C.R.A.Z.Y. - LOUCOS DE AMOR
Jean-Marc Vallée, C.R.A.Z.Y., Canadá, 2005

Christian, Raymond, Antoine, Zac e Yves, cinco irmãos que os pais certamente gostariam que fossem “unidos como os dedos da mão”, tal qual Rosaria Parondi no clássico de Luchino Visconti, Rocco e seus Irmãos. Acompanhando duas décadas do cotidiano familiar, de 1960 a 1980, Jean-Marc Vallée se centra no conflito entre Zac e o pai, que não aceita a homossexualidade do filho, para ao mesmo tempo traçar as mudanças que se verificam no comportamento social e propor como saída o diálogo e a aceitação das diferenças.

Zac nasce no natal, depois de considerado clinicamente morto. Sua mãe, ultra-religiosa, acredita que, por fazer aniversário no mesmo dia que Jesus Cristo, o filho possui o dom de curar as pessoas apenas ao pensar nelas. A associação entre Zac e Jesus é explícita, não somente pela onipresença do natal – a evolução narrativa do filme ocorre a partir das festas de aniversário do herói –, como também pelo excesso de música religiosa que sublinha os momentos dramáticos da trama. Zac peregrina para Jerusalém e segue os passos de Cristo: mesmo que renegue a fé, a Igreja e seu dom, embora constantemente em dúvida, o protagonista representa o agente da crise que, por intermédio do homossexualismo, desestrutura e questiona os estatutos familiar e social a respeito dos papéis do homem e da mulher, assim como a autoridade paterna que rege a maioria avassaladora das relações humanas. Mais tênue e implícita, apesar de presente, é a comparação de Zac com Rocco, já que o primeiro tem a bondade e compaixão inerentes ao segundo, mas não sua candura e inocência.

C.R.A.Z.Y., Loucos de Amor é narrado pelo ponto de vista de Zac, que relembra os acontecimentos da infância e da juventude, misturando realidade, ficção, sonhos e devaneios. Jean-Marc Vallée, infelizmente, confunde ousadia estética com vazio histérico, uma vez que reza na cartilha formal de diretores como Baz Luhrmann e Darren Aronofsky a fim de representar os estados psicológico e emotivo do herói: câmera lenta e acelerada em profusão, travellings computadorizados hiper-velozes que suprimem o espaço, montagem feérica que visa ao choque perceptivo do espectador, truques fotográficos e de luz que geram a over-plasticidade e a fetichização da imagem. No entanto, o cineasta acerta na reconstituição dos períodos históricos – os ambientes e os comportamentos dos anos 60, 70 e 80 –, inegavelmente embalada pelo tom nostálgico e saudosista que contamina filmes e séries televisivas que voltam para épocas ainda recentes no tempo (eximindo-se, em conseqüência, de qualquer análise político-social dos agenciamentos em curso que as moldaram), e nas passagens sutis entre eles – alterações nas roupas, nos penteados, nas músicas, nos objetos –, bem como na escolha e na condução do elenco, sobretudo quanto a Michel Coté, inspiradíssimo como o pai machista, cabeça-dura e ríspido, porém sincero e dedicado à família.

O filme não julga: os personagens têm vida própria e são fiéis às suas crenças e idéias, estejam elas “certas” ou “erradas”. Trata-se da maior conquista de Jean-Marc Vallée, colocar em perspectiva os fatos apresentados pela narrativa e compreendê-los, sem que, todavia, deixe de apoiar Zac e a opção pelo diálogo e pela diversidade. Fundamental, assim, é a participação de Raymond, ovelha negra da família e que aproxima de vez C.R.A.Z.Y., Loucos de Amor com Rocco e Seus Irmãos, visto que sua morte (por overdose) permite o reencontro entre Zac e o pai, do mesmo modo que Simone, no filme de Visconti, significa o tijolo que os pedreiros descartam para que a casa nasça sólida. A perda de Raymond abre os olhos do pai, que finalmente enxerga quão inútil se mostram o pensamento monolítico e o orgulho pessoal frente à fugacidade e à transformação permanente da vida.

Encontros e desencontros, alegrias e tristezas, morte e sofrimento: Jean-Marc Vallée, por mais defeitos que C.R.A.Z.Y., Loucos de Amor possua, não esconde que o caminho do diálogo e da aceitação das diferenças está cheio de perigos e de armadilhas.


Paulo Ricardo de Almeida