ANFITRIÃO E CONVIDADO
Shin Dong-Il, Bangmunja, Coréia do Sul, 2005

Um coreano de meia-idade, ex-militante comunista, divorciado de sua mulher, distante do filho, que nunca vê, não acha mais sentido em nada e se isola do mundo. Casualmente, conhece um missionário que o ajudará a reaprender como apreciar a vida. Assim como o título do filme de Shin Dong-Il revela uma dicotomia, seu tom sempre se ancorará em outra, representada por esta breve sinopse: a oposição entre a perdição e a salvação na vida de dois homens. Cada cena de Anfitrião e Convidado tem, por princípio, solidificar este princípio, e é isto que retira da obra o – pouco – interesse que ela consegue em algumas de suas seqüências.

Ho-Jun, o protagonista, passa os primeiros vinte minutos de projeção reproduzindo todos os gestos e acontecimentos previsíveis a um personagem sem vontade de viver: reclama do mundo e de todos, enche a cara o dia inteiro, faz cara de deprimido, dá bronca em quem se intromete em seu não-caminho e, inclusive, perde o senso de moral que deveria ter, contratando prostitutas (as quais, se não bastasse, humilha como se fossem gado) para satisfazer-se. A fotografia, sempre muito clara, reclamando a salvação impossível, reitera que ele é um homem perdido, acabado, morto. Não há um plano desta parte inicial do filme no qual Shin Dong-Il tente amenizar a situação, dando mais relevo, personalidade, enfim, vida, a seu protagonista, mesmo que ele exista apenas na falta dela. De clichês mal-trabalhados o cinema, felizmente, não necessita.

Mas é no restante da projeção, quando estes mesmos clichês diminuem, que o filme derrapa ladeira abaixo. Se, após a entrada do missionário, as cenas continuam a existir apenas com uma função didática (normalmente ainda dentro da linha simplista "este momento representa a parte da perdição e este da salvação"), refletindo sempre, em sua falta de sentimento, coesão ou mesmo sentido, uma idéia do diretor, esta idéia fica cada vez menos clara. Anfitrião e Convidado passa a se tornar, então, um estranho filme-tese, já que a mesma revela-se de plano a plano mais complicada de compreender. Ho-Jun termina o filme salvo, disso não há dúvidas, mas a razão de sua salvação é quase um mistério.

De um lado, podemos considerar que a obra defende o caminho da liberdade como necessidade para revalorização da vida: o discurso anti-belicista do jovem no fim do filme, as críticas jogadas sem qualquer preocupação narrativa ao governo Bush, a idéia da aceitação a qualquer ser humano, a lembrança de uma recém-ditadura que assolou o país e ainda possui suas marcas podem pesar para essa constatação. De outro, perceber a solidariedade e as relações humanas como o tal fator regenerador: todo o afeto que se estabelece entre Ho-Jun e Gye-Sang, dos quais surgem, nos erros da narrativa (pois os momentos em que ela perde uma "função" só podem ser considerados erros), os poucos momentos verdadeiros da obra, também não deve ser excluído como a causa-mor do diretor.

É a terceira via possível de entendimento, porém, que dá a Anfitrião e Convidado uma postura ética preocupante, escamoteada por suas críticas políticas e elogios à amizade. Ho-Jun não somente é convencido a voltar à vida por um missionário, como o próprio personagem do jovem é sempre visto com bons olhos pela câmera. O protagonista é radical e intempestivo, seu amigo sereno e compreensivo. Nos momentos em que bebe, sofre, se perde, é Gye-Sang que o ajuda a chegar em casa. Até aí, os problemas – fora uma construção absolutamente banal tanto dos personagens principais quanto de seu relacionamento – não são tão graves. Esta gravidade aumenta quando um ateu em crise é regenerado pelas ações e palavras de um religioso convicto (e em alguns momentos este jovem mostra-se muito melhor argumentado nas discussões do que o protagonista), dentro de um filme que claramente acredita na perspectiva – em si já lotada de fé – de uma salvação. Parece que a obra de Shin Dong-Il está, no fundo, é querendo nos converter.

Para isso, contribui a figura de Ho-Jun, quando regenerado: cabelo bem-feito, moral reconstituída, sorriso no rosto, serenidade de espírito. O contraste absoluto entre o antigo e o novo Ho-Jun revela que existe, portanto, para Shin, um certo e um errado no mundo tão definidos quanto, por exemplo, o preto e o branco. Dessa forma, apesar de parecer um filme que, a todo tempo, reivindica para si a defesa de uma liberdade inexistente na sociedade coreana, no fundo Anfitrião e Convidado não passa de um livrinho bobo de advertências cristãs. E, se o diretor precisa de noventa minutos para tentar me salvar com elas, esse texto responde simples e mal-educadamente com apenas duas palavras: não, obrigado.


Leonardo Levis