BAMAKO
Abderrahmane Sissako, Bamako, Mali/França/EUA, 2006

Bamako é a capital e a principal cidade do Mali. Em seu mais recente filme, um julgamento dos povos africanos contra as instituições financeiras mundiais, Abderrahmane Sissako decidiu atribuir ao título o nome da cidade, da mesma forma que os palcos das reuniões do G8 ganham seu nome a partir das cidades em que as reuniões se dão: Praga, Seattle, Gênova. Há aí uma fina ironia que pontua todo o filme. Se é impossível que no mundo real as sociedades exploradas se reunam para realizar um verdadeiro processo contra as atividades do Banco Mundial e do FMI, o jeito é utilizar a ficção como espaço simbólico para dar voz àqueles que não a tem, para trazer à tona um tipo de debate que só existe em alguns pequenos círculos, ainda que diga respeito a questões fundamentais da vida dos países subdesenvolvidos, especialmente os africanos. Mas um tal processo, feito na ficção e não na realidade, só poderia ter efeitos precários, ficcionais, simbólicos. Poderia então um filme que encena esse julgamento levar-se a sério demais, acreditando que ele vai estender suas conseqüências ao mundo real? A essa pergunta, Sissako vai responder com uma negativa. Pois ao encenar esse processo, o diretor elabora uma série de estratégias que insistem em relativizar, minimizar, no limite até desqualificar a validade prática ou mesmo a seriedade do processo: ele não ocorre num tribunal asséptico em que se desenrola o circo da perfeita mise-en-scène da aparência de justiça e isenção (cf. Find Me Guilty), mas num quintal freqüentado por bodes, onde as mulheres tingem tecidos, onde os moradores passam em frente à mesa dos juizes, onde, enfim, se reproduz um microcosmo que evoca e evidencia a própria impertinência de se julgar, de baixo (no poder, na economia e até no hemisfério), aqueles que estão por cima.

Bamako toca em uma profunda questão no que diz respeito aos poderes da ficção e sua relação com o mundo. Grande parte dos filmes engajados trabalha freqüentemente na chave da reação (no sentido nietzschiano do termo), da denúncia das injustiças, na reconstituição de acontecimentos, em toda uma estrutura que geralmente denota a falência da ficção em prol de um verismo desanimador. Nada disso em Abderrahmane Sissako, nada disso em Bamako: vemos aqui uma verdadeira prova de resistência, de confiança nos poderes da ficção não só para chamar a atenção daquilo que impede de viver (a fome, a pobreza, a privatização, a impotência diante dos efeitos da globalização nos países pobres), mas principalmente na vida que existe e persiste ao largo de tudo isso, na beleza de um sorriso ou de um canto que brota mesmo na penúria. Essa vitória funciona tanto no poder da ficção em relação aos problemas do mundo quanto no poder da vida em relação aos poderes que acossam e oprimem o povo africano. Ao fazer um somatório das mazelas que assolam os países da África, Bamako consegue inverter a lógica do tabuleiro e nos dá um verdadeiro testemunho sobre aqueles que teimam em insistir vivendo. Essa operação de subversão é algo que apenas muito poucos conseguem realizar.

Quando falamos de julgamento, ele deve ser tomado em sentido literal: temos os juizes, advogados de acusação, defensores, testemunhas. O falatório é geral, os discursos são inflamados, assistimos a verdadeiros espetáculos de oratória, verdadeiras trocas de testemunhos e argumentos de ambos os lados (assim como de fato os advogados são verdadeiros advogados e as testemunhas são de fato testemunhas; além disso, muito do próprio julgamento aconteceu com intervenções apenas pontuais por parte do diretor). É claro que o filme está do lado dos povos africanos e se utiliza de inúmeras estratégias, muitas vezes hilárias – como um bode que persegue o advogado Rappaport –, para ironizar as razões das instituições financeiras mundiais, mas ao mesmo tempo ele deixa entrever que a discussão é muito mais complexa do que a simples culpabilização dos organismos mundiais. Qual é a parte de responsabilidade da própria África em seu desenvolvimento? A essa pergunta, decisiva no filme, várias respostas conflitantes são dadas, e Sissako tem a habilidade de não fazer refutar ponto a ponto as respostas dos advogados pró-G8/FMI/Banco Mundial, a habilidade de fazer de seu filme mais um terreno de questionamentos e confrontos do que o espaço para uma resolução programática e didática ao problema. Não à toa, não veremos o veredito nem seus efeitos. É como se ele jamais tivesse existido, tanto porque o juiz não o declara quanto porque a realidade não pode ser modificada a partir de canetadas reais, que dirá ficcionais. Não à toa, no filme-dentro-do-filme Death in Timbuktu, que as crianças assistem na televisão, tanto os brancos quanto os negros assassinam a população. A partilha das responsabilidades não se dá de forma unívoca nem esquemática.

Em tanto falatório, a grande força da vida se dá paradoxalmente a partir dos momentos de silêncio ou da boca que se abre mas não articula um discurso. Abderrahmane Sissako, já sabíamos de seus filmes anteriores, é um verdadeiro poeta lacônico, um artista que faz surgir o humor e a emoção a partir de jogos muito delicados de enquadramento, gestos ou ações minimalistas ou simples deslocamentos de posição. Num dado momento, vemos os advogados de acusação e de defesa falando em seus telefones celulares, em frente a um muro, enquanto do outro lado do muro vemos apenas três cabeças negras, do lado de fora, tentando acompanhar o processo. A cena sozinha já "fala" muito sobre a relação dentro/fora, inclusão/exclusão, em que o circo da globalização e da comunicação todos-todos revela sua face monstruosa ao conectar alguns com o mundo todo e ao mesmo tempo impedir que alguém freqüente o quintal de seu vizinho. Essa própria partilha excludente se revela no próprio espaço do julgamento, onde alguns podem entrar e outros são barrados. O próprio guarda do portão, com seus óculos escuros e seu laconismo particular, serve como um perfeito bobo-da-corte, enquanto crianças vestidas com as camisas de Batistuta ou Kaká tentam assistir do lado de fora. Mas se essa poesia frágil serve para evidenciar as injustiças, ela também serve para criar beleza a partir da exuberância de um canto, o de Mélé, cantora de cabaré, ou o testemunho cantado de Zegué Bamba, momento pungente e mais emocionante do filme que, mesmo sem palavras, revela em sua voz todo o sofrimento de um ancião que tem necessidade de extrair de seu corpo algo que testemunhe a dor de sua vida.

Se Bamako encanta tanto, é porque ele se constrói ali onde não se espera que exista cinema. Sissako corre todos os riscos, todos os perigos de não fazer um filme "cinematográfico": as imagens do julgamento são por vezes lavadas, muitos momentos são apenas o registro de discursos (dir-se-ia "processo filmado" como se fala "teatro filmado" para os filmes que encenam peças teatrais sem criar um dinamismo propriamente cinematográfico para filmá-las) e o próprio tema do filme extravasa a ficção e se dirige ao mundo sem o filtro da representação. Abderrahmane Sissako, como Elia Suleiman em Intervenção Divina (uma clara influência, uma vez que o próprio Suleiman é um dos personagens de Death in Timbuktu), Manoel de Oliveira em Um Filme Falado ou mais recentemente Nanni Moretti com O Crocodilo, amplia pronunciadamente o que André Bazin quis dizer com a expressão "cinema impuro", e ao mesmo tempo realizam à perfeição o ideal baziniano do cinema como o véu de Verônica do mundo1.

Extrema porosidade da ficção em sua relação com o mundo, afrontosa relação com a ficção que não coloca o mundo entre parênteses mas que se cria a partir dele, em contigüidade com ele. Diante da penúria, o que Bamako realiza não é o teatro da ficção impossível, e sim a crença de que a ficção aquece, estimula e constrói um mundo. O filme não termina com o fim do processo, mas com uma morte, o suicídio de Chaka, e seu velório. A esperança não é fácil, mas enquanto um morre (e muitos morrem, evidentemente, para fora do microcosmo que o filme constrói), muitos ainda vivem, e ainda que as expectativas de se viver quando tudo impede sejam aflitivas, ainda é necessário insistir vivendo, necessário insistir filmando (como faz Falai nos últimos planos do filme). Bamako está intimamente imbuído da necessidade dessa insistência, e comove pela veemência de sua aposta, ao mesmo tempo cega e clarividente, ao mesmo tempo muda e eloqüente, ao mesmo tempo irreverente e séria, ao mesmo tempo lacônica e tagarela. Um grande momento de cinema.

Ruy Gardnier

1. Cf., respectivamente, os artigos "Por um cinema impuro", que diz respeito mais explicitamente à relação do cinema com as outras artes, e "O cinema e a exploração", ambos presentes em O Cinema, Ed. Brasiliense, 1991.

 






Instantes de audiência...


...e instantes de insistência.
(Bamako de Abderrahmane Sissako)