“Bucky”
Bleichert e “Lee” Blanchard estão de tocaia observando
o suposto apartamento de Nash, estuprador e assassino
de crianças negras. Grua para cima. Ao fundo, por trás
do prédio, a mulher que acaba de encontrar o cadáver
de Elizabeth Short pede socorro. A câmera continua seu
movimento, descendo para a direita até descobrir Baxter
Fitch, comparsa de Bobby DeWitt, que Lee colocou atrás
das grades e que está prestes a sair da cadeia. Neste
único e exuberante plano-seqüência, que ocorre na primeira
meia-hora de Dália Negra e no qual Brian De Palma
exibe toda sua maestria imagética e narrativa, as diversas
tramas paralelas que compõem o filme já se encontram
unificadas, embora o diretor só as amarre no final.
“Nada permanece enterrado para sempre. Nada.”: a adaptação
do romance de James Ellroy futrica o relacionamento
de Los Angeles com a indústria cinematográfica, ambas
fábricas de sonhos que, através da aparência, escondem
a verdadeira realidade de que são feitas.
No que talvez seja o plano mais impressionante de Dália
Negra – porque há vários –, Brian De Palma enquadra
Bucky refletido em três espelhos. O reflexo, o duplo,
o espelho são temas estruturantes do filme, que não
trabalha com a cidade, e sim com a imagem da cidade
– ou seja, por meio do que Los Angeles e os personagens
do enredo apresentam ou não de si mesmos. Jogos de opacidade
e de transparência, de ocultamento e revelação, de sombras
e luzes, de mentiras e verdades, de omissões e franquezas:
em Dália Negra, como distinguir a verdade da
ficção produzida para acobertá-la, o objeto real
de sua imagem, o representado de sua representação?
Lee e Bucky, respectivamente Mr. Fire e Mr. Ice, policiais
boxeadores que se conhecem nos distúrbios raciais de
Los Angeles e que, sob os auspícios da corporação, forjam
luta para arrecadarem fundos e serem transferidos para
a seção de mandados. Embora procurem Nash, estuprador
serial, são realocados para o caso Elizabeth Short,
bem mais sedutor para a mídia, já que se trata de uma
linda jovem branca aspirante a atriz em Hollywood, ao
contrário das vítimas negras da investigação mais importante.
Em Dália Negra, as imagens dos fatos se sobrepõem
aos próprios fatos – não interessa quem foi assassinado,
mas quem sairá melhor nas manchetes, assim como vale
a pena enganar o público que assiste ao combate em troca
de objetivos futuros. No entanto, o espelho está trincado,
e o reflexo não é perfeito. Há falhas, visíveis: Elizabeth
não era a moça comportada de família capaz de vender
jornais, mas lésbica promíscua que atuava em filmes
pornográficos; Bucky se apaixona por Kay, mulher de
seu parceiro e melhor amigo, além de se envolver sexualmente
com Madeleine Linscott, filha do todo poderoso empreiteiro
de L.A.; Lee fica cada vez mais obcecado pelo cadáver
(a ponto de dedicar um quarto exclusivo para ela) e
preocupado com a liberdade iminente de Bobby DeWitt,
de quem não apenas roubou Kay, como também o dinheiro
do assalto ao banco.
Se Bucky e Lee são duplos – e Kay o espelho, nunca entre
eles, mas sempre no meio –, Madeleine e Elizabeth também
são reflexo uma da outra, não apenas pela semelhança
física (Kay chama Bucky de doente já que, ao se envolver
com Madeleine, estaria na verdade expressando desejo
por Elizabeth), como também devido ao anseio da herdeira
dos Linscott de se tornar sexualmente tão ativa quanto
a morta. Na relação entre as duas se consolida a mistura
de Los Angeles com o cinema, do real com a representação,
do objeto com a imagem, pois Emmett Linscott, pai de
Madeleine, realizou o filme pornográfico de Elizabeth
e construiu a maioria esmagadora da cidade. O incesto
da indústria cinematográfica com L.A. se manifesta através
dos materiais utilizados nas edificações urbanas, saídos
diretamente de velhos cenários das comédias de Mack
Sennett – a família Linscott deve sua riqueza ao fato
de a cidade não passar de uma farsa (mas que, enquanto
fictícia, é verdadeira).
A fita pornô de Elizabeth projetada em 1:1.37, e O
Homem que Ri, de Paul Leni, exibido na mesma janela.
Brian De Palma escolhe, não por acaso, a cena mais emblemática
do filme para mostrar em Dália Negra, em que
Conrad Veidt não pode esconder o sorriso artificial,
talhado em seu rosto quando ainda era criança, da mulher
que ama, embora esteja em profunda agonia e em desespero.
A aparência que oprime a alma, a luta desta para triunfar
sobre aquela são temas de O Homem que Ri que
reaparecem em Dália Negra. Outros motivos para
o uso do clássico de Leni, estritamente dramáticos e
narrativos, são os cortes que prolongam a boca de Elizabeth
e a obsessão de Ramona Linscott, mãe de Madeleine, com
o herói trágico criado por Victor Hugo. Curioso que
mesmo Madeleine é uma impostora – filha ilegítima de
Emmett, fruto do caso extraconjugal de Ramona com Georgie,
empregado da família.
As tramas paralelas que preenchem a narrativa de Dália
Negra se conectam na meia hora final, resolvendo
abruptamente em falso “happy end” – Bucky e Kay terminam
juntos e os assassinos de Elizabeth morrem. Brian De
Palma, que trabalha com códigos do filme noir,
usa, sobretudo, a influência de Fritz Lang, para quem
a resolução dos conflitos se dá de forma quase paródica,
com o acúmulo absurdo de explicações e de acontecimentos.
Tanto para De Palma quanto para Lang, valem menos viradas
de enredo e de plots geniais do que a construção
de atmosferas e de climas, a movimentação e o posicionamento
da câmera, os enquadramentos, os cortes, as fusões.
O que transforma Dália Negra em obra-prima são
os detalhes de Bucky e Madeleine, na cama, com chapéu
e colar de pérolas; o plano-seqüência subjetivo que
apresenta a família Linscott; os quadros que conjugam
rostos em primeiro plano com planos gerais ao fundo
(herdados de Ivan, O Terrível, de Eisenstein);
a brilhante cena, em câmera lenta, do assassinato de
Lee; Scarlett Johansson personificando Lana Turner,
loiríssima, de piteira e suéter.
Em Dália Negra, Brian De Palma faz o que sabe:
cinema puro. Para os que não gostam, resta a opção de
ler o livro.
Paulo Ricardo de Almeida
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