ATOS DOS HOMENS
Kiko Goiffman, Brasil, 2006

O que parece ser a tônica de Atos dos Homens é a urgência. Um pouco por isso o tom de reportagem, a assumida aparência de um filme “que está sendo feito” à medida que se desenrola diante do espectador. O diálogo entre autor/público é, aliás, bastante direto. As locuções inicial e final nos intimam a encarar o filme como um instrumento de reflexão sobre a violência, tomando como ponto de partida as chacinas ocorridas em 2005 nas cidades de Queimados e de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense (RJ). Somos chamados a vivenciar alguns fatos que tendem a se apagar na memória coletiva, como tantos outros. Os letreiros iniciais, em cinzentos contornos tênues sobre um fundo agressivamente branco, indicam o objetivo central do documentário: denunciar o crime, não deixar que suas marcas desapareçam por completo.

Em seguida, o corte de um plano de uma asa de avião sobrevoando a Baixada Fluminense para um travelling sobre uma carroça puxada por um cavalo, numa rua pobre de Queimados, evidencia o contraste, a desigualdade. É uma passagem que choca pelo inusitado e que nos faz esperar por um filme repleto de aproximações pouco usuais de realidades diversas e de uma observação atenta, interessada em mergulhar na vida dos moradores dos municípios da Baixada. É verdade que em algumas seqüências (como as que mostram uma briga na rádio comunitária; dois jovens que cantam e tocam guitarra; e um policial aposentado que prepara um churrasco no quintal de sua casa) apresentam com maior ou menor propriedade essa intenção de captar a ação dentro de um fluxo temporal diverso do que encontramos nas reportagens documentais. Mas são momentos que não têm continuidade ao longo de Atos dos Homens. O filme de Kiko Goiffman rapidamente se volta para a montagem dos depoimentos, divididos em dois grandes “blocos”: na primeira parte, os personagens falam sobre o que é viver em Nova Iguaçu e em Queimados, alguns deles preocupados em revelar as vantagens e as qualidades de seus respectivos municípios. Num segundo momento, o filme concentra-se nas chacinas, tomando ainda como base os depoimentos. Como uma espécie de satélite em torno da narrativa, acompanhamos um profeta de longas barbas brancas, a anunciar aos gritos a volta de Jesus Cristo.

São bem poucas as pausas, os “respiros” entre os depoimentos. Esse excesso de falas marca o posicionamento político de Atos dos Homens. Falar é trazer à tona as imagens. Mas essa operação não deixa de ser irônica, e serve ao propósito da denúncia. Fala-se, mas não se mostra. Ou melhor, mostra-se apenas uma parte daquilo que se quer mostrar. Desse modo, a sensação que fica é a do medo. Os personagens que falam para a câmera sentem medo. A população dos municípios documentados convive com o medo. E o autor do filme – logo na seqüência de abertura do filme – confessa o medo que sentiu ao mergulhar na realização do filme. O medo é provocado não apenas pelo tema enfocado, isto é, as chacinas realizadas por policiais militares; também as opções de linguagem do próprio documentário precisam ser cuidadosas. Kiko Goiffman recusa a todo momento as imagens chocantes. Prefere evocá-las por meio dos depoimentos ou mostrar apenas indícios (perfurações de bala nas paredes, um cemitério de indigentes).

Esse medo às imagens que estranhamente parece marcar o documentário de Kiko Goiffman tem um efeito desconcertante. Por um lado, a sucessão de depoimentos – no estilo reportagem – acaba por se mostrar pouco eficiente (pois a multiplicidade dos pontos-de-vista dilui a força do recorte proposto pelo diretor). A palavra, apenas a palavra, amortece a vivência do drama dos personagens. Mas a câmera prefere fazê-las falar, ao invés de captá-las em seu drama indizível. É claro, trata-se de uma opção, de resto totalmente compreensível se Atos dos Homens não se preocupasse, com uma insistência incomum, em refletir sobre o ato de se produzir e de se divulgar... imagens.

De fato, fala-se o tempo inteiro em imagens e os personagens enfocados, de uma forma ou de outra, trabalham com a produção de imagens, no seu sentido mais amplo. Um repórter policial justifica-se: fotografar cadáveres é o seu dia-a-dia; trata-se apenas de fazer o seu trabalho. Os editores do jornal municipal insistem em dizer que não apelam para imagens sensacionalistas. Até mesmo o profeta garante a validade das suas profecias por intermédio das imagens. Em suas pregações pelas ruas de Nova Iguaçu, segura nas mãos a sua foto estampada no jornal O Dia, em que aparece diante de um computador, anunciando a sua inserção na internet.

Esses são personagens envolvidos com a indústria das imagens. Mas há outros que trabalham com a imagem em outra perspectiva: o travesti que se “monta” para vagar em contraluz pela Via Dutra; o empresário alemão que zela pela “boa imagem” turística da cidade e que constrói seu discurso reacionário a partir dessa premissa; o policial militar que, impassível em sua máscara de retidão e moralismo, pretende passar ao filme a imagem do policial-padrão, em sua fala empolada repleta de termos bacharelescos e de subliteratura. Na fala e nos figurinos, os personagens refletem sobre as imagens.

Atos dos Homens não procura interferir no discurso sobre as imagens de forma a exasperá-lo. Permanece algo timidamente diante dos entrevistados, escuta-os. Não com alguma imobilidade cruel ou movimentando-se desobedientemente; registra os discursos e os monta, sem olhar em volta. É como se esse olhar estivesse proibido. Seja pelo medo ou pelo receio de quebrar com a urgência da denúncia, o fato é que a câmera de Kiko Goiffman parece experimentar um profundo mal-estar. Atos dos Homens é um filme intimidado.

Não se trata aqui de exigir um filme que o diretor não quis fazer. Kiko Goiffman, como já disse antes, assume o medo, assume a urgência e assume a incompletude de seu projeto. Resulta que, sendo um filme voltado para a imagem como um problema, Atos dos Homens fala mesmo é da impotência das imagens. A câmera de segurança não impede o crime. A imagem ensinou a guerra a se tornar mais sofisticada e letal. Talvez por isso, mais necessário do que mostrar seja não mostrar, ou melhor, recusar a imagem e oferecer ao espectador uma tela em branco. Diante do vazio da tela em branco, escutando as vozes sofridas das mães das vítimas ou a indiferença brutal do depoimento de um integrante de um grupo de extermínio, o espectador pode, ele mesmo, pensar no que significa produzir imagens sobre esse tema; pode também buscar na lembrança suas imagens particulares; ou simplesmente defrontar-se com o vazio desesperançado da tela em branco e perceber que está diante disso mesmo: de uma tela de cinema em branco.

Essa é a melhor seqüência de Atos dos Homens. Longa e cansativa, traduz a dimensão (e os riscos) do projeto de Kiko Goiffman. Saturados das imagens televisivas, tampouco descansamos no cinema: a tela em branco nos torna insones. Irregular em seu conjunto, Atos dos Homens oferece pelo menos esse ótimo momento de cinema radical.


Luís Alberto Rocha Melo