Cao
Guimarães e (agora) Pablo Lobato definitivamente
apostam na força da imagem. Impacto visual com
a finalidade de causar sensações, sentimentos,
criar histórias e narrativas exclusivamente pelo
potencial imaginário que desperta a partir da
plasticidade e do movimento. Assim também é
Acidente. A partir de imagens registradas em
20 cidades no interior de Minas Gerais, os diretores
fazem muito mais do que um painel dos locais visitados.
Tiram dali impressões extremamente pessoais que,
postas lado a lado, compõem um álbum repleto
de belas imagens. E assim o filme se estrutura. Cada
plano minimamente pensado e executado com precisão.
De cada elemento presente no quadro, Cao Guimarães
e Pablo Lobato fazem poesia. Poesia que está
evidenciada na junção dos nomes das cidades.
Devido à tradição, somos acostumados
a maior assimilação do texto escrito em
detrimento do impacto visual, pois palavras proporcionam
significados imediatos. Por mais que estruturas lingüísticas
ou ferramentas narrativas e de linguagem (como as utilizadas
sobretudo na poesia) possibilitem novas interpretações
e ressignificações, é ainda na
imagem que se deposita o potencial imaginário
e nela que nos apoiamos como trampolim para a libertação
de concretude e despertamos para a entrega subjetiva
com maior facilidade. Se na pintura – para ser direto
e claro, no abstracionismo e no surrealismo, por exemplo
– as imagens despertavam a faculdade criadora e interpretativa
de maneira mais eficaz que nas palavras, o mesmo é
válido para o cinema (também o de Cao
Guimarães e Pablo Lobato). E curiosamente é
das palavras que surge o impulso inicial do registro
cinematográfico em cada uma das cidades. Os diretores
partem dos nomes de cada uma delas a procura de imagens
que dialoguem com eles: Entre Folhas, Passos, Caldas...
Mas não é na própria essência
da cidade que estão voltados os olhares dos diretores.
Se há planos de folhas em movimento (Entre Folhas),
ou de sapatos sendo engraxados (Passos) ou do movimento
das águas (Caldas), o interesse é menos
na significação ou representação
da cidade, e mais na proximidade das imagens que fazem
eco com seus respectivos nomes (ou títulos).
Mas não há especificidades. A ausência
de ícones possibilita que cada um daqueles planos
estivesse em qualquer outro ponto do filme. Não
há um Cristo Redentor dizendo "aqui é
o Rio de Janeiro", ou um prédio do Banespa
"aqui é São Paulo". Em cada
uma daquelas 20 cidades poderíamos ver sapatos
sendo engraxados, folhas voando ou águas correndo.
E estamos falando em cinema, e não em pinturas
ou quadros fixos. A construção das imagens
e seus encadeamentos são feitos por Cao Guimarães
e Pablo Lobato tendo sempre em mente o dispositivo que
utilizam. Se o cinema é capaz de criar imagens
em movimento, os diretores não abrem mão
de explorar suas instigantes e variáveis possibilidades.
Utilizam-se de duas formas de captação
de imagem: digital e super-8. Um trazendo a tecnologia,
as novas variações, o barateamento da
produção. O outro, a antiga forma de se
fazer cinema, a imagem desgastada, a estética
"ultrapassada". Novo e velho postos em cadência.
Sem criar contrastes ou interferências, mas funcionando
como complementaridade. Cao Guimarães e Lobato
demonstram em Acidente que sabem valorizar o
formato que têm em mãos. É com a
câmera super-8 que registram as mais belas imagens
do filme. Beleza plástica, que de tão
forte causam sensações diferenciadas,
como na seqüência em Palma em que pessoas
e carros sobem ou descem a ladeira, sem ordem, sem tempo.
Com a câmera digital, se apropriam, com sabedoria,
da sua maior característica: a possibilidade
do registro por tempo indeterminado. Se no cinema, cada
lata de negativo é utilizada com cuidado e economia,
a fita digital, pelo seu baixo custo (ao menos quando
comparada com a película) proporciona o registro
de muito material. E então a opção
é por deixar cada coisa ter o seu tempo específico.
O tempo de um peão num rodeio, o tempo das pessoas,
o tempo do movimento de objetos, figuras, ações.
É através de uma montagem sábia,
que valoriza esse tempo específico conseguido
no momento de captação, que as imagens
"deslizam" com fluidez.
E o apuro e cuidado estético de Acidente
se aproximam muito de Limite. O primeiro e único
filme de Mário Peixoto desenvolvia um trabalho
de composição de imagem bastante específico
e determinado. Os interesses dos diretores contemporâneos
certamente remontam a vanguarda brasileira da década
de 20. Peixoto tinha um especial apreço pelas
águas e sua movimentação. Daí
tirou belíssimas imagens que estão registradas
em seu filme. Com seu tempo específico, em modulações
variáveis, a movimentação das águas
em Limite têm sua representação.
E Cao Guimarães e Lobato partem de um mesmo interesse,
mas com novos formatos em mãos, e criam novas
imagens do mesmo objeto. O enquadramento não
é o mesmo. O tempo tampouco. Mas o olhar que
se dirige é bastante próximo. Acidente
certamente não é uma atualização
de Limite. Mas é nestas águas que
os diretores foram beber. E se apropriam com cuidado
e talento, extraindo, como Peixoto, belas imagens. E
não somente da água. Como o vanguardista
brasileiro, os novos cineastas demonstram um especial
interesse pela possibilidade estética de criação
a partir de fenômenos naturais. Seja o vento que
sopra levantando poeira, seja a brisa que faz com que
uma bola vermelha vá e volte calmamente pelo
corredor de uma casa. Uma vez mais é na própria
imagem com seus efeitos narrativos e sua intrínseca
plasticidade que Cao Guimarães e Lobato estruturam
sua narrativa.
Acidente é, em última instância,
um álbum de viagens. Não composto de fotografias
turísticas, mas de imagens em movimento. Um álbum
pessoal e subjetivo. Feito de impressões. Fica
para o espectador apreciá-lo ou não. Entendê-lo
certamente não é o melhor caminho.
Raphael Mesquita
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