DÁLIA NEGRA
Brian De Palma, Black Dahlia, Alemanha/EUA, 2006

“Bucky” Bleichert e “Lee” Blanchard estão de tocaia observando o suposto apartamento de Nash, estuprador e assassino de crianças negras. Grua para cima. Ao fundo, por trás do prédio, a mulher que acaba de encontrar o cadáver de Elizabeth Short pede socorro. A câmera continua seu movimento, descendo para a direita até descobrir Baxter Fitch, comparsa de Bobby DeWitt, que Lee colocou atrás das grades e que está prestes a sair da cadeia. Neste único e exuberante plano-seqüência, que ocorre na primeira meia-hora de Dália Negra e no qual Brian De Palma exibe toda sua maestria imagética e narrativa, as diversas tramas paralelas que compõem o filme já se encontram unificadas, embora o diretor só as amarre no final. “Nada permanece enterrado para sempre. Nada.”: a adaptação do romance de James Ellroy futrica o relacionamento de Los Angeles com a indústria cinematográfica, ambas fábricas de sonhos que, através da aparência, escondem a verdadeira realidade de que são feitas.

No que talvez seja o plano mais impressionante de Dália Negra – porque há vários –, Brian De Palma enquadra Bucky refletido em três espelhos. O reflexo, o duplo, o espelho são temas estruturantes do filme, que não trabalha com a cidade, e sim com a imagem da cidade – ou seja, por meio do que Los Angeles e os personagens do enredo apresentam ou não de si mesmos. Jogos de opacidade e de transparência, de ocultamento e revelação, de sombras e luzes, de mentiras e verdades, de omissões e franquezas: em Dália Negra, como distinguir a verdade da ficção produzida para acobertá-la, o objeto real de sua imagem, o representado de sua representação?

Lee e Bucky, respectivamente Mr. Fire e Mr. Ice, policiais boxeadores que se conhecem nos distúrbios raciais de Los Angeles e que, sob os auspícios da corporação, forjam luta para arrecadarem fundos e serem transferidos para a seção de mandados. Embora procurem Nash, estuprador serial, são realocados para o caso Elizabeth Short, bem mais sedutor para a mídia, já que se trata de uma linda jovem branca aspirante a atriz em Hollywood, ao contrário das vítimas negras da investigação mais importante. Em Dália Negra, as imagens dos fatos se sobrepõem aos próprios fatos – não interessa quem foi assassinado, mas quem sairá melhor nas manchetes, assim como vale a pena enganar o público que assiste ao combate em troca de objetivos futuros. No entanto, o espelho está trincado, e o reflexo não é perfeito. Há falhas, visíveis: Elizabeth não era a moça comportada de família capaz de vender jornais, mas lésbica promíscua que atuava em filmes pornográficos; Bucky se apaixona por Kay, mulher de seu parceiro e melhor amigo, além de se envolver sexualmente com Madeleine Linscott, filha do todo poderoso empreiteiro de L.A.; Lee fica cada vez mais obcecado pelo cadáver (a ponto de dedicar um quarto exclusivo para ela) e preocupado com a liberdade iminente de Bobby DeWitt, de quem não apenas roubou Kay, como também o dinheiro do assalto ao banco.

Se Bucky e Lee são duplos – e Kay o espelho, nunca entre eles, mas sempre no meio –, Madeleine e Elizabeth também são reflexo uma da outra, não apenas pela semelhança física (Kay chama Bucky de doente já que, ao se envolver com Madeleine, estaria na verdade expressando desejo por Elizabeth), como também devido ao anseio da herdeira dos Linscott de se tornar sexualmente tão ativa quanto a morta. Na relação entre as duas se consolida a mistura de Los Angeles com o cinema, do real com a representação, do objeto com a imagem, pois Emmett Linscott, pai de Madeleine, realizou o filme pornográfico de Elizabeth e construiu a maioria esmagadora da cidade. O incesto da indústria cinematográfica com L.A. se manifesta através dos materiais utilizados nas edificações urbanas, saídos diretamente de velhos cenários das comédias de Mack Sennett – a família Linscott deve sua riqueza ao fato de a cidade não passar de uma farsa (mas que, enquanto fictícia, é verdadeira).

A fita pornô de Elizabeth projetada em 1:1.37, e O Homem que Ri, de Paul Leni, exibido na mesma janela. Brian De Palma escolhe, não por acaso, a cena mais emblemática do filme para mostrar em Dália Negra, em que Conrad Veidt não pode esconder o sorriso artificial, talhado em seu rosto quando ainda era criança, da mulher que ama, embora esteja em profunda agonia e em desespero. A aparência que oprime a alma, a luta desta para triunfar sobre aquela são temas de O Homem que Ri que reaparecem em Dália Negra. Outros motivos para o uso do clássico de Leni, estritamente dramáticos e narrativos, são os cortes que prolongam a boca de Elizabeth e a obsessão de Ramona Linscott, mãe de Madeleine, com o herói trágico criado por Victor Hugo. Curioso que mesmo Madeleine é uma impostora – filha ilegítima de Emmett, fruto do caso extraconjugal de Ramona com Georgie, empregado da família.

As tramas paralelas que preenchem a narrativa de Dália Negra se conectam na meia hora final, resolvendo abruptamente em falso “happy end” – Bucky e Kay terminam juntos e os assassinos de Elizabeth morrem. Brian De Palma, que trabalha com códigos do filme noir, usa, sobretudo, a influência de Fritz Lang, para quem a resolução dos conflitos se dá de forma quase paródica, com o acúmulo absurdo de explicações e de acontecimentos. Tanto para De Palma quanto para Lang, valem menos viradas de enredo e de plots geniais do que a construção de atmosferas e de climas, a movimentação e o posicionamento da câmera, os enquadramentos, os cortes, as fusões. O que transforma Dália Negra em obra-prima são os detalhes de Bucky e Madeleine, na cama, com chapéu e colar de pérolas; o plano-seqüência subjetivo que apresenta a família Linscott; os quadros que conjugam rostos em primeiro plano com planos gerais ao fundo (herdados de Ivan, O Terrível, de Eisenstein); a brilhante cena, em câmera lenta, do assassinato de Lee; Scarlett Johansson personificando Lana Turner, loiríssima, de piteira e suéter.

Em Dália Negra, Brian De Palma faz o que sabe: cinema puro. Para os que não gostam, resta a opção de ler o livro.


Paulo Ricardo de Almeida