Uma
seqüência lá pelo meio da projeção
de A Estrada mostra os protagonistas, em pleno
período da Revolução Cultural na
China de Mao, assistindo a uma sessão de cinema
que exibe um lacrimoso melodrama norte-coreano. A platéia
vai aos prantos e grita da forma mais descontrolada
possível. O que essa cena parece reforçar
são as intenções do diretor Zhang
Jiarui em realizar de seu próprio filme um melodrama.
Só que o gênero é extremamente difícil
e são pouquíssimos os cineastas que dominam
os limites em não ultrapassar a tênue linha
que leva à manipulação desmedida
das emoções da platéia, incorrendo,
como no filme dentro do filme, em exagero, pieguice
e histeria desmesurados. Pelo que se pode apreender
em A Estrada, Zhang Jiarui certamente não
se inclui nesse time de cineastas.
O filme parte do início da década de 60,
acompanhando o trajeto de um ônibus que percorre
estradas do interior chinês. Seu motorista, o
já maduro Cui, e a cobradora Jingchu, ainda adolescente,
serão os protagonistas e suas vidas serão
retratadas por mais de três décadas desde
então. Já no início, o diretor
deixa claras suas intenções de seduzir
a platéia com recursos fáceis: o ônibus
percorre paisagens bucólicas fotografadas com
cores vivas e Jingchu é apresentada como uma
pessoa alegre, simpática e sorridente. O problema
é que essa simpatia exagerada logo se mostra
incômoda, trazendo a lembrança daquele
que seja o maior monstro retratado no cinema recente:
Amélie Poulain. Fica também caracterizada
uma outra linha condutora do filme: o retrato do dirigismo
inerente ao regime maoísta, que se insere em
praticamente todos os aspectos da vida individual.
Entre as viagens, Jingchu começa a manifestar
interesse romântico por um jovem médico,
mas chega a revolução cultural e ele é
levado a um campo de reeducação. A
Estrada segue, e esse aspecto inicial de uma visão
reflexiva sobre o regime, com leves tons de bom-humor,
consegue preservar alguma manutenção do
interesse sobre a trajetória assumidamente folhetinesca
à qual estão submetidos os personagens.
É curioso ver, e nesse aspecto o filme ainda
guarda resquícios de uma abordagem pertinente,
como a submissão a uma rotina pré-determinada
pelo regime político levaria os personagens a
uma percepção demasiado lenta de suas
emoções e sentimentos. Passam-se anos
até que atrações românticas
sejam assumidas como tal.
É assim que, após mais de uma década
trabalhando em parceria, Cui e Jingchu chegam ao casamento.
Esse casamento, que se passa bem na metade da projeção
de A Estrada é antecedido e sucedido pelas
duas melhores seqüências do filme, onde sátira
e bom humor superam a pieguice. Uma delas a já
comentada sessão de cinema. A outra é
a noite de núpcias. Nela vemos a noiva ser levada
à casa do motorista, sempre apresentado como
cidadão-modelo pelo partido. A casa é
infestada de imagens e estatuetas de Mão, ganhas
por Chui como prêmio ao longo dos anos, e que
permanecem assombrando o casal mesmo quando chega a
hora do sexo. Nesse momento, o filme se banha em um
tom de comédia rasgada que sugere sua passagem
a novos rumos.
Vã impressão. Pois logo a seguir o A
Estrada, como um ônibus desgovernado, começa
a descer ladeira abaixo. Desilusões e tragédias
passam a irromper na vida dos protagonistas, a partir
de um momento histórico que coincide com o fim
da Revolução Cultural e o filme assume
uma cara de novelão ruim, aos moldes de Glória
Peres. Zhang Jiarui acelera em demasiado sua narrativa,
com os anos correndo num piscar de olhos. Acompanhar
A Estrada torna-se, então, uma atividade
bastante difícil, seja pela forma com a qual
as elipses passam a se suceder sem muita explicação,
seja pelo tom apelativamente trágico imposto
pelas situações apresentadas no roteiro.
O diretor perde definitivamente o controle do filme,
incorrendo inclusive numa confusão ou indecisão
quanto a sua proposta, pois se o filme começa
sugerindo abertamente uma crítica ao modelo de
vida imposto pelo partido, vai se encerrar com uma Jingchu
envelhecida, triste e desiludida, num mundo contemporâneo
no qual ela francamente não se reconhece. Paradoxalmente,
A Estrada conclui com a sugestão de uma
valorização de aspectos positivos da vida
sob o regime comunista – meio na linha do alemão
Adeus, Lênin – entrando num clima de "eu
era feliz e não sabia". Isso só leva,
terminada a sessão, a uma permanência na
memória dos aspectos negativos do filme, com
aqueles que poderiam caracterizar-se como seus poucos
momentos felizes sendo brevemente esquecidos.
Gilberto Silva Jr.
|