A
Ponte serve como um daqueles argumentos fortíssimos,
quase irrefutáveis, de que o lugar da ficção ou do documentário,
o lugar onde se decide em que lado dessa linha ficaremos,
ou se bem no meio dela, não é nenhum outro que não a
própria imagem, e o modo como ela nos é apresentada.
Não está no caráter daquilo que se encena diante da
câmera, nem muito menos no quociente de realidade maior
ou menor que esse espaço possa oferecer, mas tão somente
na vontade daquele que registra em atribuir esta ou
aquela conotação à matéria visual que absorve. Essa
vontade de dar sentido parece quase obsessiva a cada
vez que uma nova seqüência do filme de Eric Steel aparece
na tela, e a consciência desse status todo-poderoso
que a imagem adquire enquanto fronteira, mais que trunfo,
é exatamente aquilo leva seu filme a lugares tão baixos.
Ou quantas vezes ainda poderíamos suportar o truque
de acelerar a imagem de carros e faróis sobre uma ponte
como grande metáfora da modernidade e seu tempo implacável,
destruidor de individualidades, agressor que segue atropelando
o homem comum? Ou ainda que grandes pensamentos atingiríamos
diante do êxtase nebuloso das nuvens que cobrem o aço,
que vencem o aço, ar e água desafiando a insistência
do ser humano em ser maior que a natureza? Nas incansáveis
tomadas da Golden Gate e da Baía de São Francisco, feitas
e repetidas à exaustão e de todos os ângulos possíveis,
nem a construção da ponte como monumento dramatizado
de uma narrativa contemporânea nem o caráter de personagem
de sua própria história, tão objeto de documentação
quanto aqueles que pulam lá de cima, o que Steel consegue
muito rapidamente é esvaziar qualquer possibilidade
de relacionamento dessa imagem com o que está em volta
e dentro dela, fechada num monólogo interior que acredita
nos valores absolutos que pensa produzir, polarizados
quase sempre entre a beleza (nuvens passando pela ponte)
e o choque (pessoas que morrem dentro do quadro).
É esse absolutismo que garante a segurança que A
Ponte exibe em tudo aquilo que nos parece, no mínimo,
duvidoso. É esse fechamento que permite que a imagem
de um suicida, acompanhada desde o salto até o impacto
no mar, anuncie o título do filme, aparecendo em fade in exatamente no lugar em que o corpo do morto formara
uma espuma d’água. Essa seqüência de abertura inaugura
a idéia que Steel tem do tipo de registro que está fazendo,
e a repetição (porque tudo aqui sempre se repete infinitamente)
das imagens reais dos suicídios saem rapidamente da
esfera documental, onde qualquer argumento contra a
posição ética e o exercício sádico de observação da
morte teria alguma aplicação, para encarnarem um espírito
ficcional clássico, quase de gênero (o suspense dos
grandes planos gerais onde nada aparentemente acontece,
até que ouvimos o barulho de um mergulho na água e vemos
um ponto branco de espuma no mar azul, e então sabemos
que lá está mais um para a lista de nomes que fatalmente
aparecerão nos créditos finais).
Mas é na coleta de depoimentos dos parentes e amigos
de alguns dos mortos que o projeto de Steel prova a
incapacidade de articulação de qualquer dos sentidos
espontâneos que surgem daqueles sentidos absolutos inicialmente
pretendidos. A tentativa de diagnosticar um mal secreto
que tomasse todos aqueles que decidiam pular da ponte
enche o filme de teorias primárias sobre a solidão,
o desespero e a depressão contemporânea. Algo na solenidade
com que o diretor trata essa psicologia de botequim
imprime em A Ponte, num contorno diverso daquilo
que as imagens da Golden Gate sugeriam, uma espécie
de super documentário-verdade, onde nem mesmo a bobagem
repetida por um entrevistado é passível de corte, num
ato de inteireza moral que parece ignorar que todas
as complicações em que o filme já havia se metido. O
que vemos é uma sucessão de figuras do white trash americano
se esforçando entre os cacoetes de fala para dar alguma
materialidade à pessoa que, até ali, era apenas mais
um ponto branco de espuma no mar. Nesses momentos, A
Ponte se aproxima de um teste de elenco de qualquer
um dos filmes de um Todd Solondz, por exemplo. Eric
Steel, ávido por drama, acredita que o documentário
tradicional, por conta própria, já basta para preencher
o filme de humanidade, mas esquece que é na seleção
das histórias ouvidas, de seus melhores momentos, dos
melhores personagens da vida real, que o gênero se agiganta.
Passos de ficção, quase, mas que o diretor ignora.
Verdade com invenção, beleza no banal, a poesia natural
da vida, e seria pouco falar em clichê ou em simples
calhordice. Acompanhamos, ao longo de todo o filme,
trechos entrecortados da história de Gene, um roqueiro
cabeludo e solitário (“que usava tudo preto, sempre
de preto”), prestes a se matar. Nos primeiros minutos
de A Ponte já somos apresentados à essa figura,
mas é apenas na última seqüência que finalmente veremos
a imagem de seu suicídio. O motivo da eleição de Gene
como protagonista indireto do filme não se justifica
em nenhum momento, sua trajetória não é mais ou menos
interessante que a dos outros suicidas, os depoimentos
de seus amigos não são mais ou menos emocionantes, o
carisma que sua figura desperta não pode afiançar nenhum
tipo de afinidade com o espectador. É quando está subindo
no parapeito da Golden Gate que descobrimos porque Eric
Steel tanto o valorizara. Desde a postura no alto da
ponte até o salto, a morte de Gene era, de todas, aquela
que tinha sido melhor documentada. Três câmeras simultâneas,
perfeitamente editadas, permitem uma visão cristalina,
sem os tremores anteriores, de toda queda livre até
o choque final. E aqui já não há mais concepção estúpida
da imagem, confusão de sentidos, mau-caratismo ou chatice.
O que existe é apenas a utilização das ferramentas do
cinema para a produção do desprezível.
Rodrigo de Oliveira
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