OS ANJOS EXTERMINADORES
Jean-Claude Brisseau, Les Anges exterminateurs, França, 2006

"Visto que o cinema é um olhar, que substitui o nosso para nos oferecer um mundo que corresponde aos nossos desejos, ele se concentra em rostos, em corpos radiantes ou feridos mas sempre lindos, nesta glória ou nesta devastação que corresponde à mesma nobreza primordial, nesta raça escolhida que reconhecemos como a nossa, a projeção definitiva de uma vida rumo a Deus"
Michel Mourlet


Partir de Cocteau e retomar a imagem de um mundo primeiro, originário... Deste dispositivo Brisseau sempre forjou um meio de acesso para os seus interesses de cineasta, como se fosse necessária a construção de algum tipo de portão de entrada que também privilegiasse aqueles que se interessam pela força, pela expressão hiperbólica de ânimo e coragem que parece repercutir como que por choques no interior de seus filmes. Todas estas idéias – a de um mundo originário, a de um local isolado onde todas as descargas de violência vagam à espera de um único estímulo que acabe por aliá-las – já haviam encontrado na imagem que inicia Anjo Negro uma expressão sem-par em densidade e esplendor. Era no hall de entrada daquela mansão, banhada por uma luz que sugeria ao mesmo tempo a exacerbação a Matisse e a lamentação a Rembrandt, que entendíamos a real dimensão desta filiação que jamais pareceu forçosa, simulada, leviana ou vulgar. O cineasta demonstra de maneira prodigiosa como através de uma fenda estreita – a fachada deste mundo originário, que poderíamos ligar a um Cocteau, um Bresson ou a um Pabst – atravessamos o corredor que nos conduz a um mundo derivado – a saber, de Buñuel, Hitchcock, Lang...

Os Anjos Exterminadores abre com a imagem de François e sua mulher dividindo o leito, emoldurados pelo espaço de uma porta aberta. A câmera se precipita, deixando para trás este ponto fixo e determinado que Brisseau inicialmente escolhe. Nos aproximamos mais e mais da cama, mais e mais do casal, até o instante em que o movimento chega ao seu término. Vozes cochicham; um novo movimento, desta vez panorâmico, é posto em execução. Findo este último movimento, o que acabamos retendo é a presença de duas figuras indistintas, posicionadas uma próxima à outra, cobertas como que apenas por luz. Elas desaparecerão tão logo nos é possível determinar o caráter fantasmático, verdadeiramente evanescente de sua aparição.

Brisseau não supõe de maneira alguma este novo trabalho como algum tipo de complemento, negação, justificativa ou oposto de Coisas Secretas. Também não se trata de qualquer tentativa de retaliação ou purgação das mazelas que notoriamente afligiram o cineasta a respeito de um recente e lamentável episódio (o qual não discutiremos neste texto). Os Anjos Exterminadores, este é nada mais nada menos que o negativo de Coisas Secretas, um experimento sem igual no cinema contemporâneo, onde os tons claros e escuros do trabalho anterior aparecem aqui invertidos, onde todas as cores e matizes empregadas são complementares em relação às de Coisas Secretas. É o que de antemão já nos informa a estrutura em reverso deste novo filme: se Coisas Secretas começava do mundo derivado (os fetiches, as projeções, o drama romanesco, a colisão inevitável de classes sociais distintas) para através de uma ascese elevar-se ao mundo originário (a irônica e dúbia imagem final de Nathalie se dirigindo a um subway, desta vez acompanhada de um marido), Os Anjos Exterminadores parte da mais simples imagem do paraíso idílico (os últimos instantes da vida em harmonia de um casal antes do prenúncio da tragédia iminente) para converter-se numa grande dramaturgia da perdição, da indagação minuciosa do prazer e das erupções de prazer expressas pela graça resplandecente de corpos femininos.

Desta forma, tomar por base o cinema de Cocteau (a luminosidade transitória que acompanha as aparições dos anjos ou as vozes em off que lembram emissões radiofônicas, pulsões essenciais que Brisseau naturalmente introduz no prólogo descrito acima) adquire aqui ares de uma parábola que encerra interior e exteriormente este novo corpo que é o de Os Anjos Exterminadores: com este retorno a um mundo originário, que ainda no princípio do filme nos é apresentado, Brisseau estabelece ao mesmo tempo uma lógica dramática implacável e a subordinação rigorosa de seus dois últimos trabalhos às experiências mais impossíveis de se fazer com o cinema. Pois o que é revelado por Brisseau em Os Anjos Exterminadores senão a imagem já impossível do mundo originário de Coisas Secretas?

É o que naturalmente faz Brisseau optar pelo entrecho mais simples, mais direto possível: durante a preparação de um filme semipolicial-semierótico, François filma uma garota se masturbando num quarto de hotel. Um anjo sopra aos ouvidos do cineasta para que ele escute com atenção o que a garota lhe dirá, que o discurso dela o tornará famoso; a garota confessa ter tido seu primeiro orgasmo ao ser filmada por ele. O filme acaba sendo feito sem a garota, a quem François encontra alguns anos depois. Os dois conversam rapidamente; ela lhe diz que aquele teste a marcou profundamente, e que no fim das contas provavelmente não se deixaria filmar. Seu discurso, contudo, havia impressionado François, que passa a se interessar pela realização de um filme sobre o prazer provocado pela transgressão e pela quebra de tabus.

As questões levantadas pela narrativa são claras, pontuais, coerentes e justas, prolongamentos naturais de um princípio dramatúrgico impecável. Qual a função que François desempenhará nas ficções das quais é o demiurgo e na ficção que está sendo gerada no interior do filme de Brisseau? O que o protagonista alcançará através deste movimento, que é um só tempo figurativo e conceitual? Quais as formas de investigação, as implicações e conseqüências da busca que François empreende com seu olhar, com aquilo que este olhar não apenas procura como também provoca? Nada de muito diferente das escolhas feitas pelo próprio Brisseau: partir de um clichê, simplesmente, da imagem hiper-estetizante de uma realidade simples, e buscar através de uma série de situações inusitadas, aparições fantasmáticas e circunstâncias misteriosas uma relação entre o indivíduo e o celestial, o efêmero e o cósmico, entre um mundo derivado e um mundo originário...

Dos pequenos rendez-vous do diretor com suas atrizes, dos ambientes que em vários momentos podem parecer aos nossos olhos puros blocos de imaterialidade, destes mistérios da carne e da matéria, do homem e do incompreensível à sua volta... É disto apenas que Brisseau precisa para se afirmar dentre todos os cineastas como o único a ter o real compromisso, a nobreza e humildade para lidar de uma só vez com a divindade e o profano, o trágico e o fabular, a ternura e a cobiça, o sórdido e o sublime, a dor e a satisfação mais intensa... E no caso bastante particular de Os Anjos Exterminadores, com a perdição mais profunda do homem e o júbilo mais intenso, ambos expressos aqui pelas diversas sombras do êxtase do gozo feminino, pela graça absoluta destes verdadeiramente assombrosos instantes. Nestes momentos temos finalmente revelado o verdadeiro sucessor de Buñuel, do Lang das aventuras indianas e do Hitchcock de Psicose e Marnie. De Lang temos estas imagens que só podem ser descritas como transluzentes, como se o que estivéssemos vendo fosse muito mais a emissão da radiação luminosa por parte de um corpo cintilante que qualquer outra coisa mais próxima do material; de Buñuel esta constante modulação das forças profundas e pulsionais que agitam os comportamentos sociais; de Hitchcock o domínio sobre o suspense sexual, verdadeira arte das pulsões escondidas e secretas. Destes três, e não são necessários muitos esforços para se ver isso, uma única lição, um único tema e um único grande laboratório de formas: a busca do homem pela felicidade através do drama do corpo; ou apenas uma palavra, uma que reúne tudo o que é necessário saber desta arte ignorada que é a modulação.













O corredor de um mundo derivado que nos conduz aos elementos de um primeiro mundo, ou da tarefa ingrata de relacionar neste texto o sem-número de cenas que em Brisseau atravessamos corredores estreitos para chegarmos às imagens mais puras, às expressões mais dignas da graça divina ou mesmo de "uma vida rumo a Deus". E poderíamos até mesmo acreditar na hipótese de Brisseau realizar neste filme uma prática jansenista da imagem como em Bresson, Pabst, Duras... Uma imagem que seja pura depuração, austeridade, rigidez. A verdade, a verdade é que realmente poderíamos afirmar isso, se estivéssemos nos referindo integralmente a Anjo Negro ou De bruit et de fureur. Mas com Os Anjos Exterminadores, bem como também com Coisas Secretas, Brisseau supõe e propõe uma espécie de contaminação, um enjeu entre a crença na depuração mais resoluta (gênero Cocteau, Bresson, Pabst) e uma atração bastante particular pelo drama romanesco, pela valorização do gênio do espectador, pelo isolamento das características essenciais do realismo apenas para no fim das contas prolongá-las num surrealismo particular (gênero Buñuel, Hitchcock, Lang). O que por fim Brisseau propõe com tudo isso, e ele é provavelmente o único realizador contemporâneo capaz de operar tal milagre, é um cinema que se apóia ao mesmo tempo numa austeridade próxima do inflexível (pobres sofisticados, não suportam o olhar sincero e casto deste homem que, insulto dos insultos, é irredutível no seu gosto por jovens garotas se masturbando) e na arte mais refinada da dramaturgia cênica, da mise en scène propriamente dita, único ofício ainda capaz de remodular a exacerbação lírica da convenção através da magia intensa do travelling.

"O que era mostrado – e a sinceridade e honestidade eram tão desconcertantes quanto o soco de um punho – era um ser maior que todos os heróis e mais lindo que os deuses: isto era um homem"
Jacques Serguine


Bruno Andrade