"Visto
que o cinema é um olhar, que substitui o nosso
para nos oferecer um mundo que corresponde aos nossos
desejos, ele se concentra em rostos, em corpos radiantes
ou feridos mas sempre lindos, nesta glória ou
nesta devastação que corresponde à
mesma nobreza primordial, nesta raça escolhida
que reconhecemos como a nossa, a projeção
definitiva de uma vida rumo a Deus"
Michel Mourlet
Partir de Cocteau e retomar a imagem de um mundo primeiro,
originário... Deste dispositivo Brisseau sempre
forjou um meio de acesso para os seus interesses de
cineasta, como se fosse necessária a construção
de algum tipo de portão de entrada que também
privilegiasse aqueles que se interessam pela força,
pela expressão hiperbólica de ânimo
e coragem que parece repercutir como que por choques
no interior de seus filmes. Todas estas idéias
– a de um mundo originário, a de um local isolado
onde todas as descargas de violência vagam à
espera de um único estímulo que acabe
por aliá-las – já haviam encontrado na
imagem que inicia Anjo Negro uma expressão
sem-par em densidade e esplendor. Era no hall
de entrada daquela mansão, banhada por uma luz
que sugeria ao mesmo tempo a exacerbação
a Matisse e a lamentação a Rembrandt,
que entendíamos a real dimensão desta
filiação que jamais pareceu forçosa,
simulada, leviana ou vulgar. O cineasta demonstra de
maneira prodigiosa como através de uma fenda
estreita – a fachada deste mundo originário,
que poderíamos ligar a um Cocteau, um Bresson
ou a um Pabst – atravessamos o corredor que nos conduz
a um mundo derivado – a saber, de Buñuel,
Hitchcock, Lang...
Os Anjos Exterminadores abre com a imagem de
François e sua mulher dividindo o leito, emoldurados
pelo espaço de uma porta aberta. A câmera
se precipita, deixando para trás este ponto fixo
e determinado que Brisseau inicialmente escolhe. Nos
aproximamos mais e mais da cama, mais e mais do casal,
até o instante em que o movimento chega ao seu
término. Vozes cochicham; um novo movimento,
desta vez panorâmico, é posto em execução.
Findo este último movimento, o que acabamos retendo
é a presença de duas figuras indistintas,
posicionadas uma próxima à outra, cobertas
como que apenas por luz. Elas desaparecerão tão
logo nos é possível determinar o caráter
fantasmático, verdadeiramente evanescente de
sua aparição.
Brisseau não supõe de maneira alguma este
novo trabalho como algum tipo de complemento, negação,
justificativa ou oposto de Coisas Secretas. Também
não se trata de qualquer tentativa de retaliação
ou purgação das mazelas que notoriamente
afligiram o cineasta a respeito de um recente e lamentável
episódio (o qual não discutiremos neste
texto). Os Anjos Exterminadores, este é
nada mais nada menos que o negativo de Coisas
Secretas, um experimento sem igual no cinema contemporâneo,
onde os tons claros e escuros do trabalho anterior aparecem
aqui invertidos, onde todas as cores e matizes empregadas
são complementares em relação às
de Coisas Secretas. É o que de antemão
já nos informa a estrutura em reverso
deste novo filme: se Coisas Secretas começava
do mundo derivado (os fetiches, as projeções,
o drama romanesco, a colisão inevitável
de classes sociais distintas) para através de
uma ascese elevar-se ao mundo originário (a irônica
e dúbia imagem final de Nathalie se dirigindo
a um subway, desta vez acompanhada de um marido),
Os Anjos Exterminadores parte da mais simples
imagem do paraíso idílico (os últimos
instantes da vida em harmonia de um casal antes do prenúncio
da tragédia iminente) para converter-se numa
grande dramaturgia da perdição, da indagação
minuciosa do prazer e das erupções de
prazer expressas pela graça resplandecente de
corpos femininos.
Desta forma, tomar por base o cinema de Cocteau (a luminosidade
transitória que acompanha as aparições
dos anjos ou as vozes em off que lembram emissões
radiofônicas, pulsões essenciais que Brisseau
naturalmente introduz no prólogo descrito acima)
adquire aqui ares de uma parábola que encerra
interior e exteriormente este novo corpo que é
o de Os Anjos Exterminadores: com este retorno
a um mundo originário, que ainda no princípio
do filme nos é apresentado, Brisseau estabelece
ao mesmo tempo uma lógica dramática implacável
e a subordinação rigorosa de seus dois
últimos trabalhos às experiências
mais impossíveis de se fazer com o cinema.
Pois o que é revelado por Brisseau em Os Anjos Exterminadores senão a imagem já impossível do mundo originário de Coisas Secretas?
É o que naturalmente faz Brisseau optar pelo entrecho mais simples, mais direto possível: durante
a preparação de um filme semipolicial-semierótico,
François filma uma garota se masturbando num
quarto de hotel. Um anjo sopra aos ouvidos do cineasta
para que ele escute com atenção o que
a garota lhe dirá, que o discurso dela o tornará
famoso; a garota confessa ter tido seu primeiro orgasmo
ao ser filmada por ele. O filme acaba sendo feito sem
a garota, a quem François encontra alguns anos
depois. Os dois conversam rapidamente; ela lhe diz que
aquele teste a marcou profundamente, e que no fim das
contas provavelmente não se deixaria filmar.
Seu discurso, contudo, havia impressionado François,
que passa a se interessar pela realização
de um filme sobre o prazer provocado pela transgressão
e pela quebra de tabus.
As questões levantadas pela narrativa são
claras, pontuais, coerentes e justas, prolongamentos
naturais de um princípio dramatúrgico
impecável. Qual a função que François
desempenhará nas ficções das quais
é o demiurgo e na ficção
que está sendo gerada no interior do filme de
Brisseau? O que o protagonista alcançará
através deste movimento, que é um só
tempo figurativo e conceitual? Quais as formas de investigação,
as implicações e conseqüências
da busca que François empreende com seu olhar,
com aquilo que este olhar não apenas procura
como também provoca? Nada de muito diferente
das escolhas feitas pelo próprio Brisseau: partir
de um clichê, simplesmente, da imagem hiper-estetizante
de uma realidade simples, e buscar através de
uma série de situações inusitadas,
aparições fantasmáticas e circunstâncias
misteriosas uma relação entre o indivíduo
e o celestial, o efêmero e o cósmico, entre
um mundo derivado e um mundo originário...
Dos pequenos rendez-vous do diretor com suas
atrizes, dos ambientes que em vários momentos
podem parecer aos nossos olhos puros blocos de imaterialidade,
destes mistérios da carne e da matéria,
do homem e do incompreensível à sua volta...
É disto apenas que Brisseau precisa para se afirmar
dentre todos os cineastas como o único a ter
o real compromisso, a nobreza e humildade para lidar
de uma só vez com a divindade e o profano, o
trágico e o fabular, a ternura e a cobiça,
o sórdido e o sublime, a dor e a satisfação
mais intensa... E no caso bastante particular de Os
Anjos Exterminadores, com a perdição
mais profunda do homem e o júbilo mais intenso,
ambos expressos aqui pelas diversas sombras do êxtase
do gozo feminino, pela graça absoluta destes
verdadeiramente assombrosos instantes. Nestes momentos
temos finalmente revelado o verdadeiro sucessor de Buñuel,
do Lang das aventuras indianas e do Hitchcock de Psicose
e Marnie. De Lang temos estas imagens que
só podem ser descritas como transluzentes,
como se o que estivéssemos vendo fosse muito
mais a emissão da radiação luminosa
por parte de um corpo cintilante que qualquer outra
coisa mais próxima do material; de Buñuel
esta constante modulação das forças
profundas e pulsionais que agitam os comportamentos
sociais; de Hitchcock o domínio sobre o suspense
sexual, verdadeira arte das pulsões escondidas
e secretas. Destes três, e não são
necessários muitos esforços para se ver
isso, uma única lição, um único
tema e um único grande laboratório de
formas: a busca do homem pela felicidade através
do drama do corpo; ou apenas uma palavra, uma que reúne
tudo o que é necessário saber desta arte
ignorada que é a modulação.
O corredor de um mundo derivado que nos conduz aos elementos
de um primeiro mundo, ou da tarefa ingrata de relacionar
neste texto o sem-número de cenas que em Brisseau
atravessamos corredores estreitos para chegarmos às
imagens mais puras, às expressões mais
dignas da graça divina ou mesmo de "uma vida
rumo a Deus". E poderíamos até mesmo
acreditar na hipótese de Brisseau realizar neste
filme uma prática jansenista da imagem como em
Bresson, Pabst, Duras... Uma imagem que seja pura depuração,
austeridade, rigidez. A verdade, a verdade é
que realmente poderíamos afirmar isso, se estivéssemos
nos referindo integralmente a Anjo Negro ou De
bruit et de fureur. Mas com Os Anjos Exterminadores,
bem como também com Coisas Secretas, Brisseau
supõe e propõe uma espécie de contaminação,
um enjeu entre a crença na depuração
mais resoluta (gênero Cocteau, Bresson, Pabst)
e uma atração bastante particular pelo
drama romanesco, pela valorização do gênio
do espectador, pelo isolamento das características
essenciais do realismo apenas para no fim das contas
prolongá-las num surrealismo particular (gênero
Buñuel, Hitchcock, Lang). O que por fim Brisseau
propõe com tudo isso, e ele é provavelmente
o único realizador contemporâneo capaz
de operar tal milagre, é um cinema que se apóia
ao mesmo tempo numa austeridade próxima do inflexível
(pobres sofisticados, não suportam o olhar sincero
e casto deste homem que, insulto dos insultos, é
irredutível no seu gosto por jovens garotas se
masturbando) e na arte mais refinada da dramaturgia
cênica, da mise en scène propriamente
dita, único ofício ainda capaz de remodular
a exacerbação lírica da convenção
através da magia intensa do travelling.
"O que era mostrado – e a sinceridade e honestidade
eram tão desconcertantes quanto o soco de um
punho – era um ser maior que todos os heróis
e mais lindo que os deuses: isto era um homem"
Jacques Serguine
Bruno Andrade
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