Em
uma das cenas-chave do clímax final de O Crocodilo,
a garra de um crocodilo-trator destrói a parede do quarto
no qual Bruno se alonga brevemente – e com ela seu sonho
de um cinema sem muitos compromissos, no qual o improvável
é lei maior e inconteste. E se o quarto é um cenário
em um estúdio falido que está sendo destruído, este
"improvável" (presente inclusive no susto
provocado pelo brusco desmoronamento da parede no centro
do quadro) é o tom autêntico que percorre todo o filme
de Nanni Moretti. Improvável do absurdo político que
se instala a despeito de qualquer indignação, improvável
do inesperado ou do fantástico que irrompe na narrativa
cinematográfica, improvável da realização de um cinema
político atravessado.
A boca cheia de dentes do medonho trator opera de acordo
com a lógica de uma circulação financeira internacional
que regula a produção e o consumo não apenas de bens
culturais, mas também de ideologias, e que, apesar do
binômio fragmentação-unificação em escala internacional,
sugerido por sua eminente aceleração, tende à ascensão
e consolidação locais de figuras detentoras de grande
poder e domínio. Como rima visual, esta boca remete
à boca do trator de brinquedo que Bruno utiliza para
contar aos filhos o roteiro de Teresa sobre Berlusconi,
monstro político-econômico e cabeça da maior rede de
comunicações da Itália. Mas a história deste monstro
não interessa tanto às crianças quanto as histórias
dos monstros dos filmes do pai, vilões trash
que espalham o terror em ketchup. Monstrengos de um
cinema fantasioso e pueril, que tanto quanto o cinema
"sério" de intervenção na vida sócio-política
do país, se viu alijado dos meios produtivos pela presença
desta lógica neoliberal-globalizante da qual o amplo
complexo midiático de Berlusconi foi o principal propagador
na Itália. Há verba apenas para os grandes épicos sem
alma. Pois recontar a história de Colombo com pompa
é inofensivo e oscarizável.
Os tentáculos desta figura fascistóide, que foi capaz
de exercer um controle com amplitude digna do Reich
alemão, ditaram por muitos anos todo o funcionamento
do seu país, dinamitando possibilidades as mais diversas,
abrindo espaço para a entrada de outras feras e disseminando
as presas de um sistema feroz no qual o "pessoal"
tem pouco espaço, além daquele da fetichização da intimidade
(e do "self") e do júbilo de poder experimentado
por figuras emblemáticas travestidas de deus. A escolha
de Nanni Moretti de fazer um filme sobre Berlusconi
focando-se na instituição cinema e orquestrando de forma
lúdica posicionamentos políticos, posicionamentos cinematográficos
e uma narrativa intimista que aposta na verdade dos
personagens, faz de O Crocodilo uma obra composta
de inúmeras peças que se montam e se remontam, em incessável
modulação e sem nunca ganhar uma forma definitiva. Porque
assim como a sumida peça de Lego do pequeno Andrea,
as peças precisas da intriga política são praticamente
impossíveis de encontrar, são como quimeras que subjugam
aqueles que ainda sonham em explicar o mundo. Resta
então a descontração de um jogo que nunca se quer acabado,
que se monta a partir de questões sem resposta fechada.
E assim é O Crocodilo: um filme de personagens
e de afetos que tangencia a todo o momento grandes questões
e cujo maior feito é ser dinâmico e "incompleto".
Ao pulverizar elementos da História numa evocação constante
do complexo Cinema, Moretti se posiciona politicamente
da mais bela forma: dedica-se a historiar o contemporâneo
e a elogiar a ficção. A órbita anárquica que o filme
descreve em torno de Bruno, contemplando sua visão de
cinema, seu esforço para que o roteiro de Teresa seja
filmado e sua relação com a mulher e os filhos, faz
existir um personagem vivo, vibrante, num trabalho impactante
do ator Silvio Orlando. Ao invés de uma História grandiosa,
centrada na figura do líder político, temos um mapeamento
da Itália (afetada pela atuação deste líder) e a problematização
da representação unívoca de um fenômeno amplo demais
para que se possa dar conta dele e de suas repercussões.
A múltipla falência experimentada por Bruno (a carreira
de cineasta interrompida, as dívidas no banco, o fim
do casamento) é a falência de todo um país assolado
por acontecimentos cuja dimensão ainda é dificilmente
mensurável. A tentativa de retomar um rumo está na busca
pela fixação/compreensão da figura-símbolo desta falência.
Mas, apesar de ícone de uma época, Berlusconi não cabe
em uma única interpretação fechada: travamos contato
com ele primeiramente através de imagens de arquivo
(o fato, bruto, mediado pela imagem televisiva) e depois
por três atores diferentes, o último deles o próprio
Moretti (a leitura, a interpretação dentro de parâmetros
artísticos). Pois o discurso político, o ataque a inimigos,
é, no final das contas, uma representação (de mundo).
E por isso também a necessidade de se questionar sobre
a produção de ficção.
Se o reino de Bruno é a fantasia, o cinema B, o descompromisso
que associa o vermelho do comunismo ao vermelho do sangue
fácil, ao terror mais brincalhão, e que imagina o drama
político como a cena de um filme surrealista, em que
uma pergunta como "de onde veio esse dinheiro?"
é suscitada por uma mala que cai misteriosamente do
teto em cima do empresário, Moretti é aquele que vai,
através do seu personagem, atestar sua crença na ficcionalização
cinematográfica, deixando que os comentários políticos
a atravessem mais em forma de gags do que de
discurso feito. Os diferentes registros imagéticos que
ocupam a tela ao longo de O Crocodilo nos informam,
antes de mais nada, que o cinema é o reduto privilegiado
do encanto pela imagem e que é preciso atentar para
a sua produção de sentido. Assim sendo, diversas imagens
tomam de assalto o filme, se apresentando em pé de igualdade
com a ficção apresentada por Moretti e denotando a total
adesão do cineasta a elas: a seqüência de "Cataratas"
(filme de Bruno); as cenas de "O Crocodilo",
de Teresa, imaginadas por Bruno ao ler o roteiro; o
trecho de A Viagem de Chihiro, de Hayao Miyazaki,
em paráfrase videográfica; a imaginação infantil ao
escutar as histórias da vilã Aídra contadas pelo pai
e, por fim, "O Crocodilo" de Teresa captado
em película.
O Crocodilo tem início com a seqüência final
de "Cataratas", para terminar com trechos
de "O Crocodilo" filmado com Moretti no papel
de Berlusconi, como se fosse preciso descrever toda
a odisséia (pessoal e profissional) que é engajar-se
na criação da ficção, para só então poder apresentá-la
em toda a sua solenidade. Quando chegamos finalmente
a ver o "verdadeiro" filme sobre Berlusconi,
há o choque de nos depararmos com Moretti assumindo
fisicamente a representação do personagem e ele passa
rápido, como um trailer; uma ilustração do que é necessário
dizer ou uma metonímia para todo um filme que não é
preciso assistir (seria preciso filmá-lo?), porque a
afirmação política mais importante já foi feita: trata-se
da batalha pelo direito de se filmar o que se deseja.
A odisséia de Bruno, que enfrenta o produtor Jerzy (interpretado
pelo diretor polonês Jerzy Stuhr), configura-se, então,
como um paralelo da odisséia de Paul em O Desprezo,
de Godard, que precisa driblar o produtor americano
Jeremy Prokosh, para fazer o filme que quer. Porque
fazer cinema na Itália de Berlusconi não é muito diferente
de lutar contra a dominação dos interesses financeiros
americanos sobre a produção cultural de um país.
Ao contrário da incansável busca de Enrique em A
Má Educação, de Almodóvar, por um roteiro vivo,
que escape da obviedade e valha ser filmado por sua
dose de "verdade", na Companhia Produtora
em que Bruno trabalha (e na qual a RAI investe), só
há um filme a ser feito: aquele de fácil aceitação (seja
lá o que isso queira dizer), bem-feito, bem-cuidado,
estéril. Mas com a desistência do diretor de "O
Retorno de Colombo" do projeto, Bruno recusa-se
a levá-lo adiante e apresenta no lugar o roteiro de
Teresa, como uma aposta num jovem talento. Mesmo ignorando
a princípio se tratar de um "filme político"
(e reagindo violentamente ao descobrir), Bruno abraça
a causa de Teresa como causa pessoal e batalha até o
fim para que "O Crocodilo" seja realizado.
Pois se já não é mais possível promover o encanto do
filme fantástico, que ao menos se possa transmitir uma
verdade de sentimentos e fazer uma declaração política
na qual se acredita. A empreitada torna-se para ele
uma grande aposta no cinema e, por conseguinte, sua
principal força para seguir vivendo enquanto sua vida
pessoal desmorona.
Bruno vê então a nau de Colombo, objeto cenográfico
grandioso e custoso, atravessando a estrada no meio
da noite, como num dos melhores momentos de sonho de
Fellini. Sua recusa de um cinema inócuo em favor de
um deslumbre com o cinema, com a ficção, seja ela qual
for, é também a paixão de Moretti, que, para tratar
de um assunto tão caro e tão difícil quanto fazer a
crítica política do seu inimigo confesso e dos estragos
feitos ao seu país, precisa antes tratar de cinema e
de dramas humanos, privilegiando, desta forma, a magia
que envolve esta arte, o prazer indescritível das emoções
proporcionadas por imagens que desfilam na tela. Por
isso O Crocodilo se centra sobretudo em seus
personagens (que precisam aprender a se articular entre
si), traçando um encantador retrato do contemporâneo
(não apenas da Itália, como do mundo ocidental). A observação
próxima da raiva, do ciúme, do amor, do riso, da tristeza,
das relações entre cada um dos personagens, é reveladora
de uma realidade vivida, de um mundo que acontece e
pelo qual somos cativados (e não seria esta a maior
conquista de um filme que deseja ter efeito no público?).
Portanto, quando o ator Marco Pulici desiste do importante
papel de Berlusconi para passar um ano junto com seu
filho e quase arruína o projeto de Teresa, sua causa
é entendida como a mais justa – grande afirmação de
princípios de Moretti e curiosa ironia com o fato de
tantos atores terem tido suas carreiras prejudicadas
por fazerem sátiras de Berlusconi.
O delírio narrativo que constitui o filme, com sua afirmação
apaixonada do "fazer cinema", traz também
consigo a confessa devoção a um cinema não muito distante
das fantasias apreciadas pelas crianças: um cinema alegre,
vivo e lúdico. É quando Moretti, o "cineasta político",
encontra Shyamalan, o cineasta do fantasioso: a declaração
de amor à ficção vem acompanhada da recusa do "crítico"
(detonado em O Crocodilo por um exército de lagostas
e em A Dama na Água por um monstro) e o reino
é entregue às crianças. Juízes privilegiados, os filhos
de Bruno correm de um lado pro outro no cenário e, finalmente,
aprovam o filme de Teresa. Animados, no entanto, pelo
mesmo espírito que faz Moretti recusar para seu filme-crítica
qualquer rótulo e fazer dele antes uma bela ode ao cinema,
eles preferirão sempre os filmes de monstros não-humanos
do pai.
Tatiana Monassa
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