O CROCODILO
Nanni Moretti, ll Caimano, Itália, 2006

Em uma das cenas-chave do clímax final de O Crocodilo, a garra de um crocodilo-trator destrói a parede do quarto no qual Bruno se alonga brevemente – e com ela seu sonho de um cinema sem muitos compromissos, no qual o improvável é lei maior e inconteste. E se o quarto é um cenário em um estúdio falido que está sendo destruído, este "improvável" (presente inclusive no susto provocado pelo brusco desmoronamento da parede no centro do quadro) é o tom autêntico que percorre todo o filme de Nanni Moretti. Improvável do absurdo político que se instala a despeito de qualquer indignação, improvável do inesperado ou do fantástico que irrompe na narrativa cinematográfica, improvável da realização de um cinema político atravessado.

A boca cheia de dentes do medonho trator opera de acordo com a lógica de uma circulação financeira internacional que regula a produção e o consumo não apenas de bens culturais, mas também de ideologias, e que, apesar do binômio fragmentação-unificação em escala internacional, sugerido por sua eminente aceleração, tende à ascensão e consolidação locais de figuras detentoras de grande poder e domínio. Como rima visual, esta boca remete à boca do trator de brinquedo que Bruno utiliza para contar aos filhos o roteiro de Teresa sobre Berlusconi, monstro político-econômico e cabeça da maior rede de comunicações da Itália. Mas a história deste monstro não interessa tanto às crianças quanto as histórias dos monstros dos filmes do pai, vilões trash que espalham o terror em ketchup. Monstrengos de um cinema fantasioso e pueril, que tanto quanto o cinema "sério" de intervenção na vida sócio-política do país, se viu alijado dos meios produtivos pela presença desta lógica neoliberal-globalizante da qual o amplo complexo midiático de Berlusconi foi o principal propagador na Itália. Há verba apenas para os grandes épicos sem alma. Pois recontar a história de Colombo com pompa é inofensivo e oscarizável.

Os tentáculos desta figura fascistóide, que foi capaz de exercer um controle com amplitude digna do Reich alemão, ditaram por muitos anos todo o funcionamento do seu país, dinamitando possibilidades as mais diversas, abrindo espaço para a entrada de outras feras e disseminando as presas de um sistema feroz no qual o "pessoal" tem pouco espaço, além daquele da fetichização da intimidade (e do "self") e do júbilo de poder experimentado por figuras emblemáticas travestidas de deus. A escolha de Nanni Moretti de fazer um filme sobre Berlusconi focando-se na instituição cinema e orquestrando de forma lúdica posicionamentos políticos, posicionamentos cinematográficos e uma narrativa intimista que aposta na verdade dos personagens, faz de O Crocodilo uma obra composta de inúmeras peças que se montam e se remontam, em incessável modulação e sem nunca ganhar uma forma definitiva. Porque assim como a sumida peça de Lego do pequeno Andrea, as peças precisas da intriga política são praticamente impossíveis de encontrar, são como quimeras que subjugam aqueles que ainda sonham em explicar o mundo. Resta então a descontração de um jogo que nunca se quer acabado, que se monta a partir de questões sem resposta fechada. E assim é O Crocodilo: um filme de personagens e de afetos que tangencia a todo o momento grandes questões e cujo maior feito é ser dinâmico e "incompleto".

Ao pulverizar elementos da História numa evocação constante do complexo Cinema, Moretti se posiciona politicamente da mais bela forma: dedica-se a historiar o contemporâneo e a elogiar a ficção. A órbita anárquica que o filme descreve em torno de Bruno, contemplando sua visão de cinema, seu esforço para que o roteiro de Teresa seja filmado e sua relação com a mulher e os filhos, faz existir um personagem vivo, vibrante, num trabalho impactante do ator Silvio Orlando. Ao invés de uma História grandiosa, centrada na figura do líder político, temos um mapeamento da Itália (afetada pela atuação deste líder) e a problematização da representação unívoca de um fenômeno amplo demais para que se possa dar conta dele e de suas repercussões. A múltipla falência experimentada por Bruno (a carreira de cineasta interrompida, as dívidas no banco, o fim do casamento) é a falência de todo um país assolado por acontecimentos cuja dimensão ainda é dificilmente mensurável. A tentativa de retomar um rumo está na busca pela fixação/compreensão da figura-símbolo desta falência. Mas, apesar de ícone de uma época, Berlusconi não cabe em uma única interpretação fechada: travamos contato com ele primeiramente através de imagens de arquivo (o fato, bruto, mediado pela imagem televisiva) e depois por três atores diferentes, o último deles o próprio Moretti (a leitura, a interpretação dentro de parâmetros artísticos). Pois o discurso político, o ataque a inimigos, é, no final das contas, uma representação (de mundo). E por isso também a necessidade de se questionar sobre a produção de ficção.

Se o reino de Bruno é a fantasia, o cinema B, o descompromisso que associa o vermelho do comunismo ao vermelho do sangue fácil, ao terror mais brincalhão, e que imagina o drama político como a cena de um filme surrealista, em que uma pergunta como "de onde veio esse dinheiro?" é suscitada por uma mala que cai misteriosamente do teto em cima do empresário, Moretti é aquele que vai, através do seu personagem, atestar sua crença na ficcionalização cinematográfica, deixando que os comentários políticos a atravessem mais em forma de gags do que de discurso feito. Os diferentes registros imagéticos que ocupam a tela ao longo de O Crocodilo nos informam, antes de mais nada, que o cinema é o reduto privilegiado do encanto pela imagem e que é preciso atentar para a sua produção de sentido. Assim sendo, diversas imagens tomam de assalto o filme, se apresentando em pé de igualdade com a ficção apresentada por Moretti e denotando a total adesão do cineasta a elas: a seqüência de "Cataratas" (filme de Bruno); as cenas de "O Crocodilo", de Teresa, imaginadas por Bruno ao ler o roteiro; o trecho de A Viagem de Chihiro, de Hayao Miyazaki, em paráfrase videográfica; a imaginação infantil ao escutar as histórias da vilã Aídra contadas pelo pai e, por fim, "O Crocodilo" de Teresa captado em película.

O Crocodilo tem início com a seqüência final de "Cataratas", para terminar com trechos de "O Crocodilo" filmado com Moretti no papel de Berlusconi, como se fosse preciso descrever toda a odisséia (pessoal e profissional) que é engajar-se na criação da ficção, para só então poder apresentá-la em toda a sua solenidade. Quando chegamos finalmente a ver o "verdadeiro" filme sobre Berlusconi, há o choque de nos depararmos com Moretti assumindo fisicamente a representação do personagem e ele passa rápido, como um trailer; uma ilustração do que é necessário dizer ou uma metonímia para todo um filme que não é preciso assistir (seria preciso filmá-lo?), porque a afirmação política mais importante já foi feita: trata-se da batalha pelo direito de se filmar o que se deseja. A odisséia de Bruno, que enfrenta o produtor Jerzy (interpretado pelo diretor polonês Jerzy Stuhr), configura-se, então, como um paralelo da odisséia de Paul em O Desprezo, de Godard, que precisa driblar o produtor americano Jeremy Prokosh, para fazer o filme que quer. Porque fazer cinema na Itália de Berlusconi não é muito diferente de lutar contra a dominação dos interesses financeiros americanos sobre a produção cultural de um país.

Ao contrário da incansável busca de Enrique em A Má Educação, de Almodóvar, por um roteiro vivo, que escape da obviedade e valha ser filmado por sua dose de "verdade", na Companhia Produtora em que Bruno trabalha (e na qual a RAI investe), só há um filme a ser feito: aquele de fácil aceitação (seja lá o que isso queira dizer), bem-feito, bem-cuidado, estéril. Mas com a desistência do diretor de "O Retorno de Colombo" do projeto, Bruno recusa-se a levá-lo adiante e apresenta no lugar o roteiro de Teresa, como uma aposta num jovem talento. Mesmo ignorando a princípio se tratar de um "filme político" (e reagindo violentamente ao descobrir), Bruno abraça a causa de Teresa como causa pessoal e batalha até o fim para que "O Crocodilo" seja realizado. Pois se já não é mais possível promover o encanto do filme fantástico, que ao menos se possa transmitir uma verdade de sentimentos e fazer uma declaração política na qual se acredita. A empreitada torna-se para ele uma grande aposta no cinema e, por conseguinte, sua principal força para seguir vivendo enquanto sua vida pessoal desmorona.

Bruno vê então a nau de Colombo, objeto cenográfico grandioso e custoso, atravessando a estrada no meio da noite, como num dos melhores momentos de sonho de Fellini. Sua recusa de um cinema inócuo em favor de um deslumbre com o cinema, com a ficção, seja ela qual for, é também a paixão de Moretti, que, para tratar de um assunto tão caro e tão difícil quanto fazer a crítica política do seu inimigo confesso e dos estragos feitos ao seu país, precisa antes tratar de cinema e de dramas humanos, privilegiando, desta forma, a magia que envolve esta arte, o prazer indescritível das emoções proporcionadas por imagens que desfilam na tela. Por isso O Crocodilo se centra sobretudo em seus personagens (que precisam aprender a se articular entre si), traçando um encantador retrato do contemporâneo (não apenas da Itália, como do mundo ocidental). A observação próxima da raiva, do ciúme, do amor, do riso, da tristeza, das relações entre cada um dos personagens, é reveladora de uma realidade vivida, de um mundo que acontece e pelo qual somos cativados (e não seria esta a maior conquista de um filme que deseja ter efeito no público?). Portanto, quando o ator Marco Pulici desiste do importante papel de Berlusconi para passar um ano junto com seu filho e quase arruína o projeto de Teresa, sua causa é entendida como a mais justa – grande afirmação de princípios de Moretti e curiosa ironia com o fato de tantos atores terem tido suas carreiras prejudicadas por fazerem sátiras de Berlusconi.

O delírio narrativo que constitui o filme, com sua afirmação apaixonada do "fazer cinema", traz também consigo a confessa devoção a um cinema não muito distante das fantasias apreciadas pelas crianças: um cinema alegre, vivo e lúdico. É quando Moretti, o "cineasta político", encontra Shyamalan, o cineasta do fantasioso: a declaração de amor à ficção vem acompanhada da recusa do "crítico" (detonado em O Crocodilo por um exército de lagostas e em A Dama na Água por um monstro) e o reino é entregue às crianças. Juízes privilegiados, os filhos de Bruno correm de um lado pro outro no cenário e, finalmente, aprovam o filme de Teresa. Animados, no entanto, pelo mesmo espírito que faz Moretti recusar para seu filme-crítica qualquer rótulo e fazer dele antes uma bela ode ao cinema, eles preferirão sempre os filmes de monstros não-humanos do pai.


Tatiana Monassa

 

 





Um cinema de sonho toma conta de um cinema épico,
pomposo e vazio