Bamako
é a capital e a principal cidade do Mali. Em
seu mais recente filme, um julgamento dos povos africanos
contra as instituições financeiras mundiais,
Abderrahmane Sissako decidiu atribuir ao título
o nome da cidade, da mesma forma que os palcos das reuniões
do G8 ganham seu nome a partir das cidades em que as
reuniões se dão: Praga, Seattle, Gênova.
Há aí uma fina ironia que pontua todo
o filme. Se é impossível que no mundo
real as sociedades exploradas se reunam para realizar
um verdadeiro processo contra as atividades do Banco
Mundial e do FMI, o jeito é utilizar a ficção
como espaço simbólico para dar voz àqueles
que não a tem, para trazer à tona um tipo
de debate que só existe em alguns pequenos círculos,
ainda que diga respeito a questões fundamentais
da vida dos países subdesenvolvidos, especialmente
os africanos. Mas um tal processo, feito na ficção
e não na realidade, só poderia ter efeitos
precários, ficcionais, simbólicos. Poderia
então um filme que encena esse julgamento levar-se
a sério demais, acreditando que ele vai estender
suas conseqüências ao mundo real? A essa
pergunta, Sissako vai responder com uma negativa. Pois
ao encenar esse processo, o diretor elabora uma série
de estratégias que insistem em relativizar, minimizar,
no limite até desqualificar a validade prática
ou mesmo a seriedade do processo: ele não ocorre
num tribunal asséptico em que se desenrola o
circo da perfeita mise-en-scène da aparência
de justiça e isenção (cf. Find
Me Guilty), mas num quintal freqüentado por
bodes, onde as mulheres tingem tecidos, onde os moradores
passam em frente à mesa dos juizes, onde, enfim,
se reproduz um microcosmo que evoca e evidencia a própria
impertinência de se julgar, de baixo (no poder,
na economia e até no hemisfério), aqueles
que estão por cima.
Bamako toca em uma profunda questão no
que diz respeito aos poderes da ficção
e sua relação com o mundo. Grande parte
dos filmes engajados trabalha freqüentemente na
chave da reação (no sentido nietzschiano
do termo), da denúncia das injustiças,
na reconstituição de acontecimentos, em
toda uma estrutura que geralmente denota a falência
da ficção em prol de um verismo desanimador.
Nada disso em Abderrahmane Sissako, nada disso em Bamako:
vemos aqui uma verdadeira prova de resistência,
de confiança nos poderes da ficção
não só para chamar a atenção
daquilo que impede de viver (a fome, a pobreza, a privatização,
a impotência diante dos efeitos da globalização
nos países pobres), mas principalmente na vida
que existe e persiste ao largo de tudo isso, na beleza
de um sorriso ou de um canto que brota mesmo na penúria.
Essa vitória funciona tanto no poder da ficção
em relação aos problemas do mundo quanto
no poder da vida em relação aos poderes
que acossam e oprimem o povo africano. Ao fazer um somatório
das mazelas que assolam os países da África,
Bamako consegue inverter a lógica do tabuleiro
e nos dá um verdadeiro testemunho sobre aqueles
que teimam em insistir vivendo. Essa operação
de subversão é algo que apenas muito poucos
conseguem realizar.
Quando falamos de julgamento, ele deve ser tomado em
sentido literal: temos os juizes, advogados de acusação,
defensores, testemunhas. O falatório é
geral, os discursos são inflamados, assistimos
a verdadeiros espetáculos de oratória,
verdadeiras trocas de testemunhos e argumentos de ambos
os lados (assim como de fato os advogados são
verdadeiros advogados e as testemunhas são de
fato testemunhas; além disso, muito do próprio
julgamento aconteceu com intervenções
apenas pontuais por parte do diretor). É claro
que o filme está do lado dos povos africanos
e se utiliza de inúmeras estratégias,
muitas vezes hilárias como um bode que
persegue o advogado Rappaport , para ironizar
as razões das instituições financeiras
mundiais, mas ao mesmo tempo ele deixa entrever que
a discussão é muito mais complexa do que
a simples culpabilização dos organismos
mundiais. Qual é a parte de responsabilidade
da própria África em seu desenvolvimento?
A essa pergunta, decisiva no filme, várias respostas
conflitantes são dadas, e Sissako tem a habilidade
de não fazer refutar ponto a ponto as respostas
dos advogados pró-G8/FMI/Banco Mundial, a habilidade
de fazer de seu filme mais um terreno de questionamentos
e confrontos do que o espaço para uma resolução
programática e didática ao problema. Não
à toa, não veremos o veredito nem seus
efeitos. É como se ele jamais tivesse existido,
tanto porque o juiz não o declara quanto porque
a realidade não pode ser modificada a partir
de canetadas reais, que dirá ficcionais. Não
à toa, no filme-dentro-do-filme Death in Timbuktu,
que as crianças assistem na televisão,
tanto os brancos quanto os negros assassinam a população.
A partilha das responsabilidades não se dá
de forma unívoca nem esquemática.
Em tanto falatório, a grande força da
vida se dá paradoxalmente a partir dos momentos
de silêncio ou da boca que se abre mas não
articula um discurso. Abderrahmane Sissako, já
sabíamos de seus filmes anteriores, é
um verdadeiro poeta lacônico, um artista que faz
surgir o humor e a emoção a partir de
jogos muito delicados de enquadramento, gestos ou ações
minimalistas ou simples deslocamentos de posição.
Num dado momento, vemos os advogados de acusação
e de defesa falando em seus telefones celulares, em
frente a um muro, enquanto do outro lado do muro vemos
apenas três cabeças negras, do lado de
fora, tentando acompanhar o processo. A cena sozinha
já "fala" muito sobre a relação
dentro/fora, inclusão/exclusão, em que
o circo da globalização e da comunicação
todos-todos revela sua face monstruosa ao conectar alguns
com o mundo todo e ao mesmo tempo impedir que alguém
freqüente o quintal de seu vizinho. Essa própria
partilha excludente se revela no próprio espaço
do julgamento, onde alguns podem entrar e outros são
barrados. O próprio guarda do portão,
com seus óculos escuros e seu laconismo particular,
serve como um perfeito bobo-da-corte, enquanto crianças
vestidas com as camisas de Batistuta ou Kaká
tentam assistir do lado de fora. Mas se essa poesia
frágil serve para evidenciar as injustiças,
ela também serve para criar beleza a partir da
exuberância de um canto, o de Mélé,
cantora de cabaré, ou o testemunho cantado de
Zegué Bamba, momento pungente e mais emocionante
do filme que, mesmo sem palavras, revela em sua voz
todo o sofrimento de um ancião que tem necessidade
de extrair de seu corpo algo que testemunhe a dor de
sua vida.
Se Bamako encanta tanto, é porque ele
se constrói ali onde não se espera que
exista cinema. Sissako corre todos os riscos, todos
os perigos de não fazer um filme "cinematográfico":
as imagens do julgamento são por vezes lavadas,
muitos momentos são apenas o registro de discursos
(dir-se-ia "processo filmado" como se fala
"teatro filmado" para os filmes que encenam
peças teatrais sem criar um dinamismo propriamente
cinematográfico para filmá-las) e o próprio
tema do filme extravasa a ficção e se
dirige ao mundo sem o filtro da representação.
Abderrahmane Sissako, como Elia Suleiman em Intervenção
Divina (uma clara influência, uma vez que
o próprio Suleiman é um dos personagens
de Death in Timbuktu), Manoel de Oliveira em
Um Filme Falado ou mais recentemente Nanni Moretti
com O Crocodilo, amplia pronunciadamente o que
André Bazin quis dizer com a expressão
"cinema impuro", e ao mesmo tempo realizam
à perfeição o ideal baziniano do
cinema como o véu de Verônica do mundo1.
Extrema porosidade da ficção em sua relação
com o mundo, afrontosa relação com a ficção
que não coloca o mundo entre parênteses
mas que se cria a partir dele, em contigüidade
com ele. Diante da penúria, o que Bamako realiza
não é o teatro da ficção
impossível, e sim a crença de que a ficção
aquece, estimula e constrói um mundo. O filme
não termina com o fim do processo, mas com uma
morte, o suicídio de Chaka, e seu velório.
A esperança não é fácil,
mas enquanto um morre (e muitos morrem, evidentemente,
para fora do microcosmo que o filme constrói),
muitos ainda vivem, e ainda que as expectativas de se
viver quando tudo impede sejam aflitivas, ainda é
necessário insistir vivendo, necessário
insistir filmando (como faz Falai nos últimos
planos do filme). Bamako está intimamente
imbuído da necessidade dessa insistência,
e comove pela veemência de sua aposta, ao mesmo
tempo cega e clarividente, ao mesmo tempo muda e eloqüente,
ao mesmo tempo irreverente e séria, ao mesmo
tempo lacônica e tagarela. Um grande momento de
cinema.
Ruy Gardnier
1. Cf., respectivamente,
os artigos "Por um cinema impuro", que diz
respeito mais explicitamente à relação
do cinema com as outras artes, e "O cinema e a
exploração", ambos presentes em O
Cinema, Ed. Brasiliense, 1991.
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