A ESTRADA
Zhang Jiarui, Fang Xiang Zhi Lu, China, 2006

Uma seqüência lá pelo meio da projeção de A Estrada mostra os protagonistas, em pleno período da Revolução Cultural na China de Mao, assistindo a uma sessão de cinema que exibe um lacrimoso melodrama norte-coreano. A platéia vai aos prantos e grita da forma mais descontrolada possível. O que essa cena parece reforçar são as intenções do diretor Zhang Jiarui em realizar de seu próprio filme um melodrama. Só que o gênero é extremamente difícil e são pouquíssimos os cineastas que dominam os limites em não ultrapassar a tênue linha que leva à manipulação desmedida das emoções da platéia, incorrendo, como no filme dentro do filme, em exagero, pieguice e histeria desmesurados. Pelo que se pode apreender em A Estrada, Zhang Jiarui certamente não se inclui nesse time de cineastas.

O filme parte do início da década de 60, acompanhando o trajeto de um ônibus que percorre estradas do interior chinês. Seu motorista, o já maduro Cui, e a cobradora Jingchu, ainda adolescente, serão os protagonistas e suas vidas serão retratadas por mais de três décadas desde então. Já no início, o diretor deixa claras suas intenções de seduzir a platéia com recursos fáceis: o ônibus percorre paisagens bucólicas fotografadas com cores vivas e Jingchu é apresentada como uma pessoa alegre, simpática e sorridente. O problema é que essa simpatia exagerada logo se mostra incômoda, trazendo a lembrança daquele que seja o maior monstro retratado no cinema recente: Amélie Poulain. Fica também caracterizada uma outra linha condutora do filme: o retrato do dirigismo inerente ao regime maoísta, que se insere em praticamente todos os aspectos da vida individual.

Entre as viagens, Jingchu começa a manifestar interesse romântico por um jovem médico, mas chega a revolução cultural e ele é levado a um campo de reeducação. A Estrada segue, e esse aspecto inicial de uma visão reflexiva sobre o regime, com leves tons de bom-humor, consegue preservar alguma manutenção do interesse sobre a trajetória assumidamente folhetinesca à qual estão submetidos os personagens. É curioso ver, e nesse aspecto o filme ainda guarda resquícios de uma abordagem pertinente, como a submissão a uma rotina pré-determinada pelo regime político levaria os personagens a uma percepção demasiado lenta de suas emoções e sentimentos. Passam-se anos até que atrações românticas sejam assumidas como tal.

É assim que, após mais de uma década trabalhando em parceria, Cui e Jingchu chegam ao casamento. Esse casamento, que se passa bem na metade da projeção de A Estrada é antecedido e sucedido pelas duas melhores seqüências do filme, onde sátira e bom humor superam a pieguice. Uma delas a já comentada sessão de cinema. A outra é a noite de núpcias. Nela vemos a noiva ser levada à casa do motorista, sempre apresentado como cidadão-modelo pelo partido. A casa é infestada de imagens e estatuetas de Mão, ganhas por Chui como prêmio ao longo dos anos, e que permanecem assombrando o casal mesmo quando chega a hora do sexo. Nesse momento, o filme se banha em um tom de comédia rasgada que sugere sua passagem a novos rumos.

Vã impressão. Pois logo a seguir o A Estrada, como um ônibus desgovernado, começa a descer ladeira abaixo. Desilusões e tragédias passam a irromper na vida dos protagonistas, a partir de um momento histórico que coincide com o fim da Revolução Cultural e o filme assume uma cara de novelão ruim, aos moldes de Glória Peres. Zhang Jiarui acelera em demasiado sua narrativa, com os anos correndo num piscar de olhos. Acompanhar A Estrada torna-se, então, uma atividade bastante difícil, seja pela forma com a qual as elipses passam a se suceder sem muita explicação, seja pelo tom apelativamente trágico imposto pelas situações apresentadas no roteiro.

O diretor perde definitivamente o controle do filme, incorrendo inclusive numa confusão ou indecisão quanto a sua proposta, pois se o filme começa sugerindo abertamente uma crítica ao modelo de vida imposto pelo partido, vai se encerrar com uma Jingchu envelhecida, triste e desiludida, num mundo contemporâneo no qual ela francamente não se reconhece. Paradoxalmente, A Estrada conclui com a sugestão de uma valorização de aspectos positivos da vida sob o regime comunista – meio na linha do alemão Adeus, Lênin – entrando num clima de "eu era feliz e não sabia". Isso só leva, terminada a sessão, a uma permanência na memória dos aspectos negativos do filme, com aqueles que poderiam caracterizar-se como seus poucos momentos felizes sendo brevemente esquecidos.


Gilberto Silva Jr.