No
cinema, o milagre da ressurreição parece sempre ser
possível. Ao retomar o projeto de um filme realizado
em super-8 em 1982 - igualmente intitulado Yamiutso
Shinzo/Heart, Beating in the Dark –, o diretor Shunichi
Nagasaki traz à tona uma série de questões relacionadas
ao ato de se realizar uma refilmagem. O interessante
na proposta de Nagasaki é que seu gesto não significou
a substituição de um filme por outro. Isto é,
não se trata de refilmar visando uma formatação mais
condizente com os padrões de mercado, ou de buscar uma
nova roupagem estilística que conferisse ao projeto
alguma necessária acessibilidade. No caso de Coração,
Batendo no Escuro, os dois filmes (o de 1982 e o
de 2005) co-existem na narrativa, dividem as expectativas
do espectador, reivindicam um igual espaço simbólico.
A “refilmagem” convive com a sua “primeira versão”.
Não só: Nagasaki acrescenta a essa estratégia um terceiro
universo narrativo, o do making of. Ou seja,
a própria refilmagem é “documentada” e incorporada à
narrativa. O jogo das texturas de imagem (o “passado”
em super-8 e o “presente” em dois diferentes tratamentos
da imagem digital - a “ficção” e o “making of”)
distinguem esses três momentos da narrativa, mas tais
distinções são, digamos, de grau, e não de natureza.
Na verdade, os três momentos pretendem formar um só,
e o jogo temporal ganha assim valor de reflexividade.
Somente essas razões já despertam a curiosidade para
o filme. Há ainda o fato de que Shunichi Nagasaki é
louvado como um dos nomes de maior representatividade
no cinema japonês contemporâneo, por seu trabalho experimental
e independente, trabalho por sinal desconhecido no Brasil.
O filme tem como personagens principais dois casais
(Ringo e Inako, Yuki e Toru) que vivem histórias semelhantes:
ambos cometeram um crime (mataram a filha ainda bebê).
No super-8, acompanhamos a trajetória de Ringo e Inako,
em 1982. O filme trabalha criativamente com suas precárias
condições de produção ao encerrar o jovem casal num
apartamento, estabelecendo a partir daí um teatro de
enfrentamento, em que o sexo e a violência regem as
relações. Na “refilmagem”, já em suporte digital, acompanhamos
a trajetória de Ringo e Inako vinte e três anos depois,
quando se reencontram de forma intensa e tentam mais
uma vez fugir e romper com o passado. Paralelamente
à história de Ringo e Inako, seguimos Yuki e Toru, dois
jovens que simplesmente vivem a mesma história de Ringo
e Inako. Também esse casal de 2005 se refugia num apartamento
e, com pequenas diferenças em relação ao filme em super-8,
se enfrentam e se amam de forma violenta. A certa altura,
os dois casais se encontrarão.
Muito embora a influência rarefeita do cinema de gênero
(sobretudo do filme noir) apareça de tempos em
tempos, não é o fio da intriga que interessa a Shunichi
Nagasaki explorar, muito menos o crime que os dois casais
cometem. Seqüências inteiras que descrevem os assassinatos
são contadas pelos personagens/atores à câmera, a ponto
de não se tornar importante o sabermos se se trata de
representação ou de uma simples leitura do texto para
ensaio. Se a refilmagem, com todas as suas implicações
simbólicas que ela guarda, é em si o grande foco de
interesse de Coração, Batendo no Escuro, isso
se deve aos motivos anteriormente indicados: trata-se
de um processo que engloba os diversos materiais fílmicos
numa montagem de diferentes momentos temporais. Passado
e presente deixam de ter dimensões episódicas para adquirirem
um sentido quase religioso, em que a “ressurreição”
é questionada. Seria possível reviver e reconduzir a
história em um novo sentido, evitar até mesmo que os
personagens cometam novos (ou antigos) erros?
Os acontecimentos narrados pelas imagens em super-8
(Ringo e Inako quando jovens) se repetem, com pequenas
variações, na vida do casal Yuki e Toru. Como já foi
dito, em um certo ponto da narrativa, os dois casais
se encontram. A identificação entre os quatro personagens
ocorre, mas nenhum deles conseguirá escapar da culpa,
da marca dos atos passados. Ter trabalhado com Takashi
Naito e Shigeru Muroi, os dois atores/personagens do
filme de 1982, no interior da refilmagem, fazendo-os
interagir com Noriko Eguchi e Shoichi Honda, o outro
casal mais jovem, é o grande trunfo de Coração, Batendo
no Escuro, pois à idéia de “ressurreição”, representada
pelo casal jovem de 2005, o próprio filme opõe a sua
total ilusão: não são Ringo e Inako, os personagens
de 1982, que “ressucitam”; pelo contrário, eles continuam
a viver suas vidas, evelhecendo e lidando mal com o
passado.
Apesar desse acúmulo de interesses e de uma natural
expectativa que se cria a partir daí, Coração, Batendo
no Escuro termina por decepcionar, em proporção
talvez correspondente à ambição do projeto. Caso típico
em que as intenções não chegam a garantir a plena realização
do filme?
O fato é que o grande problema ou defeito de Coração,
Batendo no Escuro está localizado em seu ponto mais
delicado, isto é, em sua estrutura narrativa.
O resultado da alternância entre as cenas em super-8
e sua refilmagem termina por estimular não propriamente
a criação de sentidos a partir do jogo temporal,
mas sim a comparação descritiva entre
as duas formas de filmar (a de 1982 e a de 2005), pois
as cenas se repetem com pequenas variações e sutis modificações
na interpretação e no jogo de dominação entre os atores
que se confrontam (tanto no “passado” quanto no “presente”)
no interior dos apartamentos. Por apoiar-se em recursos
óbvios de ligação entre as cenas (o gesto de um personagem
em 1982 se repete ou se inverte em 2005), a montagem
não chega a dotar os dois universos temporais de um
sentido além daquele reforçado pelas texturas das imagens
em super-8 e em suporte digital.
A inclusão das cenas de makin of - apresentadas
em sua dicção convencional, isto é, aquela velha câmera
em movimentos incessantes e descuidados, procurando
“surpreender” e “registrar” o que ocorre em redor -
reforça ainda mais a intenção de distanciamento, pois
ao diretor não interessa jogar com o naturalismo das
elipses entre os diferentes tempos da narrativa. Esse
saudável desejo de quebrar com tais regras recua diante
do convencionalismo das saídas estéticas (a já mencionada
“câmera nervosa” do making of, o recurso de imagens
em p&b para “representar” sonho etc.) e resulta
em uma estrutura um tanto fria e monótona. Ora jogado
no “passado”, ora no “presente”, o espectador desinteressa-se
pelo que poderia existir de interpenetração entre um
e outro universo temporal. Quando enfim os dois casais
se encontram, quase nada resta do jogo entre o “passado”
e o “presente” repetido à exaustão pela alternância
das imagens de 1982 e suas variações em 2005. Tampouco
a relação entre Ringo e Inako/Yuki e Toru se enriquecem
por efeito desse exercício temporal anterior.
Os três movimentos que estruturam Coração, Batendo
no Escuro parecem ter, assim, existências particulares,
desconectadas entre si, muito embora a narrativa reivindique
o tempo inteiro que façamos a junção entre os mesmos.
Os sucessivos saltos e as constantes intromissões das
cenas de making of reforçam a descontinuidade,
mas daí não se cria nada além de certa frustração: nem
o filme super-8, nem sua refilmagem conquistam a adesão
do espectador. A descontinuidade não soma: deixa
no vazio aquilo que as cenas de making of só
fazem tornar ainda mais desinteressante. Esvaziadas,
as cenas que apontam para um tratamento poético das
imagens (a exploração dos amanheceres e das luzes noturnas,
os corpos nus dos jovens, a suspensão do movimento em
pleno gesto do ator e a descontinuidade na montagem)
perdem sua força, tornam-se recursos estilísticos que
servem não ao conjunto mas a um jogo quase maquinal
de procedimentos de efeito. Nem emoção, nem distanciamento.
Muitas vezes, tédio.
A exibição da filmografia de Shunichi Nagasaki no Brasil
(são doze filmes como diretor) talvez pudesse esclarecer,
confirmar ou dissipar os pontos críticos apontados aqui
a propósito de Coração, Batendo no Escuro.
Luís Alberto Rocha Melo
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