A COMÉDIA DO PODER
Claude Chabrol, L’Ivresse du Pouvoir, França, 2006

Os filmes recentes de Claude Chabrol (ao menos desde A Cor da Mentira) abandonaram por completo a preocupação de ser sobre qualquer coisa além do prazer estético que os pequenos jogos do cineasta proporcionam. O olhar ácido sobre os hábitos da pequena burguesia francesa permaneceu afiado como sempre, mas passou para segundo plano diante da diversão que o cineasta encontra em fazer pequenas variações sobre o material que ele revisitou diversas vezes. Um filme de final de carreira de Chabrol funciona como os últimos filmes de Howard Hawks: o cineasta parece simplesmente estar marcando tempo, enquanto lança mão de um maravilhoso pequeno detalhe atrás do outro.

Não surpreende, portanto, que diante de um tema maior como o que encontra aqui – o caso Elf, famoso escândalo político/financeiro francês de meados dos anos 90, que restabeleceu a idéia de crime do colarinho branco no imaginário do país – ele evite entrar pela porta dos fundos, buscando desestabilizar o modelo habitual de filme-denúncia até que o filme com tema maior termine por se revelar indistinguível de qualquer outro Chabrol maduro. A familiaridade que o cinéfilo francês tem com o caso é usada não para dar ao filme uma impressão de grande importância, mas, ao contrário, para permitir que Chabrol elide por completo as preocupações com progressão narrativa e se concentre nos pequenos detalhes que mais lhe interessam.

Da investigação que a juíza Jeanne Charmant Killman (Isabelle Huppert) lança sobre o esquema de corrupção veremos apenas fragmentos: na maior parte do tempo, Chabrol se contenta em passear pela periferia da trama. Seu olhar para a construção de personagem e para as menores situações é como sempre dos mais apurados. Pensemos, por exemplo, na parada de corruptos que desfila diante da juíza, todos eles com apenas uma ou duas características específicas que ainda assim são o suficiente para que Chabrol construa uma rica galeria de tipos. Ou então, pensemos em algumas situações específicas, como as seqüências entre a juíza e a juíza-assistente, que ela é obrigada a aceitar a certa altura: pela mera linguagem corporal de suas atrizes, Chabrol revela aqui todo o desenvolvimento da relação entre as duas mulheres. Como nos filmes de Hawks, A Comédia do Poder não consegue evitar desvios e digressões sempre que arranja algo interessante para observar. Há várias seqüências centradas na dupla de guarda-costas que a juíza ganha depois de um acidente suspeito; o gênio dessas seqüências está justamente nelas parecerem pertencer a outro filme, a presença física daquelas duas figuras por si só terminando por provocar uma ruptura na lógica do filme – e quando o cineasta permite que os personagens realizem algo, temos excelentes passagens como na cena em que preparam café para a juíza.

Quando Chabrol filma a juíza trabalhando – e como ela mesma observa a certa altura em meio a uma discussão conjugal, ela está sempre trabalhando –, consegue revelar jogos de poder como poucos. A influência de Otto Preminger aqui é inegável. A Comédia do Poder se assemelha a Anatomia de um Crime, sobretudo na maneira como iguala o rigor da mise en scène com as formas que seus personagens usam para vencer as quedas de braço a que estão constantemente sendo expostos. Quase todo encontro (seja profissional, seja de trabalho) é transformado numa disputa, que se encerra com alguma das partes levando vantagem. Se os investigados abusaram do poder do estado para seus próprios interesses, a juíza contra-ataca ao mostrar-lhes quem manda ali (a opulência de Isabelle Huppert foi poucas vezes canalizada para tão bom uso). Por outro lado, quando divide espaço com seu sobrinho puxa-saco (interpretado por um dos filhos de Chabrol, num dos vários ótimos pequenos detalhes cômicos do filme), vemos a juíza sucumbir à habilidade dele de dizer exatamente a palavra certa para massagear o ego dela. Todas essas diferentes formas de interações (que ainda incluem as cenas da juíza com o marido e com os colegas de trabalho) são tratadas por Claude Chabrol com a mesma precisão de olhar, ao mesmo tempo em que não entram no caminho do filme, que flutua com a mesma leveza de seus outros trabalhos recentes.


Filipe Furtado