As
primeiras cenas de A Graça Divina são significativas.
Na seqüência inicial, uma tribo africana canta as conhecidas
notas de “Amazing Grace”, hino religioso mundialmente
conhecido. Na segunda, após os créditos iniciais, uma
pomba branca atravessa a tela. Na terceira, essa mesma
tribo aparece feliz, em um concurso organizado por eles,
divertindo-se e mostrando aos espectadores seus costumes.
Um close-up de uma das meninas que lá vivia justifica
a transição para a quarta seqüência, na qual a menina
já está idosa, contando a história – em inglês – da
criação do hino para sua filha. Suas palavras ratificam
os planos anteriores e resumem o que o filme apresentará
a seguir: os africanos viviam alegres e de bem com a
vida até os malvados homens brancos chegarem e acabarem
com tudo. Esse raciocínio simplista não é o grande problema
de A Graça Divina. Afinal, os europeus realmente
dizimaram e escravizaram as tribos africanas, apesar
de, naturalmente, o processo ter características mais
complexas. Não é de se esperar, porém, de uma obra desconhecida
da Nigéria um grande projeto político. Infelizmente,
esta mesma visão acaba por tornar o filme de Jeta Amata
um retrato preconceituoso e depreciativo do povo que
tencionava exaltar.
Um dos principais problemas de A Graça Divina,
neste sentido, é o de partir, em sua estrutura, de uma
contradição. A história contada pela escrava idosa –
e, portanto, pelo filme – é a de John Newton, mercador
de escravos arrependido que transformou a melodia africana
em um hino mundial, compondo uma nova letra em cima
dela. Em teoria, a narrativa de Jeta Amata explica –
com linhas didáticas – ao público o motivo dessa conversão,
de traficante de escravos a compositor religioso, revestida
por valores maiores, que justificam a existência da
obra: os negros não devem ser vistos como animais, mas
como homens. Na prática, porém, a mesma narrativa, por
mais que tente empurrar esses conceitos de cinco em
cinco minutos, não chega a tais resoluções. Ao fim da
história contada, descobrimos que Newton continuou a
exercer seu trabalho por mais cinco anos, e que o hino
que escutou naquelas terras só passou a existir oficialmente
décadas depois. Se A Graça Divina ancora-se em
uma lição de moral que, no fundo, o próprio filme não
tem como passar, de que ele vale?
Possivelmente, de seus méritos cinematográficos. Ao
contrário da produção nigeriana corrente, feita diretamente
ao mercado de vídeo, A Graça Divina pode ser
considerada uma superprodução. As locações paradisíacas,
os costumes de época e, principalmente, a grua que permeia
quase todos os planos, dão essa impressão. Jeta Amata,
porém, não sabe utilizar aquilo que tem ao seu alcance.
A fotografia, ao ressaltar sempre a beleza africana,
transforma todas as árvores, bichos, praias, em cenários
de plástico, sem vida ou função. A reconstituição histórica
funciona como uma junção de sobras de algum filme hollywoodiano
passado na mesma época, em seu conjunto de roupas e
artefatos que, ao fim e ao cabo, não formam conjunto
algum. Os atores – principalmente os coadjuvantes –
não parecem saber o que fazem ali. Mas nada disso se
compara aos movimentos de câmera e enquadramentos decididos
pelo cineasta. Impressionado com as possibilidades técnicas,
Amata brinca de mexer a câmera de um lado para o outro,
em gruas tão feias quanto desnecessárias. Seus quadros,
ainda que pretensamente belos (como todo o resto no
filme), com suas folhas em primeiro plano, no canto
da tela, compondo o ambiente, acabam por esquecer-se
dos atores, da história, e mesmo da mise-en-scène
pretendida. O filme cai na pior dos paradoxos: a lição
de moral besta que justificava a história é sufocada
por seu virtuosismo barato.
Ficamos com o quê, então? Uma narrativa tosca, mal desenvolvida
e impossível de se acreditar (seqüências como a que
um escravo arrisca sua vida para salvar o traficante
bem-intencionado, dentro de um navio negreiro, sem razão
alguma fora a sua imensa bondade natural, são moeda
corrente). Uma reafirmação do mito do bom selvagem,
na qual os africanos são aquele povo exótico, unido,
feliz e brincalhão, contribuindo, no fundo, para que
o preconceito continue a existir, ainda que algumas
poucas cenas desmintam essa posição (naturalmente as
melhores do filme). Principalmente, uma visão colonialista
do negro, pela qual sua humanidade só pode ser garantida
quando o europeu a certifica (podemos exemplificar com
o clímax do filme, no qual John Newton – o europeu –
diz que a mulher que ama – a africana – não é um animal
porque, afinal, ele nunca amaria um animal). Enfim,
de todo o constrangimento que sentimos ao assistir a
Graça Divina, ficamos, no fundo, com nada.
Leonardo Levis
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