Os
filmes recentes de Claude Chabrol (ao menos desde A
Cor da Mentira) abandonaram por completo a preocupação
de ser sobre qualquer coisa além do prazer estético
que os pequenos jogos do cineasta proporcionam. O olhar
ácido sobre os hábitos da pequena burguesia francesa
permaneceu afiado como sempre, mas passou para segundo
plano diante da diversão que o cineasta encontra em
fazer pequenas variações sobre o material que ele revisitou
diversas vezes. Um filme de final de carreira de Chabrol
funciona como os últimos filmes de Howard Hawks: o cineasta
parece simplesmente estar marcando tempo, enquanto lança
mão de um maravilhoso pequeno detalhe atrás do outro.
Não surpreende, portanto, que diante de um tema maior
como o que encontra aqui – o caso Elf, famoso escândalo
político/financeiro francês de meados dos anos 90, que
restabeleceu a idéia de crime do colarinho branco no
imaginário do país – ele evite entrar pela porta dos
fundos, buscando desestabilizar o modelo habitual de
filme-denúncia até que o filme com tema maior termine
por se revelar indistinguível de qualquer outro Chabrol
maduro. A familiaridade que o cinéfilo francês tem com
o caso é usada não para dar ao filme uma impressão de
grande importância, mas, ao contrário, para permitir
que Chabrol elide por completo as preocupações com progressão
narrativa e se concentre nos pequenos detalhes que mais
lhe interessam.
Da investigação que a juíza Jeanne Charmant Killman
(Isabelle Huppert) lança sobre o esquema de corrupção
veremos apenas fragmentos: na maior parte do tempo,
Chabrol se contenta em passear pela periferia da trama.
Seu olhar para a construção de personagem e para as
menores situações é como sempre dos mais apurados. Pensemos,
por exemplo, na parada de corruptos que desfila diante
da juíza, todos eles com apenas uma ou duas características
específicas que ainda assim são o suficiente para que
Chabrol construa uma rica galeria de tipos. Ou então,
pensemos em algumas situações específicas, como as seqüências
entre a juíza e a juíza-assistente, que ela é obrigada
a aceitar a certa altura: pela mera linguagem corporal
de suas atrizes, Chabrol revela aqui todo o desenvolvimento
da relação entre as duas mulheres. Como nos filmes de
Hawks, A Comédia do Poder não consegue evitar
desvios e digressões sempre que arranja algo interessante
para observar. Há várias seqüências centradas na dupla
de guarda-costas que a juíza ganha depois de um acidente
suspeito; o gênio dessas seqüências está justamente
nelas parecerem pertencer a outro filme, a presença
física daquelas duas figuras por si só terminando por
provocar uma ruptura na lógica do filme – e quando o
cineasta permite que os personagens realizem algo, temos
excelentes passagens como na cena em que preparam café
para a juíza.
Quando Chabrol filma a juíza trabalhando – e como ela
mesma observa a certa altura em meio a uma discussão
conjugal, ela está sempre trabalhando –, consegue revelar
jogos de poder como poucos. A influência de Otto Preminger
aqui é inegável. A Comédia do Poder se assemelha
a Anatomia de um Crime, sobretudo na maneira
como iguala o rigor da mise en scène com as formas
que seus personagens usam para vencer as quedas de braço
a que estão constantemente sendo expostos. Quase todo
encontro (seja profissional, seja de trabalho) é transformado
numa disputa, que se encerra com alguma das partes levando
vantagem. Se os investigados abusaram do poder do estado
para seus próprios interesses, a juíza contra-ataca
ao mostrar-lhes quem manda ali (a opulência de Isabelle
Huppert foi poucas vezes canalizada para tão bom uso).
Por outro lado, quando divide espaço com seu sobrinho
puxa-saco (interpretado por um dos filhos de Chabrol,
num dos vários ótimos pequenos detalhes cômicos do filme),
vemos a juíza sucumbir à habilidade dele de dizer exatamente
a palavra certa para massagear o ego dela. Todas essas
diferentes formas de interações (que ainda incluem as
cenas da juíza com o marido e com os colegas de trabalho)
são tratadas por Claude Chabrol com a mesma precisão
de olhar, ao mesmo tempo em que não entram no caminho
do filme, que flutua com a mesma leveza de seus outros
trabalhos recentes.
Filipe Furtado
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