UM CASAL PERFEITO
Nobuhiro Suwa, Un couple parfait, Japão/França, 2006

“Por metade chamo-te, por metade aparto-te de mim”

Inovar a discussão de relacionamento não é tarefa fácil na vida real, tampouco no cinema. Se dentro do próprio casamento, ou nos momentos que o antecedem, as constantes brigas entre casais são na maioria das vezes infrutíferas e repetitivas, talvez fosse tarefa da ficção (re)inventar histórias que partem da monotonia do cotidiano. Mas não é isso que faz Nobuhiro Suwa. Um Casal Perfeito, como já se pode descobrir desde o primeiro plano, está longe de ser perfeito. Longe se idealizarmos o que seria essa suposta perfeição: a do casal que não entra em conflito, que vive em paz, que é feliz. Mas o casal perfeito do diretor japonês – que mais parece francês, tamanha compreensão das idiossincrasias ocidentais – torna-se perfeito na medida de sua inconstância e da sua instabilidade. Idas e vindas, momentos de alegria e tristeza. O casal perfeito é aquele natural, que não foge dos estereótipos e nem se constrói em cima deles. Apenas é, com todos os defeitos a que tem direito.

A liberdade da mulher e o envolvimento emocional do homem são fatores atuais que modificam o comportamento e convívio na relação a dois. São elementos da contemporaneidade que certamente influenciam na vida conjugal. Explorar estes novos fatores de interferência na rotina não é o interesse de Suwa. Ciente desta nova configuração da estrutura familiar, ele a toma como base e investiga e observa o que realmente move um casal. Ora com olhar distanciado, ora com bastante aproximação, é na paixão pela natureza humana, com toda sua problemática, que Suwa direciona seu interesse. Mais do que fatores sociais ou de tradição de família, o que impulsiona Um Casal Perfeito é a crença de que a vida (a dois), apesar de seus contratempos, é possível. E que talento para demonstrá-la. Se François Ozon, com a mesma Valeria Bruni-Tedeschi, já havia mostrado em O Amor em 5 Tempos, contradizendo os que acreditavam no esgotamento da temática, ainda ser possível fazer um bom filme sobre o relacionamento homem-mulher, Nobuhiro Suwa vem corroborar a assertiva e provar que, para um bom diretor, não há tema que se esgote.

Os primeiros planos do filme apontam para um caminho obscuro. Uma opção arriscada de abordar as nuances da natureza humana. A câmera fixa durante os primeiros 40 minutos indica uma rigidez no posicionamento do diretor diante de seu objeto. Marie e Nicolas (brilhantemente interpretados por Valeria Bruni-Tedeschi e Bruno Todeschini) estão no carro e conversam com naturalidade e quase indiferença um ao outro. Se por um lado a ação passa desapercebida, por outro já se tem um indício de que a perfeição sugerida no título não é a que de fato esperávamos. O casal chega em casa e eles dormem em camas separadas. Nestes minutos inicias, ainda um tanto deslocados da narrativa (uma vez que não somos apresentados aos personagens, tampouco contextualizados no espaço-tempo), a mise-en-scène de Nobuhiro Suwa é toda construída num espaço sugerido, realçado pelo constante uso do fora da tela (tanto em imagem quanto no som). Enquadramentos irregulares, objetos de interferência tanto entre o casal quanto da objetiva da câmera e seu objeto, somos convocados a visualizar um espaço não presente. A escolha do diretor não é arbitrária. O tipo de estranhamento condiz com a posição dos cônjuges e do espectador, todos conturbados com a situação que se estabelece. Se em momentos o quadro é construído geometricamente, no segundo seguinte a movimentação interna do plano (dos personagens) desestrutura a regularidade e objetividade da cena, deixando personagens com cabeças cortadas, perfis ao meio, pedaços de corpos fora de foco “atrapalhando” a câmera e, conseqüentemente, o espectador.

Ainda nas seqüências inicias, enquanto o casal janta com um segundo casal de amigos, a estrutura de linguagem é a mesma. Câmera fixa, planos longos, movimentação interna dentro do plano. Mas a atenção está voltada para Marie. Seja na iluminação ou no som, ou mesmo na posição centralizada no quadro, é ela quem brilha e domina o espaço. Não que tomemos partido ou nos posicionemos favoráveis (ou contra) a protagonista. Mas compartilhamos das suas sensações. O som que ouvimos não é o som diegético do plano, é o ponto de escuta da personagem. E se isso não está evidenciado ainda, rapidamente há um corte repentino, e num close-up o rosto de Marie preenche o quadro. É o primeiro momento em que somos tomados de assalto. Do distanciamento inicial, quase frio, Suwa nos reposiciona e nasce uma empatia espontânea com a personagem. A trilha sonora – um piano atonal, tão estranho quanto a estrutura de quadros – aparece valorizando a ação e chamando nossa atenção para o lado sentimental e individual presente nos personagens de Suwa. É quase um momento de humanização. Belo e surpreendente.

Um novo momento de surpresa e comoção aparece na caminhada de Marie pelo museu Rodin. As esculturas do artista tornam-se alvo do olhar do cineasta, da personagem e do espectador. A generosidade de Suwa permite a repartição de sensações. A câmera, que por instantes deixa de ser fixa, acompanha a personagem com tamanha sutileza que nos emociona incorporando-nos definitivamente na história do casal (ainda que até agora apenas ela esteja presente). Enquanto olha as esculturas, ouve uma professora recitar para seus alunos trechos de poemas de Rainer Maria Rilke escritos e dedicados para o amigo Rodin. Uma vez mais, o som é descolado da imagem e a voz da professora preenche a cena quase como uma narração off. O aproveitamento do fora de quadro é feito subvertendo as regras do cinema clássico. Para a paixão, não importa o realismo diegético, e o espaço se abre para Rodin, Rilke e Suwa.

Mas em Um Casal Perfeito não é apenas ela que ocupa espaço. Com o mesmo cuidado, o diretor Suwa parte para o outro lado, sem traçar dicotomias de um casal, abrindo caminho para as idiossincrasias naturais do homem. Um envolvimento sugestivo com uma garota que conhece em um bar deixa no ar o que de fato aconteceu. Tão pouco importa. Nobuhiro Suwa compreende que para um homem, ou para aquele homem, não faz diferença ter ou não uma noite de sexo com uma garota. Ao contrário de quando sugere um envolvimento/ relacionamento de Marie com um suposto ex-namorado, não há uma preocupação exigente com o desencadeamento da situação. Como todo o filme, o meio (durante) está elíptico e os espaços, tempos e situações são apenas sugeridos – para ele e para ela. Não sabemos de onde Marie conhece, nem quem é, o sujeito que reencontra. Mas sabemos que diferente de Nicolas, o encontro dela a balançou a ponto de colocar em cheque seu casamento. Suwa prova que sabe diferenciar um homem de uma mulher. Seja no espaço sugerido ou no espaço que ocupam no quadro. Semelhantes e ao mesmo tempo opostos, Bruno e Marie são um casal e duas pessoas.

Dentro de uma geometria que se estabelece ao longo do filme, com a composição de quadros traçados por linhas, colunas e figuras, o que mais vale é a desestruturação. Portas que se fecham separando fisicamente o casal – numa belíssima seqüência – são não mais que barreiras físicas, tão rígidas quanto a regularidade do quadro. Do mesmo suporte, os contrapontos são evidenciados. Se o casal já não divide a mesma cama e a distribuição da imagem não é suficiente para realçar o quão distante estão em determinado momento, fecha-se a porta, impõe-se a barreira intransponível e ficamos apenas, sem ver nem um nem outro, com a sugestão de comportamento. Suas vozes abafadas perdem potência. É o momento máximo do distanciamento do casal.

Mas numa narrativa repleta de idas e vindas, somos, já no final do filme, levados a surpreendente seqüência em que lentamente o casal vai se envolvendo, ainda com uma forte resistência dela, e se entregando um ao outro. Marie está deitada na cama e Nicolas começa a despi-la. Quando parece que o sexo vem consumar o amor que ainda existe entre eles, num momento em que as respirações estão ofegantes e ela parece de fato se entregar, ele pára. E nós paramos juntos. Não é mais possível. Aquilo já não existe e não há porque levar adiante um impulso sexual gratuitamente. Em poucos instantes o casal passa do tesão ao esgotamento. Os corpos param. É o fim.

Mas Nobuhiro Suwa está falando de um relacionamento entre homem-mulher. Que fim é esse? Ele de fato existe? Marie está na estação de trem e parte para Bordeaux supostamente em busca do antigo (e recente) namorado. Com a cumplicidade que caracterizou o casal ao longo da narrativa – evidenciada pelas discussões, que ainda que ferissem um ou outro, sempre era realizada com cuidado e carinho – ele acompanha a (ex-)mulher. Coloca suas malas dentro do vagão do trem e se despede. O espaço agora perde a geometria que o caracterizou desde então. As linhas que formavam figuras definidas, demonstrando tamanha rigidez, apontam agora para o infinito. Os trilhos do trem levam o olhar para o longe, para o incerto. Surge a perspectiva. E o movimento também. Pois, enquanto o casal se despede, sem que possamos ouvi-los, o trem começa lentamente a partir. A mala e as roupas de Marie se vão. Serão necessárias novas vestimentas para enfrentar mais um recomeço. Pois o que sobra é um casal, com todas suas imperfeições, junto. Como no poema de Rilke, são metades que nem sempre se completam, mas sempre se complementam, sob o risco iminente da perda. Como no título do livro, escrito pelo poeta baseado em figuras de Rodin, são Momentos de Paixão.

Raphael Mesquita

 

 





Valeria Bruni-Tedeschi em Um Casal Perfeito de Nobuhiro Suwa