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A SCANNER DARKLY
Richard Linklater, A Scanner Darkly, EUA, 2006 |
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Estão
lá os dispositivos de vigilância espalhados
por toda parte, uma concessão à segurança
que significa, antes de tudo, a perda de qualquer tipo
de privacidade, perda essa legal e justificada pela
iminência do caos social em que a América
e o mundo se encontram; os mais de 20% da população
viciados numa droga sintética de fácil
acesso, mas de origem duvidosa, substância absolutamente
destrutiva para as funções cerebrais,
produzindo distúrbios mentais em série;
no centro disso tudo um homem que se vê entre
a sanha controladora do Estado e o objeto desse controle,
atingido ele mesmo pelos efeitos da droga, bipolar,
tripolar, disponível para quantas personalidades
se dispuserem a preencherem suas idéias com uma
identidade que, no ponto em que o encontramos, já
está totalmente dissolvida. Havia nesse contexto
elaborado pelo romance de Philip K. Dick um caráter
político inegável, e ele está integralmente
representado em A Scanner Darkly. Os letreiros
iniciais anunciam que estamos há apenas 7 anos
de distância do tempo em que o filme se passa,
e nem seria preciso que isso nos fosse dito. Sem nenhum
tipo de traquinagem tecnológica que não
seja possível de se encontrar hoje em dia (ou
pelo menos imaginável num tom menos fantástico),
sem composições futuristas muito alardeadas,
o mundo de A Scanner Darkly é o mundo
de agora, e dizer que estas conotações
políticas estão em sua pauta de construção
é dizer que o filme assume sim um partido diante
de um diagnóstico tomado a partir do confronto
com este lugar de onde é gerado, com a realidade,
e que desse modo produz um discurso muito próximo
de um cinema político por princípio, impelido
a representar na ficção aquilo que se
impõe cada vez mais como uma questão na
vida de quem o produz e o assiste. Por esse ponto de
vista, Richard Linklater faz com seu filme um manifesto
entre a melancolia e a esperança, mas ainda assim
um manifesto contra um sistema de coisas que têm
minado progressivamente aquilo que A Scanner Darkly
elege como valor fundamental de qualquer experiência
humana, a consciência e a liberdade automática
que adquirimos quando estamos em pleno poder dela.
Mas algo aqui não se encaixa muito bem. Já
sabemos Linklater, já conhecemos seu modo de
operação. Nenhum exagero em chamá-lo
de "cineasta da palavra", no que seus filmes
sempre estão, em algum momento, lidando exatamente
com as possibilidades de conjugação da
matéria visual percebida pela câmera com
aquilo que seus personagens conseguem materializar pelo
verbo, criando uma terceira fonte de ficção,
absolutamente intangível, que não é
nem o que vemos nem o que ouvimos, mas exatamente aquilo
que projetamos, por nós mesmos, a partir do que
o filme nos fornecera. Se essa relação
é evidente em Antes do Amanhecer e Antes
do Pôr-do-Sol, onde essa vontade de cinema
falado é a própria base na qual se assentam
diretor e personagens, filmes que acontecem em tempo
quase contínuo e em lugares restritos pelo trajeto
que os protagonistas percorrem, mas que na verdade se
utilizam de um sem-número de épocas e
ambientes que existem tão somente na possibilidade
de sugestão das palavras que são trocadas,
ela também é o princípio das experiências
mais comerciais de Linklater, Escola do Rock
como um filme sobre a oportunidade de ver Jack Black
se apropriar da língua como ensinada oficialmente
e cruzá-la com a língua do gargalo de
uma platéia de roqueiros, Sujou... Chegaram
os Bears como uma espécie de última
cruzada do verbo, corrompido pela diversão de
se filmar meninos de 12 anos falando palavrões
com prazer e propriedade incríveis. Mas fosse
o projeto que fosse, sempre houve no cinema de Linklater
uma preocupação organizadora, que garantisse
uma certa globalidade a tudo aquilo que estivesse sendo
mostrado e dito junto do que fosse apenas o tíquete
de viagem particular que cada seqüência entregava,
de modo que mesmo experiências descoladas de qualquer
obrigação narrativa mais clássica
(Waking Life, acima de todos) acabavam, eventualmente,
sendo demarcada por uma idéia de drama, de cronologia,
de espacialidade, de construção e desenvolvimento
de personagens. Essa preocupação, em último
caso fundada na idéia de uma estrutura, que consegue
estender seus braços para onde bem entender sem
que precise abdicar da firmeza de uma base de apoio,
deveria encontrar correspondência perfeita na
disposição política de A Scanner
Darkly. Porque mesmo o mais instável filme
político não pode nunca prescindir desse
mínimo de estabilidade nas fundações,
sob o risco da dissolução de suas proposições
(ou o constrangimento da necessidade propositiva, que
seja) em situações que recordem muito
pouco a fonte de onde partiram. No limite, um discurso
político sobre a realidade, querendo agir e transformá-la
ou então somente pensar seu estatuto, precisa
da conseqüência, depende dela para adquirir
alguma efetividade, e aqui encontramos o ruído
entre o modo como A Scanner Darkly parece se
acreditar e o modo como de fato se apresenta: da primeira
à última imagem, este é um filme
guiado fundamentalmente pela inconseqüência.
Há uma trama clássica de conspiração
e suspense, que não abre mão das surpresas
de almanaque e das reviravoltas do tipo o-que-parecia-uma-coisa-era-na-verdade-outra-totalmente-diferente,
com revelações e confirmações
muito caras a um cinema conformado em ser relacionável
e referendado pelo repertório de quem o consome.
O prejuízo dessa postura, no entanto, é
apenas aparente. Olhando de perto, tudo o que em A
Scanner Darkly aparece como produto do domínio
de uma estrutura é na verdade formado por uma
conjunção de peças totalmente irregulares,
muitas vezes até insubordinadas à idéia
de uma conformação. Linklater consegue
imprimir na superfície do filme aquela mesma
concepção global da narrativa, uma impressão
que surge aqui totalmente falsa, porque os blocos dramáticos
unidos ali por baixo se destacam isolados, rebeldes
até, não só insatisfeitos com a
obrigação de realmente dizerem algo
a respeito do todo de que fazem parte como também
arredios à presença próxima dos
outros blocos, muito diferentes entre si. A Scanner
Darkly chega, nesse momento, muito próximo
de um filme de episódios, com a irregularidade
natural desse tipo de trabalho sendo minimizada pelo
fato de ser apenas um diretor por trás de todos
eles. Essas esquetes se apresentam quase incontroláveis,
como se o pulso que as mantivesse fosse independente
da vontade de quem as provocou, e o princípio
organizador de seu desenrolar fosse única e exclusivamente
o gozo da própria possibilidade dessa loucura
existir dentro de um esquema supostamente tão
bem delineado. Na primeira visita ao consultório
psiquiátrico da polícia, onde vai iniciar
testes que medirão o tamanho do estrago que a
substância D provocou em seu cérebro, Robert
Arctor é cercado por um clima de opressão
quase insuportável, com os dois médicos
cuspindo informações técnicas sobre
sua condição enquanto o preparam para
a primeira prova de sua capacidade intelectual. Num
cartão cheio de listras em relevo que tem desenhado
no meio uma figura que o paciente precisa identificar,
Arctor enxerga uma ovelha, e a câmera em close
confirma ali o contorno do animal. Mas é com
um tom quase fatalista que a médica anuncia seu
erro, pois ao invés de ovelha o que existia ali
era um cão. "Existem muitos erros, mas apenas
um acerto", havia dito anteriormente essa mesma
médica, e a diferença entre cão
e ovelha, pesada na seqüência como um desastre
para a situação do protagonista, carrega
uma graça quase ridícula para quem não
está mergulhado nessa solenidade. E se existe
apenas um acerto, ele passa sempre longe da construção
dessas seqüências, todas elas muito erradas.
No fim do exame psicotécnico, Arctor se levanta
um tanto revoltado, e temos a impressão que é
contra aquele esquema coercivo de análise que
ele irá bradar, algo que só se confirma
quando começa a usar trocadilhos para chegar
até a palavra "foder", a ser usada
provavelmente contra aqueles dois médicos, marionetes
do sistema, e então o sujeito pergunta simploriamente
o que pode fazer para conseguir uma transa, porque já
tentou de todos os jeitos se aproximar de Donna, a namorada
que não se permite tocar, e sempre falhara. Gargalhadas
gerais, e a médica, da representação
de um orwellianismo desinfetado passa a carinhosa conselheira
sentimental. Tudo isso só pode estar muito errado.
É este o mesmo sentido presente nas cenas de
Barris e Luckman, os dois vagabundos que moram na casa
de Arctor, espaço para que Robert Downey Jr.
e Woody Harrelson aloprem sem qualquer obrigação
de limite. Primeiro um longo debate a respeito do número
de marchas que uma bicicleta teria, depois o ensaio
de um silenciador numa arma, que ao invés de
abafar amplia o som do disparo, até a apoteose
na descoberta da sabotagem do carro de Arctor e o retorno
à casa, supostamente invadida pela polícia,
que teria plantado drogas ali, sendo portanto necessário
vendê-la o mais rápido possível
para se livrar de qualquer problema legal. Em cada um
desses momentos recebemos uma enxurrada de informações
a respeito da personalidade de cada um desses sujeitos,
do modo como agem e do que são capazes, suas
ações carregam sempre uma indicação
de importância para o contexto da trama, ou mesmo
para as possíveis pretensões políticas
do filme, e tudo isso acaba se provando, no fim das
contas, totalmente irrelevante. A palavra surge revalorizada,
não mais como passaporte para o que esteja fora
de onde existe, mas como convite a um mergulho suicida
no interior dela, suicida porque não há
a menor garantia de que haverá segurança
ou conforto por lá, apenas a certeza de que é
preciso se entregar por completo ao prazer de cada seqüência,
vivê-la no máximo de sua incorreção,
para na seqüência seguinte começar
tudo novamente. A imagem também toma parte desse
mergulho. Há aqui a utilização
da mesma técnica de animação sobre
imagens captadas ao vivo de Waking Life. Se no
filme de 2001 cada um dos estágios por que passava
Willey Wiggins recebia um tratamento gráfico
diferente, feito por animadores e técnicas diversas,
em A Scanner Darkly há apenas um padrão
de traço e pintura, cuja matriz de proporção
e perspectiva parece a do famoso quarto de Van Gogh.
A associação entre a instabilidade que
a animação dá a cada plano, sempre
reenquadrado a partir da vontade própria das
partes em variar sua posição em relação
ao corpo do cenário, e o mote das alucinações
provocadas pela substância D em todos os personagens
que cruzam a trama aplica-se apenas em parte. Mais que
fruto da perturbação coletiva, esse universo
animado de A Scanner Darkly aparece conectado
diretamente às sensações de seu
protagonista. Não sua duplicidade ou os efeitos
colaterais de seu vício, a representação
de sua crise identitária ou ainda a tradução
possível de um mundo futuro localizado no coração
do presente, mas tudo isso junto e de modo indissociável
é o que impede a imagem ao vivo de entrar no
filme. A animação em A Scanner Darkly,
mais que estético, é um princípio
moral, e no meio de tantos caminhos pré-traçados,
é o símbolo mais evidente de sua única
bandeira política de fato.
Essa bandeira tem o rosto de Keanu Reeves, mas na verdade
de Robert Arctor, estampada em seu pano. Apresentado
pela primeira vez por debaixo do disfarce que tem frações
do físico de mais de um milhão e meio
de pessoas, de modo que nenhum sistema possa identificar
quem está vestindo-o, Arctor aparece quase como
vítima de sua época, síntese de
todas identidades que, agrupadas violentamente pela
tecnologia, acabam se transformando em identidade nenhuma.
É como num testemunho, quase na forma de diário
pessoal, que Arctor fala de dentro do disfarce, olhando
direto para a câmera, e assim Linklater quer,
antes de tudo, singularizá-lo. Daí a incongruência
dos blocos narrativos, daí a necessidade de sublinhar
a exceção de cada seqüência:
é como se só assim fosse possível
reagir à transformação de Arctor
nesse símbolo de um mal pós-moderno, na
materialização de todos os problemas sociais
e políticos impostos pela contemporaneidade,
o que seria, de maneira tão forte quanto a organização
não-governamental que elege cobaias inconscientes
como instrumentos de ataque ao establishment, uma forma
de ignorar o poder de uma consciência particular,
de uma afetividade diversa de todas as outras. Arctor
é escorregadio, dança ao sabor das adversidades,
é colocado à prova em diversas situações
e precisa reagir à elas, quer transar e não
consegue, quer entender o que acontece consigo mesmo
mas os meios lhe escapam, e de todas essas palavras
aquela que Linklater parece realmente fazer questão
de garantir à seu protagonista é o presente
do verbo ser: o importante de tudo isto é que,
acima de qualquer coisa, Arctor é. Posta
em outro patamar, a política de A Scanner
Darkly é o drama da tomada de consciência,
e isso só parece ser possível no nível
pessoal e intransferível da militância
por si mesmo. Nada de pregação individualista
nisso, pelo contrário. Num dos momentos em que
tenta acessar esta sua personalidade perdida, Arctor
diz que torce para que os scanners espalhados por todos
os cantos do planeta consigam ver claramente aquilo
que ele próprio só consegue ver de maneira
obscura. Os scanners poderiam ter acesso às suas
emoções, à seu interior, para ele
ainda inacessíveis. Ao fazer o elogio da máquina
que teoricamente impusera as barreiras contra as quais
tenta lutar, Arctor assume a necessidade de saber-se
humano como um bem muito maior do que qualquer que seja
o modo pelo qual esse conhecimento tenha se efetivado,
seja pelo exame de um scanner, seja pelo pensamento
sobre sua própria história. A Scanner
Darkly parte da alegoria política para chegar
ao conto íntimo de um homem atormentado pela
multiplicação de suas sombras. Robert
Arctor é sua estética, é sua política,
e de maneira totalmente cúmplice e apaixonada,
sua própria vida.
Rodrigo de Oliveira
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