nas cenas com outros atores que
não Valeria e Bruno, porque nem sempre as improvisações
se equalizam, por outro lado é uma escapada importante
em relação à rigidez da encenação. Em segundo lugar,
as cenas fora do quarto do hotel, quando ele ou ela
se encontram “ao acaso” com outras pessoas (ele e a
recém conhecida, na cena do bar; ela e o amigo/namorado
do passado distante, que reaparece, emblematicamente,
no museu), são cenas de uma força inacreditável – as
melhores ficções de interiores são assim: quando saem
da sua rotina narrativa é de maneira decisiva. Da mesma
forma que, dentro dos espaços fechados, volta e meia
o plano se abre por uma janela, uma porta (os acessos
à rua, ao fora, ao exterior) ou um espelho que redobra
o espaço sobre si mesmo (o magnífico enquadramento na
cena do restaurante, com a luz incidindo quase exclusivamente
sobre Valeria Bruni-Tedeschi, e o espelho ao fundo reproduzindo
as mesas ao infinito: o casal perfeito são todos os
casais e nenhum ao mesmo tempo). Na plataforma do trem
(ver também foto ao lado), o filme faz uma espécie de
confissão, emocionante e perturbadora: ficar junto é
impossível, dizer adeus também. Um casal como aquele
não se separa, jamais. O que não quer dizer que fique
junto para sempre. (LCOJr.)
Quinta-feira, 28 de setembro de 2006
URGENTE, URGENTE: quem estiver pensando em ir ver
Luchino Visconti na Caixa Cultural vai se deparar com
um piquete da greve dos bancários. Foi minha
triste descoberta quando ia ver O Inocente nesta
quinta às 13:00. É bom ligar antes para
não dar com a cara na porta. (RG)
Quinta-feira, 28 de setembro de 2006
Revisto ontem, Bamako se revela uma verdadeira
obra-prima. Mesmo com tanta falação, Abderrahmane
Sissako cada vez mais mostra-se como um grande poeta
lacônico. Em seguida, The Holy Mountain,
de Alejandro Jodorowsky, que ganhou sabe-se lá
por que o título de La montaña sagrada
mesmo sendo um filme de língua inglesa. Foi minha
verdadeira apresentação ao cinema de Jodorowsky,
uma vez que eu só tinha visto Fando y Lis,
que está longe de ser um grande filme. Fãs
de Buñuel que ainda não atentaram para
o fato: o filme é uma espécie de adaptação
não confessada de A Idade do Ouro para
a época do hippismo e da pop art. Grande poder
das imagens, uma força icônica incomum,
criando planos que seduzem, muitas vezes ao mesmo tempo,
pela beleza e pelo desagrado que provocam. Em seguida,
veio um desses momentos de improviso que sempre fazem
a graça de um festival. Entro na apresentação
de O Cheiro do Ralo, num Palácio 1 inteiramente
lotado, com suas mais de 800 poltronas ocupadas e muita
gente em pé. Selton Mello chora emocionado e
agradece a oportunidade de ter feito a adaptação
do livro de Lourenço Mutarelli. Com Almodóvar,
Eastwood e Nelson Pereira dos Santos a gente aceita
o desafio de ver o filme sentado no chão, mas
assistir por duas horas ao novo filme do realizador
de Nina não pareceu um bom negócio. Já
que ninguém da Contracampo estava na sessão
(pelo menos que eu tenha visto), o filme não
deve constar no quadro de cotações, mas
nosso ex-editor Eduardo Valente estava lá e sua
cotação foi bola preta. Bruno Porto, mais
bonzinho, deu uma estrela. Saio do Palácio e
checo no Odeon, que estava com filme a programar às
21:30. "Qual o filme, Gilberto?", pergunto
ao gerente e amigo. "Nenhum Corpo É Perfeito.
O filme já vai começar, o diretor está
apresentando". Não, obrigado. Vou correndo
para Botafogo na Festival-highway em que se transforma
o Aterro em época de Festival. Cinco minutos
depois, desço do ônibus e vou correndo
para o Espaço Unibanco, onde algumas pessoas,
entre elas Tati Monassa, fazem cometários desencorajantes
a respeito de A Fórmula de Peter Pan. Não,
obrigado. Para ver um filme que só vai me dar
dez minutos de respiro até o filme de Nobuhiro
Suwa, à meia-noite, só se fosse muito
bom. Entro então em A Segunda Noite de Núpcias,
de Pupi Avati, no Botafogo 1. Foi a minha apresentação
ao cinema de Avati, e agradeço se for também
a minha despedida. Cada país tem o Sergio Rezende
que merece. Por fim, vamos ao principal: Um Casal
Perfeito, programado em caráter de emergência
para meia-noite. Já tínhamos visto M/Other
e nos apaixonado, mas até então, Nobuhiro
Suwa nunca tinha tido qualquer de seus filmes exibidos
publicamente no Brasil, festivais ou não. Um
Casal Perfeito começa meio mal, numa estética
do plano fixo e longo que vem se tornando uma espécie
de novo academicismo cult dos filmes de festivais internacionais.
Mas logo o filme desmonta a facilidade inicial de composição
e se estrutura entre planos-conjunto fixos e closes
de câmera na mão que fazem a partilha das
lentas ações e dos turbilhões de
sentimentos que avassalam os personagens. O filme trata
de uma relação conflituosa, um casamento
de quinze anos que chega a um impasse. Qualquer ocasião
banal é motivo para um desentendimento, mas ao
mesmo tempo eles são sentimentalmente incapazes
de dar o último passo. Mais de uma vez o filme
evoca Viagem à Itália de Rossellini
(o filme anterior de Suwa, H-Story, é
uma retomada de Hiroshima mon amour de Alain Resnais),
e um pouco Cenas de um Casamento de Bergman.
Poder dos silêncios, das sombras quase negras
que tomam o quadro, dos momentos de indefinição.
Iluminações delicadas em digital e enquadramentos
de uma beleza complexa nos guiam e nos instalam pela
tortuosa viagem entre separação e reconciliação
que faz esse belo filme. Para quem ainda não
se programou, o filme só passa novamente no último
dia, em dois horários. É um desses filmes
obrigatórios do Festival. (RG)
Quarta-feira, 27 de setembro de 2006
É curioso que uma mostra chamada "O
cinema que reinventa a política" tenha acontecido
na Maison de France poucos dias antes do Festival do
Rio. Curioso porque, se há uma faceta que, chegando
no meio do Festival, se torna cada vez mais insidiosa
e determinante no contato com os filmes é essa
idéia de reinvenção do político
nos filmes, de como os filmes possibilitam um contato
maior com as "questões da cidade" (política
em grego não significa outra coisa) às
quais os diretores se dirigem. Existe, naturalmente,
a faceta mais convencional e batida dessa relação,
o famoso filme de temática política, ficcionalização
solene de temas importantes, do qual encontramos alguns
exemplares em The Wind that Shakes the Barley
ou As Torres Gêmeas (falo isso, confesso,
sem ainda ter visto nenhum dos dois, apenas fragmentos
de ambos). Mas o que nos interessa aqui não são
esses filmes, mas aqueles que propõe ao cinema
novas relações com a política,
que estabelecem uma relação mais direta
com os fatos da cidade (do país ou mesmo do continente),
que a partir de uma determinada urgência do dizer
reformulam a ficção e evidenciam um contato
menos filtrado, mais brutal com as questões que
tratam. Anteontem foi Bamako, ontem foi O
Crocodilo, de Nanni Moretti. A pergunta que parece
povoar o filme é: como fazer, a partir da política,
algo que potencialize a ficção, como purgar
um estado de coisas no caso de Moretti, a Itália
e seus últimos 30 anos dominados pela figura
de Berlusconi de forma que isso se preste à
abertura de questões e não à resposta
definitiva, professoral delas? Se um docudrama sobre
Berlusconi seria um atestado de falência do cinema
em relação à realidade (assim como
em Aprile o documentário sobre as eleições
é abandonado em prol de um musical), façamos
um drama sobre a impossibilidade de fazer um filme.
E, no caminho, joguemos na cara do espectador uma série
de imagens de arquivo e reconstituições
do político/bufão italiano em seus "melhores",
mais vergonhosos, ditatoriais e patéticos momentos.
O Crocodilo cria ressonâncias com alguns
filmes brasileiros, do Blá-Blá-Blá
de Andrea Tonacci ao personagem de Tarcísio Meira
em A Idade da Terra de Glauber Rocha (que por
sua vez também queria purgar seu país
e sua relação com o mundo) e, ao mesmo
tempo, tem o mesmo poder de Bamako em trivializar
e no limite, mesmo desqualificar a solenidade
com que os "temas políticos" aparecem.
Neste jogo entre o trivial e o solene é que se
exerce com mais força e pregnância a política
nesses filmes. Voltaremos a isso mais tarde. Visto,
também, As Leis de Família, belo
e delicado filme de Daniel Burman sobre como um homem
aprende a ser pai, marido e filho. A fascinação
pela figura paterna faz lembrar O Abraço Partido,
filme anterior do cineasta, mas o que mais encanta são
os passos de um homem advogado e professor de
direito, que se leva a sério demais e revoga
sem mesmo perceber todas as tarefas da vida familiar,
em particular as que dizem respeito à criação
do filho em busca de uma harmonia familiar mais
equilibrada e igualitária entre os papéis
do homem e da mulher. Curiosamente, talvez seja esse
o grande filme ainda que o tema se insinue de
forma sub-reptícia sobre alienação
do Festival. (RG)
Terça-feira, 26 de setembro de 2006
Bamako é realmente um belo filme. Falarei
mais na crítica. Sobre O Céu de Suely, escrevi
o texto que já está no ar. O filme é o meu predileto
do festival até agora. Há até uma maior fragilidade
em relação ao Madame Satã, uma coesão ligeiramente
menor, mas ao final minha emoção era suficiente para
derrubar qualquer suspeita de que haveria um uso estratégico
e fácil de certos procedimentos estéticos. Vi também
Pro Dia Nascer Feliz, filme com vários momentos
muito interessantes. Uma coisa que se confirma é a cafonice
do João Jardim. Em particular nas cenas em que a câmera
passeia pelo espaço ao som de músicas dignas de reportagem
do Fantástico, ou na cena em que a menina conta em off
como matou a outra, e uma sucessão de planos “poéticos”
mostra gotas de chuva, poças d’água (tangente visual
muito da dispensável). Ele não chega a articular um
discurso oposicionista redutor através da montagem,
mas o filme fica sim se equilibrando sobre uma corda
bamba, entre a aquisição de uma dialética forte e complexa
e a absorção do material em simplismos frustrantes (a
tomada aérea que vai da área nobre à favela e volta
é sem propósito dentro do jogo bem mais sutil e inteligente
que a montagem antes fazia). Se a platéia ri dos dramas
existenciais das meninas ricas, após ter escutado as
mazelas materiais e sociais dos estudantes pobres, isso
a princípio não é induzido pelo filme. Agora, um fator
a se pensar: o maior plano de depoimento do filme é
o da cdf do colégio rico de SP. Ali a montagem não saltou
adiante como fazia nos outros depoimentos. Será que
ele levantou pra platéia cortar? (...) E ontem cometi
minha primeira gafe do festival: Milena Kaneva, a diretora
de Negação Total (documentário sobre a denúncia
do trabalho escravo na construção de um óleo-duto em
Myanmar – olha a ex-Birmânia aí de novo), tentava se
comunicar com os funcionários do Espaço Unibanco sem
sucesso. Após bancar uma de tradutor de improviso,
entrei para ver o filme dela e dormi na segunda metade.
Quando acordo, quem está sentada ao meu lado?
(LCOJr.)
Terça-feira, 26 de setembro de 2006
Surgiu a primeira paixão coletiva da revista:
é Bamako de Abderrahmane Sissako. Seus
filmes anteriores, A
Vida Sobre a Terra e Esperando
a Felicidade já haviam sido defendidos
com avidez por nossa equipe, e agora surge essa verdadeira
surpresa. Surpresa não porque seus filmes anteriores
não tivessem anunciado o surgimento um verdadeiro
cineasta, mas porque Bamako envolve tantas questões
sobre vida, arte, política, representação
e mundo que é impossível ficar indiferente.
A primeira coisa que eu falei quando o filme acabou
foi que o filme redefinia, ou pelo menos ampliava a
famosa frase de André Bazin de que o cinema era
e isso era um grande elogio uma arte impura.
Raphael Mesquita foi certeiro: "Me lembra um pouco
Um Filme Falado, do Manoel de Oliveira. O Bamako
é uma falação interminável, em que até mesmo os
(personagens) envolvidos se cansam deste discurso já
bastante batido e pisado, mas extremamente importante
e necessário. No entanto, as grandes seqüências
do filme, as que mais me emocionaram, são as do senhor
sem dentes falando/cantando e a mulher que canta no
bar, na noite, deixando rolar uma lágrima. E em ambas
não há traduções (pois são desnecessárias). Eles falam
na língua local e nós compreendemos. Tanto no Oliveira
quanto em Bamako, os discursos (histórico no
primeiro e político no segundo) são importantes (diegeticamente
inclusive). Mas os grandes planos são "música" (literalmente).
Essa contraposição funciona bem nos dois, causando um
impacto emcional bastante forte". O que resta dizer
é que existe uma ironia muito fina na maneira
como o posicionamento de câmera evidencia uma
irreverência de Abderrahmane Sissako com tudo
que encena, certos enquadramentos que servem como gags
visuais (os europeus brancos de toga falando em seus
celulares enquanto alguns, negros, africanos, do outro
lado da parede, exibem apenas suas cabeças, dissociadas
do corpo pela linha do muro: o que mais dizer sobre
privilégio da comunicação?) que
tem um humor amargo, tão amargo quanto politicamente
ácido. Um humor nascido do casual e que nessa
casualidade lírica encontra a política,
e isso tem a ver naturalmente com Intervenção
Divina de Elia Suleiman, diretor palestino que é
inclusive ator do filme-dentro-do-filme Death in
Timbuktu, contracenando com Danny Glover. Volver
ou Dália Negra são grandes filmes,
mas de certa forma já estão estabilizados
em seus patamares artísticos. Bamako é
vivo, questionador, e opera um desequilíbrio
potente e verdadeiro no panorama do cinema contemporâneo.
Visto também Man Push Cart, belo registro
intimista sobre um paquistanês e seu carrinho
de chás e bagels, em que a visibilidade da câmera,
filmando de perto demais, escuro demais, sem foco demais,
sem visão geral das coisas, já dá
toda a dimensão política do papel desse
personagem marginal dentro da cidade de Nova York, tomada
mais como espaço da confusão do que como
um lugar das oportunidades. Já Alice me pareceu
muita pompa para pouca polpa, um filme estiloso que
começa como um estudo de personagem mas que aos
poucos revela todas as suas afetações,
utilizando certas obsessões de imagem da contemporaneidade
já transformadas em clichês (paredes cheias
de fotos perfeitamente alinhadas, aparelhos de televisão
empilhados, câmeras de vigilância, etc.)
e transformando a trama principal a busca de
um ator por sua filha de três anos que desapaceu
em circunstâncias misteriosas em mero joguete
de um certo estado de espírito que, bem, não
é exatamente original. Gilberto Silva Jr., o
Gilbertão, manda avisar: "Não há dúvidas
que em festivais é importante buscarmos a renovação
do cinema, novos valores e coisa e tal. Mas verdade
seja dita, quem está mandando bem são os velhinhos.
Os filmes mais interessantes até agora vêm de cineastas
já da chamada terceira idade. Então vejamos: Sidney
Lumet, 82 anos; Robert Altman, 81 anos; Claude Chabrol,
76 anos; e o garoto Brian DePalma com 66". Em tempo:
Abderrahmane Sissako fará 45 no dia 13 de outubro.
(RG)
Segunda-feira, 25 de setembro de 2006
Muitas vezes o destino de um dia de festival é
definido pela hora em que se acorda. Às vezes
se acorda atrasado, cansado do esforço contínuo
dos dias anteriores. Às vezes, acontece o contrário
e se acorda mais cedo, por ansiedade ou simples nervosismo
geral, adrenalina constante batendo no sangue. Hoje
foi assim, e um dia que poderia começar às
12:00 com Bamako ou até 15:30 com Sedução
da Carne começou às 10:30 com a cabine
de imprensa de O Céu de Suely, de Karim
Aïnouz. O filme é a comprovação
como se precisasse do talento de Aïnouz,
e a lógica de protagonista que se estabelece
lembra a de Madame Satã: a intensidade da personagem
principal desestabiliza a vida do lugar em que ela habita,
e ela prova todos os gozos e as tristezas dessa situação
diferencial. Raro talento para o intimismo, O Céu
de Suely se inventa a partir do corpo de sua personagem,
mais captando as intensidades do que ocorre do que propriamente
narrando uma evolução. No entanto, o filme
acaba encontrando algumas soluções fáceis,
sobretudo na montagem, abusando um pouco das bruscas
passagens dardennianas entre instante de espera e ato
em marcha (como o corte da dança pré-sexual
com o vencedor da rifa, "Careless Whisper"
ao fundo, para o coito já em processo). Decididamente
Karim Aïnouz pensa seus filmes, pensa em como se
aproximar daquilo que vai filmar, como enquadrar, como
filmar, e vamos admitir que isso já é
algo que lhe dá uma posição de
destaque no cinema brasileiro. Mas O Céu de
Suely tem uma forma que parece nascer meio já
pronta, independente do que existe a ser filmado. Pensa-se
muito em Jia Zhangke, em Hou Hsiao-hsien, nos Dardennes,
talvez até em Pedro Costa (um breve plano no
breu que evoca No Quarto da Vanda), mas não
se sente uma inteireza de propósito entre o timing
de Hermila e o do filme. Em todo caso, essa é
a percepção imediata de um filme exigente,
que pede sem dúvida uma segunda visão.
Vistos também: Acidente, de Cao Guimarães
e Pedro Lobato, com muito interesse pela proposta mas
uma indiferença quase total à realização
(que está MUITO longe do acidental, e essa é
sua maior deficiência); Pequena Miss Sunshine,
peça ridícula de cinema americano metido
a independente cuja mensagem é a mesma de uma
música da Pitty: seja você próprio,
mesmo que seja bizarro. Junte a isso uma intriga de
família desfuncional on the road com humor
feito a partir das excentricidades de cada um e você
tem um daqueles filmes que fazem o sucesso do circuitinho
cult mas são inapelavelmente desprovidos de interesse.
Quem sabe em cinqüenta anos as pessoas vão
ver Pequena Miss Sunshine e rir não das
piadas, mas de como o filme é tosco, da mesma
maneira como fazem hoje com um filme como A Múmia
Azteca Contra o Robô Humano, visto em seguida,
que não tem méritos cinematográficos
maiores, apenas a curiosidade de que num dado momento
numa dada época as pessoas tinham relações
com certas imagens que hoje são impossíveis
de existir. Talvez a solidão sentida a cada piada
óbvia em que as pessoas caíram de rir
seja também sentida por um espectador de sessão
midnight daqui a cinqüenta anos numa mostra trash.
(RG)
Domingo, 24 de setembro de 2006
Com a palavra, Leonardo Levis: "Ontem foi um
dia de belos filmes, mas também um dia um pouco decepcionante.
Minhas únicas sessões de inéditos foram de filmes esperados
há meses: Volver e Black Dahlia.
Os dois são compostos de belíssimos enquadramentos,
movimentos de câmera, etc. Volver, como era esperado,
mistura bastante bem humor e drama, tem ótimas atuações,
caminha perfeitamente nesse registro um pouco exagerado
de realidade. Enfim, tudo que se espera de um Almodovar
em forma. Black Dahlia tem seus planos virtuosos,
algumas soluções cênicas geniais, uma reconstituição
perfeita da década de 40, ótima atmosfera noir
(as luzes da persiana nos rostos dos personagens por
exemplo são fodas). Enfim, tudo que se espera de um
De Palma em forma. Ainda assim, ficou faltando, nas
duas obras, o que não se espera, o surpreendente, o
assombroso. Não que os filmes sejam feito em piloto
automático (pelo contrário), nem que o leque de possibilidades
dos dois diretores seja reduzido (como o Ruy, por exemplo,
considera o Tsai Ming-liang, apesar de eu discordar),
mas nenhum dos dois busca algo além do conhecido, do
sabido, do certo. E, nesse caso, tanto Almodovar quanto
De Palma, já fizeram melhor. Depois de ver Black
Dahlia e Volver, fiquei pensando em Alice
e Man Push Cart. Dois filmes menos bem filmados,
cheios de problemas, enfim, piores. Mas esses dois,
ainda assim, me transmitiram bem mais coisas que os
diretores consagrados. Há, neles, a tentativa de caminhar
por um registro desconhecido, de mostrar as cidades
de uma forma que não estamos acostumados, de procurar
soluções inesperadas. Enfim, acho que isso que é legal
no Festival do Rio. Saber que Almodovar e De Palma são
gênios, mas preferir Marco Martins e Rahmin Bahrani".
Se toda a equipe de Contracampo concorda que Volver
é lindo mas não siderante, e quase todos
consideram Dália Negra da mesma forma,
Find Me Guilty está enchendo os olhos
de muita gente. É bom atentar para o fato de
que o filme, apesar de ser dirigido por Sidney Lumet
e ter Vin Diesel no elenco, não está ainda
comprado para exibição nacional. Visto,
também, Pro Dia Nascer Feliz, filme que dividiu
as opiniões entre os muitos redatores que estavam
entre a primeira e a segunda filas de um Odeon lotado.
De minha parte, gostei um bocado do filme, que trata
de muitas questões pertinentes, é muito
inteligente em não fazer uso "dialético"
dos registros de diferentes classes sociais (ao contrário
de O Chamado de Deus, de José Joffily,
que cai na controvérsia fácil), mas trabalha
com seus personagens buscando um efeito um pouco fácil.
Em todo caso, um filme encantador para professores e
todos aqueles interessados de alguma forma na idéia
de transmissão. Confesso que sou público-alvo
desse tipo de filme. Voltaremos a ele de forma mais
abrangente na crítica do filme, a aparecer nos
próximos dias. (RG)
Sábado, 23 de setembro de 2006
Ontem foi um primeiro dia de festival atípico, o
que se deu em grande parte pela programação dos filmes.
Este ano não havia aquela escolha óbvia de início –
como no ano passado, que era bater o olho na programação
e dizer: “Ok, eu começo meu festival vendo O Mundo”.
Está certo que havia O Leopardo no Odeon, mas
só consegui sair de casa por volta das 3 da tarde, e
o filme começava um pouco antes disso. Rumei para o
Méridien (as credenciais estavam prontas, para meu alívio)
e dali para o Espaço Unibanco em Botafogo. Clima ameno,
com bastante gente mas sem a confusão e as filas que
há três ou quatro anos davam a marca registrada do primeiro
fim-de-semana do festival. Após retirar uma enormidade
de ingressos, restavam-me duas horas até o filme da
Doris Dörrie, A Esposa do Pescador, que na falta
de outro melhor já havia sido escalado para dar o ponta-pé
inicial. Para matar esse tempo, entrei na sala 1 do
Unibanco, onde estava para começar o canadense Mystic
Ball. Greg Hamilton, diretor e protagonista do filme,
apresentou a sessão. Um sujeito simpático, que soube
levar na esportiva o fato de que a sala estava praticamente
às moscas. “Ainda bem que tem lugar para todos”, ele
disse risonho para as cinco ou seis pessoas que estavam
lá para assistir a seu filme. Mystic Ball é um
misto de ego-trip com turismo exótico e documentário
etnográfico. Já nos primeiros minutos, Hamilton antecipa
sua tese: ele descobriu nas interessantes manobras do
chinlone (bonito esporte praticado na ex-Myanmar
ex-Birmânia agora de novo Myanmar) uma via de elevação
espiritual e uma forma de amor. Essa certeza e essa
convicção quanto ao assunto do filme, que ele põe diante
dos espectadores logo de início, prejudicam bastante
o seu desenvolvimento. Há cenas realmente interessantes,
sobretudo quando ele vai à Birmânia e pratica o chinlone
ao lado de mestres e gênios do esporte (que é também
– ou talvez até mais – uma dança). Documentado em primeira
pessoa por um canadense de Toronto, o filme vai para
o outro lado do mundo e encontra uma outra paisagem,
outra cultura e tudo mais. O problema deste tipo de
filme é que todo o encontro com o “outro”, toda relação
de alteridade é uma desculpa para o realizador falar
de si mesmo. Um lance bem “é tudo vaidade” mesmo. Mas
o pior nem é a parcela ego do filme, e sim seus tiques
colonialistas-publicitários: o desbravador Hamilton
levará ao primeiro mundo esse tesouro escondido nas
rústicas moradias de Myanmar; ele termina o filme com
imagens dignas da mais fajuta propaganda de plano de
saúde (jovens em contra-luz praticando o chinlone
em câmera lenta enquanto o sol se põe num céu clichê,
musiquinha new age rolando) e dizendo que seu
projeto é espalhar ao redor do planeta essa arte que
tanto o fascina, e na qual descobriu uma família de
verdade (ele narra no início seu histórico de órfão
de pai, de mãe e de universo cultural). Fiquei até o
final de Mystic Ball, o festival está só começando
e minha paciência ainda está em alta. E, no fundo, há
algumas cenas que entusiasmam no filme (a bolinha passando
de um pé para o outro, como se todos participassem de
um mesmo movimento/pensamento, compõe um balé bonito
mesmo). Sobre A Esposa do Pescador, bom,
já há uma pílula do P.R. de Almeida no ar, mas acrescento
apenas que a Dörrie piorou do último filme que vi dela
para este. Em Sou Bonita? (1998), apesar da construção
esquemática de filme-painel e da gratuidade ao inserir
momentos mundo-cão, havia uma atmosfera de viagem, de
encontro com o desconhecido, que era bem captada nas
partes com a personagem da Franka Potente. Em A Esposa
do Pescador tudo se resume a dizer que o mundo é
sempre um aquário – não importa se você faça planos
ou não, seja neo-hippie ou estilista de renome, viva
na Alemanha ou no Japão. Há um esforço enorme para parecer
fofinho, mas no fundo é mal encenado e lugar-comum.
Num desses raccords curiosos e involuntários
de época de festival, saio de A Esposa do Pescador
para entrar num filme indiano em que é tocado diversas
vezes o mesmo instrumento musical que o personagem do
filme alemão tocava. Leite e Ópio, de Joel Palombo,
é ingênuo, arrastado e despropositado. Houve muitas
risadas do publico na seqüência final – que de fato
é engraçada, porém mais involuntariamente do que por
acertos de comédia. Os outros filmes terão de se esforçar
para mostrar planos mais feios que alguns dos vistos
em Leite e Ópio. Já cansado de filme ruim, fechei
o dia com a primeira surpresa positiva do festival:
Man Push Cart. Foi também a primeira sessão em
que vi o filme acompanhado de companheiros de Contracampo.
Leonardo Levis, que também gostou, escreverá a crítica.
Tatiana Monassa viu cansada e não se entusiasmou tanto
(entrego logo: ela dormiu em boa parte!). Ramin Bahrani
fez um filme bem instigante, construído sob um ponto
de vista absolutamente inusitado de Nova York: as esquinas
em que imigrantes vendem café, donuts ou jornais. Fotografia
escura, muitos planos fechados, muita fumaça, muito
barulho, muita movimentação riscando o plano e confundindo
a visão: uma cidade enclausurada e regida por mecanismos
complexos. Man Push Cart é um estudo de personagem,
e em se tratando de Ahmad (o protagonista paquistanês),
isso equivale a dizer que o filme é um estudo sobre
a opacidade. Se NY é realmente a cidade que não dorme,
Ahmad é quem vive isso literalmente. Filme melancólico
ao extremo, com um ou outro momento dispensável, mas
que se mantém forte no todo. A cena de Ahmad procurando
pelo mini-trailer em que vende café e chá, que é roubado
para seu desespero, já valeria o filme mesmo que sozinha.
Passará de novo amanhã (Estação Barra Point, às 19h)
e segunda (Espaço Unibanco 2, 17h15 e 22h). Um filme
importante de ontem era A Scanner Darkly, cuja
sessão lotou antes de eu chegar à central de ingressos.
Rodrigo de Oliveira, que é fã número 1 do Linklater,
disse que teria de rever o filme hoje, pois o achou
ruim e ainda não sabia o exato porquê. Aguardemos pela
crítica dele... (LCOJr.)
Sábado, 23 de setembro de 2006
Drama intimista, épico filosófico
e comédia histórica, O Leopardo é
um desses raros filmes que conseguem mesclar o individual
e o coletivo sem que um exista em detrimento dos outros,
mas, ao contrário, um se prestando à perfeição
ao outro. Para isso, o trabalho dos atores e o uso da
conotação nas roupas, cenários
e acenos de câmera é determinante na co-pertinência
das duas camadas, o molecular e o molar. Príncipe
Salina, o aristocrata, o Leopardo; Tancredi, o nobre
que faz a passagem para a nova política, e troca
de crença política da mesma forma que
troca o cortejo de Concetta pelo de Angelica, representando
a exuberância por vir de uma burguesia que tomaria
na época vindoura as rédeas do mundo por
vir. A seqüência de imagens que segue à
direita, além da maior entrada de personagem
feminino na história do cinema, exprime à
perfeição como o trabalho de câmeras,
olhares e gestos é crucial para a composição
dos quadros individuais/históricos. 1,2: Desvelamento
de Angelica, que sai da sombra e revela toda sua beleza
(vale lembrar, já se passou uma boa hora de filme
antes de ela aparecer pela primeira vez); literalmente,
Visconti faz com que ela apareça das sombras;
3,4,5: reações dos personagens a Angelica:
Concetta que fica apreensiva, Alain Delon cujo olhar
obstinado pode revelar tanto a cupidez quanto o interesse
prático (a família de Angelica é
mais rica que a dos nobres), e Salina que, como bom
aristocrata, observa e reconhece com altivez a beleza
da moça (que será, mais tarde, coroada
com a valsa final); notar, naturalmente, como Visconti
usa o zoom para realçar a mudança nos
rostos dos personagens, assim como o caráter
dúbio do interesse de Tancredi; 6,7,8: Primeiro
close em Claudia Cardinale: sensacional plano que revela
ao mesmo tempo uma candura infantil e o máximo
de provocação erótica, ao fazê-la
morder os lábios (7) e baixar a cabeça
(8), num terrível medo de adentrar uma corte
que não é a sua, uma gente que não
é a sua, e, ao mesmo tempo, a consciência
que ela será o centro das atenções.
Ela manterá o mesmo caráter dúbio
na risada à mesa de jantar, misto de impulso
infantil e desenvoltura de mulher feita. Eis como a
chegada da burguesia afeta os nobres, e eis como individual
e coletivo podem se coabitar e servirem-se mutuamente
sem que uma camada precise sobrepor-se em significação
à outra. Entre outras coisas, isso também
ajuda a fazer de O Leopardo uma obra-prima absoluta.
Vistos ontem: 1972, que todo mundo menos eu parece
ter detestado, apesar de eu conceder que o filme é
constrangedor em momentos (todos aqueles com Toni Tornado,
por exemplo), mas ao mesmo tempo cativante por instantes.
Depois, Wood & Stock, bem bacana, bem simpático,
ótima atração para a meia-noite,
ainda que não convença totalmente.
Outros redatores viram diversos filmes e dois chineses
que se mostravam como apostas já se mostram como
não tão interessantes: A Estrada
e Sonhos com Shangai, ainda que esse último
tenha tido uma defesa tímida. Mas a primeira
descoberta de filme a não perder é Alice,
filme do português Marco Martins que em breve
ganhará texto na revista. (RG)
Sexta-feira,
22 de setembro de 2006
Começo a escrever as primeiras linhas de nosso
diário às dez pras duas, sem saber se
termino a tempo de re-re-re-re-ver O Leopardo
no Odeon e começar com o pé direito o
Festival. Nesse momento, as preocupações
são conferir se todos os textos dos colaboradores
chegam direitinho, fazer as atualizações
necessárias, e claro, pegar a credencial que,
como de costume, chega apenas na sexta-feira, sempre
num hotel distante dos filmes (agora é o Le Méridien,
já foi o Copacabana Palace), num horário
sempre incerto (são freqüentes as histórias
dos marinheiros de primeira viagem esperando horas e
perdendo seus filmes um a um enquanto esperavam a chegada
dos crachás...). Quanto à festa de abertura,
Dália Negra, black-tie e quetais, só
posso dizer dei uma passada em frente ao Odeon
inundado de paparazzi e gente querendo aparecer
e o Palácio que exibia uma iluminação
vermelha em seu corredor que de longe parecia muito
bonita , mas é porque ficava no caminho
entre a Escola Darcy Ribeiro, onde dei aula, e o Beco
do Rato, onde tem a tradicional festinha-mesa de chorinho-cineclube
montada pelo Frederico Cardoso. OK, era cerveja e não
uísque. OK, era pago e não boca livre.
Mas a freqüentação de um e de outro
compensa tranqüilamente a escolha pelo Beco, sem
titubear. Ainda mais porque tinha que se fantasiar de
pingüim, ou algo perto disso, para entrar. Preferi
a companhia dos píngüins da Antarctica na
salgada proporção de R$3,50 a garrafa.
Quanto ao filme do Brian De Palma, bem, repetindo o
começo do texto que eu fiz sobre Miami Vice
para O Globo, o filme é um deleite visual. Vai
desagradar aqueles que esperam um filme centrado na
narrativa, porque o De Palma está claramente
interessado em outra coisa, e num momento a trama principal
chega a ser quase esquecida em prol de outras, que possibilitam
mais ao cineasta fazer a construção de
climas e atmosfera, além, claro, de seus belíssimos
planos tour-de-force elaboradíssimos.
Diante das grandes porcarias vistas nas cabines de imprensa,
é um oásis para os olhos ver o filme de
alguém que sabe exatamente o que quer de um movimento
de câmera, sabe exatamente o que faz com um reenquadramento,
com um corte, com uma fusão, com a duração
de cada plano. Nada em Dália Negra é
frufru de esteta frouxo (ao contrário de Fonte
da Vida). Esse filme não tem nenhuma daquelas
cenas de tirar inteiramente o fôlego típicas
do cineasta os começos de Femme Fatale
e Olhos de Serpente, a cena do baile em Carrie,
a "visita guiada" do final de Missão:
Marte, a perseguição no museu em Vestida
para Matar, Tom Cruise por um fio em Missão
Impossível , mas o filme se desenvolve
como uma sinfonia visual, harmônico, cadenciado,
elegante. Ao final, a necessidade de fechar tudo que
se abriu obrigatória nos moldes narrativocêntricos
de Hollywood dá uma ligeira desritmada
no filme, e o próprio De Palma passa a trabalhar
em outra chave, parodística, que muito lembra
a maneira que o Fritz Lang tinha de fazer seus finais
acabarem rápido demais, de forma a ironizar a
própria idéia de fim de filme, da resolução
redentora. Aliás, por ser um noir, por ter seu
tempo diegético nos anos 40, mas sobretudo pela
maneira como trabalha os reenquadramentos, Dália
Negra lembra muito Fritz Lang, em geral. Hora de
sair, nada de credencial ainda, mas ainda a tempo de
ver Visconti. Começa o Festival do Rio. Mãos
à obra. (RG)
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