Christian,
Raymond, Antoine, Zac e Yves, cinco irmãos que os pais
certamente gostariam que fossem “unidos como os dedos
da mão”, tal qual Rosaria Parondi no clássico de Luchino
Visconti, Rocco e seus Irmãos. Acompanhando duas
décadas do cotidiano familiar, de 1960 a 1980, Jean-Marc
Vallée se centra no conflito entre Zac e o pai, que
não aceita a homossexualidade do filho, para ao mesmo
tempo traçar as mudanças que se verificam no comportamento
social e propor como saída o diálogo e a aceitação das
diferenças.
Zac nasce no natal, depois de considerado clinicamente
morto. Sua mãe, ultra-religiosa, acredita que, por fazer
aniversário no mesmo dia que Jesus Cristo, o filho possui
o dom de curar as pessoas apenas ao pensar nelas. A
associação entre Zac e Jesus é explícita, não somente
pela onipresença do natal – a evolução narrativa do
filme ocorre a partir das festas de aniversário do herói
–, como também pelo excesso de música religiosa que
sublinha os momentos dramáticos da trama. Zac peregrina
para Jerusalém e segue os passos de Cristo: mesmo que
renegue a fé, a Igreja e seu dom, embora constantemente
em dúvida, o protagonista representa o agente da crise
que, por intermédio do homossexualismo, desestrutura
e questiona os estatutos familiar e social a respeito
dos papéis do homem e da mulher, assim como a autoridade
paterna que rege a maioria avassaladora das relações
humanas. Mais tênue e implícita, apesar de presente,
é a comparação de Zac com Rocco, já que o primeiro tem
a bondade e compaixão inerentes ao segundo, mas não
sua candura e inocência.
C.R.A.Z.Y., Loucos de Amor é narrado pelo ponto
de vista de Zac, que relembra os acontecimentos da infância
e da juventude, misturando realidade, ficção, sonhos
e devaneios. Jean-Marc Vallée, infelizmente, confunde
ousadia estética com vazio histérico, uma vez que reza
na cartilha formal de diretores como Baz Luhrmann e
Darren Aronofsky a fim de representar os estados psicológico
e emotivo do herói: câmera lenta e acelerada em profusão,
travellings computadorizados hiper-velozes que
suprimem o espaço, montagem feérica que visa ao choque
perceptivo do espectador, truques fotográficos e de
luz que geram a over-plasticidade e a fetichização da
imagem. No entanto, o cineasta acerta na reconstituição
dos períodos históricos – os ambientes e os comportamentos
dos anos 60, 70 e 80 –, inegavelmente embalada pelo
tom nostálgico e saudosista que contamina filmes e séries
televisivas que voltam para épocas ainda recentes no
tempo (eximindo-se, em conseqüência, de qualquer análise
político-social dos agenciamentos em curso que as moldaram),
e nas passagens sutis entre eles – alterações nas roupas,
nos penteados, nas músicas, nos objetos –, bem como
na escolha e na condução do elenco, sobretudo quanto
a Michel Coté, inspiradíssimo como o pai machista, cabeça-dura
e ríspido, porém sincero e dedicado à família.
O filme não julga: os personagens têm vida própria e
são fiéis às suas crenças e idéias, estejam elas “certas”
ou “erradas”. Trata-se da maior conquista de Jean-Marc
Vallée, colocar em perspectiva os fatos apresentados
pela narrativa e compreendê-los, sem que, todavia, deixe
de apoiar Zac e a opção pelo diálogo e pela diversidade.
Fundamental, assim, é a participação de Raymond, ovelha
negra da família e que aproxima de vez C.R.A.Z.Y.,
Loucos de Amor com Rocco e Seus Irmãos, visto
que sua morte (por overdose) permite o reencontro entre
Zac e o pai, do mesmo modo que Simone, no filme de Visconti,
significa o tijolo que os pedreiros descartam para que
a casa nasça sólida. A perda de Raymond abre os olhos
do pai, que finalmente enxerga quão inútil se mostram
o pensamento monolítico e o orgulho pessoal frente à
fugacidade e à transformação permanente da vida.
Encontros e desencontros, alegrias e tristezas, morte
e sofrimento: Jean-Marc Vallée, por mais defeitos que
C.R.A.Z.Y., Loucos de Amor possua, não esconde
que o caminho do diálogo e da aceitação das diferenças
está cheio de perigos e de armadilhas.
Paulo Ricardo de Almeida
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