O
que parece ser a tônica de Atos dos Homens é
a urgência. Um pouco por isso o tom de reportagem, a
assumida aparência de um filme “que está sendo feito”
à medida que se desenrola diante do espectador. O diálogo
entre autor/público é, aliás, bastante direto. As locuções
inicial e final nos intimam a encarar o filme como um
instrumento de reflexão sobre a violência, tomando como
ponto de partida as chacinas ocorridas em 2005 nas cidades
de Queimados e de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense
(RJ). Somos chamados a vivenciar alguns fatos que tendem
a se apagar na memória coletiva, como tantos outros.
Os letreiros iniciais, em cinzentos contornos tênues
sobre um fundo agressivamente branco, indicam o objetivo
central do documentário: denunciar o crime, não deixar
que suas marcas desapareçam por completo.
Em seguida, o corte de um plano de uma asa de avião
sobrevoando a Baixada Fluminense para um travelling
sobre uma carroça puxada por um cavalo, numa rua pobre
de Queimados, evidencia o contraste, a desigualdade.
É uma passagem que choca pelo inusitado e que nos faz
esperar por um filme repleto de aproximações pouco usuais
de realidades diversas e de uma observação atenta, interessada
em mergulhar na vida dos moradores dos municípios da
Baixada. É verdade que em algumas seqüências (como as
que mostram uma briga na rádio comunitária; dois jovens
que cantam e tocam guitarra; e um policial aposentado
que prepara um churrasco no quintal de sua casa) apresentam
com maior ou menor propriedade essa intenção de captar
a ação dentro de um fluxo temporal diverso do que encontramos
nas reportagens documentais. Mas são momentos que não
têm continuidade ao longo de Atos dos Homens.
O filme de Kiko Goiffman rapidamente se volta para a
montagem dos depoimentos, divididos em dois grandes
“blocos”: na primeira parte, os personagens falam sobre
o que é viver em Nova Iguaçu e em Queimados, alguns
deles preocupados em revelar as vantagens e as qualidades
de seus respectivos municípios. Num segundo momento,
o filme concentra-se nas chacinas, tomando ainda como
base os depoimentos. Como uma espécie de satélite em
torno da narrativa, acompanhamos um profeta de longas
barbas brancas, a anunciar aos gritos a volta de Jesus
Cristo.
São bem poucas as pausas, os “respiros” entre os depoimentos.
Esse excesso de falas marca o posicionamento político
de Atos dos Homens. Falar é trazer à tona as
imagens. Mas essa operação não deixa de ser irônica,
e serve ao propósito da denúncia. Fala-se, mas não se
mostra. Ou melhor, mostra-se apenas uma parte daquilo
que se quer mostrar. Desse modo, a sensação que fica
é a do medo. Os personagens que falam para a câmera
sentem medo. A população dos municípios documentados
convive com o medo. E o autor do filme – logo na seqüência
de abertura do filme – confessa o medo que sentiu ao
mergulhar na realização do filme. O medo é provocado
não apenas pelo tema enfocado, isto é, as chacinas realizadas
por policiais militares; também as opções de linguagem
do próprio documentário precisam ser cuidadosas. Kiko
Goiffman recusa a todo momento as imagens chocantes.
Prefere evocá-las por meio dos depoimentos ou mostrar
apenas indícios (perfurações de bala nas paredes, um
cemitério de indigentes).
Esse medo às imagens que estranhamente parece
marcar o documentário de Kiko Goiffman tem um efeito
desconcertante. Por um lado, a sucessão de depoimentos
– no estilo reportagem – acaba por se mostrar pouco
eficiente (pois a multiplicidade dos pontos-de-vista
dilui a força do recorte proposto pelo diretor). A palavra,
apenas a palavra, amortece a vivência do drama dos personagens.
Mas a câmera prefere fazê-las falar, ao invés de captá-las
em seu drama indizível. É claro, trata-se de uma opção,
de resto totalmente compreensível se Atos dos Homens
não se preocupasse, com uma insistência incomum, em
refletir sobre o ato de se produzir e de se divulgar...
imagens.
De fato, fala-se o tempo inteiro em imagens e os personagens
enfocados, de uma forma ou de outra, trabalham
com a produção de imagens, no seu sentido mais amplo.
Um repórter policial justifica-se: fotografar cadáveres
é o seu dia-a-dia; trata-se apenas de fazer o seu trabalho.
Os editores do jornal municipal insistem em dizer que
não apelam para imagens sensacionalistas. Até mesmo
o profeta garante a validade das suas profecias por
intermédio das imagens. Em suas pregações pelas ruas
de Nova Iguaçu, segura nas mãos a sua foto estampada
no jornal O Dia, em que aparece diante de um
computador, anunciando a sua inserção na internet.
Esses são personagens envolvidos com a indústria das
imagens. Mas há outros que trabalham com a imagem em
outra perspectiva: o travesti que se “monta” para vagar
em contraluz pela Via Dutra; o empresário alemão que
zela pela “boa imagem” turística da cidade e que constrói
seu discurso reacionário a partir dessa premissa; o
policial militar que, impassível em sua máscara de retidão
e moralismo, pretende passar ao filme a imagem do policial-padrão,
em sua fala empolada repleta de termos bacharelescos
e de subliteratura. Na fala e nos figurinos, os personagens
refletem sobre as imagens.
Atos dos Homens não procura interferir no discurso
sobre as imagens de forma a exasperá-lo. Permanece algo
timidamente diante dos entrevistados, escuta-os. Não
com alguma imobilidade cruel ou movimentando-se desobedientemente;
registra os discursos e os monta, sem olhar em volta.
É como se esse olhar estivesse proibido. Seja
pelo medo ou pelo receio de quebrar com a urgência da
denúncia, o fato é que a câmera de Kiko Goiffman parece
experimentar um profundo mal-estar. Atos dos Homens
é um filme intimidado.
Não se trata aqui de exigir um filme que o diretor não
quis fazer. Kiko Goiffman, como já disse antes, assume
o medo, assume a urgência e assume a incompletude de
seu projeto. Resulta que, sendo um filme voltado para
a imagem como um problema, Atos dos Homens fala
mesmo é da impotência das imagens. A câmera de
segurança não impede o crime. A imagem ensinou a guerra
a se tornar mais sofisticada e letal. Talvez por isso,
mais necessário do que mostrar seja não mostrar,
ou melhor, recusar a imagem e oferecer ao espectador
uma tela em branco. Diante do vazio da tela em branco,
escutando as vozes sofridas das mães das vítimas ou
a indiferença brutal do depoimento de um integrante
de um grupo de extermínio, o espectador pode, ele mesmo,
pensar no que significa produzir imagens sobre esse
tema; pode também buscar na lembrança suas imagens particulares;
ou simplesmente defrontar-se com o vazio desesperançado
da tela em branco e perceber que está diante disso mesmo:
de uma tela de cinema em branco.
Essa é a melhor seqüência de Atos dos Homens.
Longa e cansativa, traduz a dimensão (e os riscos) do
projeto de Kiko Goiffman. Saturados das imagens televisivas,
tampouco descansamos no cinema: a tela em branco nos
torna insones. Irregular em seu conjunto, Atos dos
Homens oferece pelo menos esse ótimo momento de
cinema radical.
Luís Alberto Rocha Melo
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