“Por
metade chamo-te, por metade aparto-te de mim”
Inovar a discussão de relacionamento não é tarefa fácil
na vida real, tampouco no cinema. Se dentro do próprio
casamento, ou nos momentos que o antecedem, as constantes
brigas entre casais são na maioria das vezes infrutíferas
e repetitivas, talvez fosse tarefa da ficção (re)inventar
histórias que partem da monotonia do cotidiano. Mas
não é isso que faz Nobuhiro Suwa. Um Casal Perfeito,
como já se pode descobrir desde o primeiro plano, está
longe de ser perfeito. Longe se idealizarmos o que seria
essa suposta perfeição: a do casal que não entra em
conflito, que vive em paz, que é feliz. Mas o casal
perfeito do diretor japonês – que mais parece francês,
tamanha compreensão das idiossincrasias ocidentais –
torna-se perfeito na medida de sua inconstância e da
sua instabilidade. Idas e vindas, momentos de alegria
e tristeza. O casal perfeito é aquele natural, que não
foge dos estereótipos e nem se constrói em cima deles.
Apenas é, com todos os defeitos a que tem direito.
A liberdade da mulher e o envolvimento emocional do
homem são fatores atuais que modificam o comportamento
e convívio na relação a dois. São elementos da contemporaneidade
que certamente influenciam na vida conjugal. Explorar
estes novos fatores de interferência na rotina não é
o interesse de Suwa. Ciente desta nova configuração
da estrutura familiar, ele a toma como base e investiga
e observa o que realmente move um casal. Ora com olhar
distanciado, ora com bastante aproximação, é na paixão
pela natureza humana, com toda sua problemática, que
Suwa direciona seu interesse. Mais do que fatores sociais
ou de tradição de família, o que impulsiona Um Casal
Perfeito é a crença de que a vida (a dois), apesar
de seus contratempos, é possível. E que talento para
demonstrá-la. Se François Ozon, com a mesma Valeria
Bruni-Tedeschi, já havia mostrado em O Amor em 5
Tempos, contradizendo os que acreditavam no esgotamento
da temática, ainda ser possível fazer um bom filme sobre
o relacionamento homem-mulher, Nobuhiro Suwa vem corroborar
a assertiva e provar que, para um bom diretor, não há
tema que se esgote.
Os primeiros planos do filme apontam para um caminho
obscuro. Uma opção arriscada de abordar as nuances da
natureza humana. A câmera fixa durante os primeiros
40 minutos indica uma rigidez no posicionamento do diretor
diante de seu objeto. Marie e Nicolas (brilhantemente
interpretados por Valeria Bruni-Tedeschi e Bruno Todeschini)
estão no carro e conversam com naturalidade e quase
indiferença um ao outro. Se por um lado a ação passa
desapercebida, por outro já se tem um indício de que
a perfeição sugerida no título não é a que de fato esperávamos.
O casal chega em casa e eles dormem em camas separadas.
Nestes minutos inicias, ainda um tanto deslocados da
narrativa (uma vez que não somos apresentados aos personagens,
tampouco contextualizados no espaço-tempo), a mise-en-scène
de Nobuhiro Suwa é toda construída num espaço sugerido,
realçado pelo constante uso do fora da tela (tanto em
imagem quanto no som). Enquadramentos irregulares, objetos
de interferência tanto entre o casal quanto da objetiva
da câmera e seu objeto, somos convocados a visualizar
um espaço não presente. A escolha do diretor não é arbitrária.
O tipo de estranhamento condiz com a posição dos cônjuges
e do espectador, todos conturbados com a situação que
se estabelece. Se em momentos o quadro é construído
geometricamente, no segundo seguinte a movimentação
interna do plano (dos personagens) desestrutura a regularidade
e objetividade da cena, deixando personagens com cabeças
cortadas, perfis ao meio, pedaços de corpos fora de
foco “atrapalhando” a câmera e, conseqüentemente, o
espectador.
Ainda nas seqüências inicias, enquanto o casal janta
com um segundo casal de amigos, a estrutura de linguagem
é a mesma. Câmera fixa, planos longos, movimentação
interna dentro do plano. Mas a atenção está voltada
para Marie. Seja na iluminação ou no som, ou mesmo na
posição centralizada no quadro, é ela quem brilha e
domina o espaço. Não que tomemos partido ou nos posicionemos
favoráveis (ou contra) a protagonista. Mas compartilhamos
das suas sensações. O som que ouvimos não é o som diegético
do plano, é o ponto de escuta da personagem. E se isso
não está evidenciado ainda, rapidamente há um corte
repentino, e num close-up o rosto de Marie preenche
o quadro. É o primeiro momento em que somos tomados
de assalto. Do distanciamento inicial, quase frio, Suwa
nos reposiciona e nasce uma empatia espontânea com a
personagem. A trilha sonora – um piano atonal, tão estranho
quanto a estrutura de quadros – aparece valorizando
a ação e chamando nossa atenção para o lado sentimental
e individual presente nos personagens de Suwa. É quase
um momento de humanização. Belo e surpreendente.
Um novo momento de surpresa e comoção aparece na caminhada
de Marie pelo museu Rodin. As esculturas do artista
tornam-se alvo do olhar do cineasta, da personagem e
do espectador. A generosidade de Suwa permite a repartição
de sensações. A câmera, que por instantes deixa de ser
fixa, acompanha a personagem com tamanha sutileza que
nos emociona incorporando-nos definitivamente na história
do casal (ainda que até agora apenas ela esteja presente).
Enquanto olha as esculturas, ouve uma professora recitar
para seus alunos trechos de poemas de Rainer Maria Rilke
escritos e dedicados para o amigo Rodin. Uma vez mais,
o som é descolado da imagem e a voz da professora preenche
a cena quase como uma narração off. O aproveitamento
do fora de quadro é feito subvertendo as regras do cinema
clássico. Para a paixão, não importa o realismo diegético,
e o espaço se abre para Rodin, Rilke e Suwa.
Mas em Um Casal Perfeito não é apenas ela que
ocupa espaço. Com o mesmo cuidado, o diretor Suwa parte
para o outro lado, sem traçar dicotomias de um casal,
abrindo caminho para as idiossincrasias naturais do
homem. Um envolvimento sugestivo com uma garota que
conhece em um bar deixa no ar o que de fato aconteceu.
Tão pouco importa. Nobuhiro Suwa compreende que para
um homem, ou para aquele homem, não faz diferença ter
ou não uma noite de sexo com uma garota. Ao contrário
de quando sugere um envolvimento/ relacionamento de
Marie com um suposto ex-namorado, não há uma preocupação
exigente com o desencadeamento da situação. Como todo
o filme, o meio (durante) está elíptico e os espaços,
tempos e situações são apenas sugeridos – para ele e
para ela. Não sabemos de onde Marie conhece, nem quem
é, o sujeito que reencontra. Mas sabemos que diferente
de Nicolas, o encontro dela a balançou a ponto de colocar
em cheque seu casamento. Suwa prova que sabe diferenciar
um homem de uma mulher. Seja no espaço sugerido ou no
espaço que ocupam no quadro. Semelhantes e ao mesmo
tempo opostos, Bruno e Marie são um casal e duas pessoas.
Dentro de uma geometria que se estabelece ao longo do
filme, com a composição de quadros traçados por linhas,
colunas e figuras, o que mais vale é a desestruturação.
Portas que se fecham separando fisicamente o casal –
numa belíssima seqüência – são não mais que barreiras
físicas, tão rígidas quanto a regularidade do quadro.
Do mesmo suporte, os contrapontos são evidenciados.
Se o casal já não divide a mesma cama e a distribuição
da imagem não é suficiente para realçar o quão distante
estão em determinado momento, fecha-se a porta, impõe-se
a barreira intransponível e ficamos apenas, sem ver
nem um nem outro, com a sugestão de comportamento. Suas
vozes abafadas perdem potência. É o momento máximo do
distanciamento do casal.
Mas numa narrativa repleta de idas e vindas, somos,
já no final do filme, levados a surpreendente seqüência
em que lentamente o casal vai se envolvendo, ainda com
uma forte resistência dela, e se entregando um ao outro.
Marie está deitada na cama e Nicolas começa a despi-la.
Quando parece que o sexo vem consumar o amor que ainda
existe entre eles, num momento em que as respirações
estão ofegantes e ela parece de fato se entregar, ele
pára. E nós paramos juntos. Não é mais possível. Aquilo
já não existe e não há porque levar adiante um impulso
sexual gratuitamente. Em poucos instantes o casal passa
do tesão ao esgotamento. Os corpos param. É o fim.
Mas Nobuhiro Suwa está falando de um relacionamento
entre homem-mulher. Que fim é esse? Ele de fato existe?
Marie está na estação de trem e parte para Bordeaux
supostamente em busca do antigo (e recente) namorado.
Com a cumplicidade que caracterizou o casal ao longo
da narrativa – evidenciada pelas discussões, que ainda
que ferissem um ou outro, sempre era realizada com cuidado
e carinho – ele acompanha a (ex-)mulher. Coloca suas
malas dentro do vagão do trem e se despede. O espaço
agora perde a geometria que o caracterizou desde então.
As linhas que formavam figuras definidas, demonstrando
tamanha rigidez, apontam agora para o infinito. Os trilhos
do trem levam o olhar para o longe, para o incerto.
Surge a perspectiva. E o movimento também. Pois, enquanto
o casal se despede, sem que possamos ouvi-los, o trem
começa lentamente a partir. A mala e as roupas de Marie
se vão. Serão necessárias novas vestimentas para enfrentar
mais um recomeço. Pois o que sobra é um casal, com todas
suas imperfeições, junto. Como no poema de Rilke, são
metades que nem sempre se completam, mas sempre se complementam,
sob o risco iminente da perda. Como no título do livro,
escrito pelo poeta baseado em figuras de Rodin, são
Momentos de Paixão.
Raphael Mesquita
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