Mário,
nighthawk
Alice é um filme noturno, mesmo quando acontece
em plena luz do dia. No tom sempre escuro da fotografia,
nos ambientes mal iluminados, no recorrente sobretudo
preto que Mário usa, não há tanto
uma tentativa de referência imediata a seu estado
de espírito, perturbação adquirida
pelo desaparecimento da filha pequena, o que tornaria
o negro quase uma obrigação, guia primeiro
das ações do protagonista. A noite aqui
é tomada de maneira diversa, é o próprio
lugar da revelação, e toda a escuridão,
ao invés de dificultar a vista, talvez até
a amplie. Mas o que se revela está longe de resolver
o mistério da menina desaparecida. A idéia
de resolução é quem mais se beneficia
da obscuridade, permanecendo nas sombras ao longo do
filme inteiro. Estamos sempre diante de Mário,
junto a ele, e é a revelação de
seus próprios dramas que acompanharemos. Um filme
noturno porque só assim seria possível
se aproximar de um filho involuntário desse ambiente.
Marco Martins encontra seu protagonista no meio de uma
Lisboa indistinta, que é apenas a sucessão
dos carros no trânsito e o burburinho das pessoas
pelas praças e estações de metrô.
Mais uma vez é arriscado ligar automaticamente
essa relação com a urbanidade à
matéria do filme, e enxergar Alice exclusivamente
pelo ponto-de-vista das afetações que
a modernidade causa naqueles que estão momentaneamente
suscetíveis a elas, desguarnecidos pelo vírus
da insegurança e da dúvida. Mário
se relaciona com os clichês do mundo-anos-2000
num nível que nega frontalmente esse apoio na
crise contemporânea. Desde que sua filha sumiu,
repete meticulosamente todos os passos dados naquele
dia, na tentativa de reencontrar-se com a rotina dela.
Depois vaga pela cidade distribuindo flyers com a foto
de Alice, um vagar que é pura impossibilidade
de ficar parado, defesa do movimento como o princípio
básico de quem não pode se render. Mas
é num outro instrumento de busca que Mário
realmente vê a chance de encontrar sua filha.
Ele dispõe pela cidade, na casa de amigos, em
varandas e terraços, onze câmeras de vídeos
que filmam incessantemente o movimento das ruas. Há
uma inversão absoluta na idéia da vigilância,
pois é Mário quem observa a cidade, quem
invade a privacidade dela, quem assume a posição
do olho que tudo vê. Do lado de trás da
lente, a modernidade vira alvo, e Mário é
seu gentil algoz.
É preciso estar no controle para não sucumbir,
e a revelação de Mário é
a revelação de uma obsessão. Alice
parece cada vez mais distante, encontrá-la deixa
lentamente de ser a questão. O que sobra é
a disposição de um pai em seguir procurando,
num ponto em que o objeto dessa busca se torna fluído,
muda com o caminhar dos acontecimentos, e é esse
próprio ato de busca que interessa mais do que
qualquer outra coisa. Recolhidas nas visitas às
casas dos amigos, essas fitas com imagens da cidade
serão revisadas uma a uma diante de uma pilha
de tevês dispostas na sala de estar. Com a velocidade
aumentada (no começo em apenas 2 pontos, mas
agora já 10 vezes mais rápida que a velocidade
normal, como ele se gaba timidamente a certa altura),
Mário absorve todas aquelas pessoas que cruzam
a tela, e seleciona as que lhe parecem próximas
à imagem de sua filha, deixando seguir adiante
todo o resto. Como diz o segurança do aeroporto,
um amigo seu que lhe empresta os vídeos do circuito
interno do lugar para que também os analise,
a imagem do agora encarcerada em camerazinhas e distribuída
em vários monitores diferentes dinamita a vontade
de se ver novelas (e aqui diríamos também
de se ver cinema). Estando no controle, Mário
se torna diretor, roteirista, seleciona aquilo que quer
ver, descarta o que não convém, coloca
tudo na ordem que achar melhor. É o cineasta
de sua própria história.
Mas dessa história a sua própria figura
aparece excluída. Marco Martins, segundo cineasta
desse mundo de Alice, sente que precisa trazer
o primeiro para dentro da imagem, sob o risco de perdê-lo
na escuridão por ele cada vez mais controlada.
Aqui Mário será impelido, no fôlego
da procura por sua filha desaparecida, a esbarrar consigo
mesmo, e finalmente permitir-se personagem. Andando
pela rua, pára diante de uma loja de eletrodomésticos
que têm na vitrine uma câmera apontada para
fora, a jogar para todas as televisões à
sua volta a imagem de quem se põe na frente dela.
Num dos grandes momentos do ator Nuno Lopes, seu destruído
Mário renova energias ao ver seu próprio
rosto, entre sorrisos e lágrimas, brincando finalmente
do lado de lá da lente, e ali descobre que estivera
ele próprio também desaparecido durante
todo esse tempo. "On an average day" é
o nome da peça de teatro em que Mário,
ator por profissão, trabalha durante essa cruzada
pela noite, e a descoberta de si mesmo enquanto conjunto
de pixels é o que o livrará dos dias comuns,
da rotina sempre repetida em seus mínimos detalhes,
para um último grande impulso, uma aposta definitiva
no encontro com sua filha, ela também apenas
pixel, impresso em fotos pregadas na parede.
O diretor português já havia mostrado um
talento muito particular para esquadrinhar as cenas,
dispondo seus atores em relação ao espaço
e à dramaticidade dos acontecimentos sempre com
uma clareza de sentidos muito firme, de modo que até
o exagero da câmera na mão em plano-seqüência
no flashback que recupera o dia em que Mário
e sua esposa Luísa receberam a notícia
do sumiço da filha, a única exceção
aos planos sempre fixos que o filme produz, acabava
se justificando pelo modo como Marco Martins fizera
aquele parecer realmente o único modo possível
de se filmar esse momento. Mas ainda assim, não
deixa de ser espantoso que Martins tire o grande momento
de Alice, aquele em que todas as idéias
espalhadas pelas seqüências diversas se condensam
e se agigantam, de uma simples dinâmica de campo
e contracampo. Agachado diante da menina de casaco azul
que julgava ser sua filha, a quem perseguira pela cidade
inteira, Mário se dá conta do impossível
de sua obsessão, e na troca de olhares com a
menina desconhecida admite para si mesmo que chegou
a hora de parar. A obsessão necessita de alimento,
precisa ser abastecida diariamente com todo o tipo de
artifício disponível, sejam fitas de vídeo,
cavalinhos de brinquedo comprados de um mendigo, fotos
numa parede ou a gargalhada gostosa de um personagem
interpretado no teatro, que ignora o pesar daquele que
se esconde por debaixo da máscara tão
somente para confirmar a inviabilidade dessa manifestação
de alegria. Sem alimento, a obsessão corre o
risco de tornar-se tristeza pura e simples, e em Alice
era contra ela que sempre se estava lutando. No campo/contracampo
da praça, diante da menina de casaco azul, Mário
decide interromper esse abastecimento. Volta para casa,
e ao encontrar vazio o lugar que sua mulher ocupara
na cama do casal em planos recorrentes ao longo de todo
o filme, se aquece debaixo do cobertor, apaga a luz
do abajur, e deixa a tristeza entrar. Sabe que não
pode ser dominado por ela, do modo que permitira à
sua saga obsessiva, sob pena de padecer como sua mulher,
que acabara de tentar o suicídio. No escuro de
seu quarto, sozinho, Mário finalmente consegue
se camuflar. O filme deixa-o por lá, e volta
às ruas, que seguem com sua movimentação
constante, o trânsito, o burburinho. As pessoas
que passam por elas, as pessoas que têm sua imagem
congelada no último plano, talvez não
sintam a diferença, mas nessa cidade revista
sem a participação ativa de Mário,
Alice sabe que já não pode seguir
adiante. Termina recolhido também à escuridão,
mas toda a força exibida na hora e meia anterior
garantem que este belo filme de Marco Martins não
se perderá nunca no meio dela.
Rodrigo de Oliveira
|