ALICE
Marco Martins, Alice, Portugal, 2005

Mário, nighthawk

Alice
é um filme noturno, mesmo quando acontece em plena luz do dia. No tom sempre escuro da fotografia, nos ambientes mal iluminados, no recorrente sobretudo preto que Mário usa, não há tanto uma tentativa de referência imediata a seu estado de espírito, perturbação adquirida pelo desaparecimento da filha pequena, o que tornaria o negro quase uma obrigação, guia primeiro das ações do protagonista. A noite aqui é tomada de maneira diversa, é o próprio lugar da revelação, e toda a escuridão, ao invés de dificultar a vista, talvez até a amplie. Mas o que se revela está longe de resolver o mistério da menina desaparecida. A idéia de resolução é quem mais se beneficia da obscuridade, permanecendo nas sombras ao longo do filme inteiro. Estamos sempre diante de Mário, junto a ele, e é a revelação de seus próprios dramas que acompanharemos. Um filme noturno porque só assim seria possível se aproximar de um filho involuntário desse ambiente.

Marco Martins encontra seu protagonista no meio de uma Lisboa indistinta, que é apenas a sucessão dos carros no trânsito e o burburinho das pessoas pelas praças e estações de metrô. Mais uma vez é arriscado ligar automaticamente essa relação com a urbanidade à matéria do filme, e enxergar Alice exclusivamente pelo ponto-de-vista das afetações que a modernidade causa naqueles que estão momentaneamente suscetíveis a elas, desguarnecidos pelo vírus da insegurança e da dúvida. Mário se relaciona com os clichês do mundo-anos-2000 num nível que nega frontalmente esse apoio na crise contemporânea. Desde que sua filha sumiu, repete meticulosamente todos os passos dados naquele dia, na tentativa de reencontrar-se com a rotina dela. Depois vaga pela cidade distribuindo flyers com a foto de Alice, um vagar que é pura impossibilidade de ficar parado, defesa do movimento como o princípio básico de quem não pode se render. Mas é num outro instrumento de busca que Mário realmente vê a chance de encontrar sua filha. Ele dispõe pela cidade, na casa de amigos, em varandas e terraços, onze câmeras de vídeos que filmam incessantemente o movimento das ruas. Há uma inversão absoluta na idéia da vigilância, pois é Mário quem observa a cidade, quem invade a privacidade dela, quem assume a posição do olho que tudo vê. Do lado de trás da lente, a modernidade vira alvo, e Mário é seu gentil algoz.

É preciso estar no controle para não sucumbir, e a revelação de Mário é a revelação de uma obsessão. Alice parece cada vez mais distante, encontrá-la deixa lentamente de ser a questão. O que sobra é a disposição de um pai em seguir procurando, num ponto em que o objeto dessa busca se torna fluído, muda com o caminhar dos acontecimentos, e é esse próprio ato de busca que interessa mais do que qualquer outra coisa. Recolhidas nas visitas às casas dos amigos, essas fitas com imagens da cidade serão revisadas uma a uma diante de uma pilha de tevês dispostas na sala de estar. Com a velocidade aumentada (no começo em apenas 2 pontos, mas agora já 10 vezes mais rápida que a velocidade normal, como ele se gaba timidamente a certa altura), Mário absorve todas aquelas pessoas que cruzam a tela, e seleciona as que lhe parecem próximas à imagem de sua filha, deixando seguir adiante todo o resto. Como diz o segurança do aeroporto, um amigo seu que lhe empresta os vídeos do circuito interno do lugar para que também os analise, a imagem do agora encarcerada em camerazinhas e distribuída em vários monitores diferentes dinamita a vontade de se ver novelas (e aqui diríamos também de se ver cinema). Estando no controle, Mário se torna diretor, roteirista, seleciona aquilo que quer ver, descarta o que não convém, coloca tudo na ordem que achar melhor. É o cineasta de sua própria história.

Mas dessa história a sua própria figura aparece excluída. Marco Martins, segundo cineasta desse mundo de Alice, sente que precisa trazer o primeiro para dentro da imagem, sob o risco de perdê-lo na escuridão por ele cada vez mais controlada. Aqui Mário será impelido, no fôlego da procura por sua filha desaparecida, a esbarrar consigo mesmo, e finalmente permitir-se personagem. Andando pela rua, pára diante de uma loja de eletrodomésticos que têm na vitrine uma câmera apontada para fora, a jogar para todas as televisões à sua volta a imagem de quem se põe na frente dela. Num dos grandes momentos do ator Nuno Lopes, seu destruído Mário renova energias ao ver seu próprio rosto, entre sorrisos e lágrimas, brincando finalmente do lado de lá da lente, e ali descobre que estivera ele próprio também desaparecido durante todo esse tempo. "On an average day" é o nome da peça de teatro em que Mário, ator por profissão, trabalha durante essa cruzada pela noite, e a descoberta de si mesmo enquanto conjunto de pixels é o que o livrará dos dias comuns, da rotina sempre repetida em seus mínimos detalhes, para um último grande impulso, uma aposta definitiva no encontro com sua filha, ela também apenas pixel, impresso em fotos pregadas na parede.

O diretor português já havia mostrado um talento muito particular para esquadrinhar as cenas, dispondo seus atores em relação ao espaço e à dramaticidade dos acontecimentos sempre com uma clareza de sentidos muito firme, de modo que até o exagero da câmera na mão em plano-seqüência no flashback que recupera o dia em que Mário e sua esposa Luísa receberam a notícia do sumiço da filha, a única exceção aos planos sempre fixos que o filme produz, acabava se justificando pelo modo como Marco Martins fizera aquele parecer realmente o único modo possível de se filmar esse momento. Mas ainda assim, não deixa de ser espantoso que Martins tire o grande momento de Alice, aquele em que todas as idéias espalhadas pelas seqüências diversas se condensam e se agigantam, de uma simples dinâmica de campo e contracampo. Agachado diante da menina de casaco azul que julgava ser sua filha, a quem perseguira pela cidade inteira, Mário se dá conta do impossível de sua obsessão, e na troca de olhares com a menina desconhecida admite para si mesmo que chegou a hora de parar. A obsessão necessita de alimento, precisa ser abastecida diariamente com todo o tipo de artifício disponível, sejam fitas de vídeo, cavalinhos de brinquedo comprados de um mendigo, fotos numa parede ou a gargalhada gostosa de um personagem interpretado no teatro, que ignora o pesar daquele que se esconde por debaixo da máscara tão somente para confirmar a inviabilidade dessa manifestação de alegria. Sem alimento, a obsessão corre o risco de tornar-se tristeza pura e simples, e em Alice era contra ela que sempre se estava lutando. No campo/contracampo da praça, diante da menina de casaco azul, Mário decide interromper esse abastecimento. Volta para casa, e ao encontrar vazio o lugar que sua mulher ocupara na cama do casal em planos recorrentes ao longo de todo o filme, se aquece debaixo do cobertor, apaga a luz do abajur, e deixa a tristeza entrar. Sabe que não pode ser dominado por ela, do modo que permitira à sua saga obsessiva, sob pena de padecer como sua mulher, que acabara de tentar o suicídio. No escuro de seu quarto, sozinho, Mário finalmente consegue se camuflar. O filme deixa-o por lá, e volta às ruas, que seguem com sua movimentação constante, o trânsito, o burburinho. As pessoas que passam por elas, as pessoas que têm sua imagem congelada no último plano, talvez não sintam a diferença, mas nessa cidade revista sem a participação ativa de Mário, Alice sabe que já não pode seguir adiante. Termina recolhido também à escuridão, mas toda a força exibida na hora e meia anterior garantem que este belo filme de Marco Martins não se perderá nunca no meio dela.


Rodrigo de Oliveira