ACIDENTE
Cao Guimarães e Pablo Lobato, Brasil, 2006

Cao Guimarães e (agora) Pablo Lobato definitivamente apostam na força da imagem. Impacto visual com a finalidade de causar sensações, sentimentos, criar histórias e narrativas exclusivamente pelo potencial imaginário que desperta a partir da plasticidade e do movimento. Assim também é Acidente. A partir de imagens registradas em 20 cidades no interior de Minas Gerais, os diretores fazem muito mais do que um painel dos locais visitados. Tiram dali impressões extremamente pessoais que, postas lado a lado, compõem um álbum repleto de belas imagens. E assim o filme se estrutura. Cada plano minimamente pensado e executado com precisão. De cada elemento presente no quadro, Cao Guimarães e Pablo Lobato fazem poesia. Poesia que está evidenciada na junção dos nomes das cidades.

Devido à tradição, somos acostumados a maior assimilação do texto escrito em detrimento do impacto visual, pois palavras proporcionam significados imediatos. Por mais que estruturas lingüísticas ou ferramentas narrativas e de linguagem (como as utilizadas sobretudo na poesia) possibilitem novas interpretações e ressignificações, é ainda na imagem que se deposita o potencial imaginário e nela que nos apoiamos como trampolim para a libertação de concretude e despertamos para a entrega subjetiva com maior facilidade. Se na pintura – para ser direto e claro, no abstracionismo e no surrealismo, por exemplo – as imagens despertavam a faculdade criadora e interpretativa de maneira mais eficaz que nas palavras, o mesmo é válido para o cinema (também o de Cao Guimarães e Pablo Lobato). E curiosamente é das palavras que surge o impulso inicial do registro cinematográfico em cada uma das cidades. Os diretores partem dos nomes de cada uma delas a procura de imagens que dialoguem com eles: Entre Folhas, Passos, Caldas... Mas não é na própria essência da cidade que estão voltados os olhares dos diretores. Se há planos de folhas em movimento (Entre Folhas), ou de sapatos sendo engraxados (Passos) ou do movimento das águas (Caldas), o interesse é menos na significação ou representação da cidade, e mais na proximidade das imagens que fazem eco com seus respectivos nomes (ou títulos). Mas não há especificidades. A ausência de ícones possibilita que cada um daqueles planos estivesse em qualquer outro ponto do filme. Não há um Cristo Redentor dizendo "aqui é o Rio de Janeiro", ou um prédio do Banespa "aqui é São Paulo". Em cada uma daquelas 20 cidades poderíamos ver sapatos sendo engraxados, folhas voando ou águas correndo.

E estamos falando em cinema, e não em pinturas ou quadros fixos. A construção das imagens e seus encadeamentos são feitos por Cao Guimarães e Pablo Lobato tendo sempre em mente o dispositivo que utilizam. Se o cinema é capaz de criar imagens em movimento, os diretores não abrem mão de explorar suas instigantes e variáveis possibilidades. Utilizam-se de duas formas de captação de imagem: digital e super-8. Um trazendo a tecnologia, as novas variações, o barateamento da produção. O outro, a antiga forma de se fazer cinema, a imagem desgastada, a estética "ultrapassada". Novo e velho postos em cadência. Sem criar contrastes ou interferências, mas funcionando como complementaridade. Cao Guimarães e Lobato demonstram em Acidente que sabem valorizar o formato que têm em mãos. É com a câmera super-8 que registram as mais belas imagens do filme. Beleza plástica, que de tão forte causam sensações diferenciadas, como na seqüência em Palma em que pessoas e carros sobem ou descem a ladeira, sem ordem, sem tempo. Com a câmera digital, se apropriam, com sabedoria, da sua maior característica: a possibilidade do registro por tempo indeterminado. Se no cinema, cada lata de negativo é utilizada com cuidado e economia, a fita digital, pelo seu baixo custo (ao menos quando comparada com a película) proporciona o registro de muito material. E então a opção é por deixar cada coisa ter o seu tempo específico. O tempo de um peão num rodeio, o tempo das pessoas, o tempo do movimento de objetos, figuras, ações. É através de uma montagem sábia, que valoriza esse tempo específico conseguido no momento de captação, que as imagens "deslizam" com fluidez.

E o apuro e cuidado estético de Acidente se aproximam muito de Limite. O primeiro e único filme de Mário Peixoto desenvolvia um trabalho de composição de imagem bastante específico e determinado. Os interesses dos diretores contemporâneos certamente remontam a vanguarda brasileira da década de 20. Peixoto tinha um especial apreço pelas águas e sua movimentação. Daí tirou belíssimas imagens que estão registradas em seu filme. Com seu tempo específico, em modulações variáveis, a movimentação das águas em Limite têm sua representação. E Cao Guimarães e Lobato partem de um mesmo interesse, mas com novos formatos em mãos, e criam novas imagens do mesmo objeto. O enquadramento não é o mesmo. O tempo tampouco. Mas o olhar que se dirige é bastante próximo. Acidente certamente não é uma atualização de Limite. Mas é nestas águas que os diretores foram beber. E se apropriam com cuidado e talento, extraindo, como Peixoto, belas imagens. E não somente da água. Como o vanguardista brasileiro, os novos cineastas demonstram um especial interesse pela possibilidade estética de criação a partir de fenômenos naturais. Seja o vento que sopra levantando poeira, seja a brisa que faz com que uma bola vermelha vá e volte calmamente pelo corredor de uma casa. Uma vez mais é na própria imagem com seus efeitos narrativos e sua intrínseca plasticidade que Cao Guimarães e Lobato estruturam sua narrativa.

Acidente é, em última instância, um álbum de viagens. Não composto de fotografias turísticas, mas de imagens em movimento. Um álbum pessoal e subjetivo. Feito de impressões. Fica para o espectador apreciá-lo ou não. Entendê-lo certamente não é o melhor caminho.


Raphael Mesquita