Dentre
algumas das características que ligam De Passagem
a Os 12 Trabalhos, certamente a que mais
chama a atenção é a simplicidade.
E Ricardo Elias prova agora que não é
preciso mais. Com enredo simples, filmado com sutileza
e firmeza, sem firulas, o diretor paulista faz um grande
filme e se coloca entre as interessantes promessas brasileiras.
Os 12 Trabalhos conta a história de um
garoto recém-saído da Febem. Mas o interesse
de Ricardo Elias não está na problematização
do sistema carcerário ou de ensino do país.
O personagem não fica remoendo o tempo que lá
passou, tampouco sofre em demasia com os desdobramentos
(sociais ou psicológicos) que a passagem pela
Instituição lhe causou. Partindo da entrada
do garoto num universo cotidiano, à procura e
conquista de um emprego, e seu primeiro dia nele, as
questões que interessam no filme são tão
palpáveis a qualquer um de nós que facilmente
nos aproximamos de Heracles. Aproximamos e olhamos carinhosamente
para o protagonista. Este, como o personagem grego,
deve executar 12 trabalhos. Mas não para tornar-se
deus, mas para garantir o emprego. Na Tebas paulista,
a batalha diária nos torna deuses. A recompensa
é terminar o dia. E começar um novo.
A comparação pode ser arbitrária,
mas a Odisséia de Heracles se dá em um
dia. Como na história grega (de Homero), o protagonista
perambula (de moto e não de barco, evidentemente)
pelas ruas de São Paulo, deparando-se com as
mais inusitadas (e por vezes esperadas) situações.
Como no romance de Joyce, muitas vezes o fluxo e o andamento
da narrativa interessa mais do que as próprias
ações.
Mas o Ulisses de Ricardo Elias traz algo que nos toca.
A simplicidade. A generosidade. E por que não,
a inocência. Longe de ser bobo, ou enganado, Heracles
é bastante sagaz e astuto a ponto de se desvencilhar
das situações corriqueiras pelas quais
tem que passar (carimbar o protocolo de entrega da encomenda,
subir 25 andares de escadas, contornar uma multa de
trânsito – enfim, os 12 trabalhos). No entanto,
o garoto ainda nos faz acreditar no ser humano. Sem
maniqueísmos, Ricardo Elias demonstra um afeto
incomum por este personagem. Longe de transformá-lo
em herói ou sobrevivente de um sistema, mas apenas
num sujeito leal (e legal). É nele que o diretor
investe trespassando o que parece ser uma visão
de mundo que lhe pertence. Um olhar cuidadoso sobre
o outro. A vontade de fazer em meio às contingências
da rotina.
De maneira coerente, a câmera de Elias sempre
se posiciona ao lado de Heracles. Planos próximos
do rosto do personagem investigam pela estética
o que traz a sua essência. Os planos da agitada
e violenta vida dos motoboys são contrastados.
Se o modo de filmar é simples, bem como as atitudes
de Heracles, a movimentação (o vai e vem)
está fortemente presente. A cidade não
para. E são os motoboys que, como transgressores
de uma lógica de trânsito, em que um segue
o outro linearmente, corrompem a organização
(também estética) da cidade. Como bichos
geográficos, alteram os mapas de trânsito,
confundindo e conturbando. Afinal, são frutos
da modernidade, da aceleração, da correria
que marca a contemporaneidade.
E o ponto de fuga de personagens, motoboys ou
não, e diretor, está distante da cidade.
É na praia, local onde o horizonte é visível,
mas indeterminado. É lá que Heracles vai
parar, refletir e provavelmente (pois o filme termina
aí) continuar. Mais um dia, mais uma batalha.
A Odisséia de Ricardo Elias por ora se completa.
O cineasta abre mão do uso da tecnologia, de
efeitos chamativos ou ainda de ferramentas de linguagem
que poderiam chamar a atenção para o filme.
O universo dos personagens de Ricardo Elias é
o mesmo que o seu. Pessoas, trânsito, violência.
Mas também gratidão, afeto e esperança.
É desenhando que Heracles se desliga da pressão
(e pressa, vide sua futura profissão) cotidiana.
Com lápis e papel o cineasta abre espaço
para seu personagem viajar. Histórias mirabolantes,
descolamento social, descompromisso narrativo são
permitidos na belíssima seqüência
em que Heracles mostra seus quadrinhos para os companheiros
de profissão. Se para estes a história
é apenas "muito doida", para ele, e
para nós, aquele é o momento de libertação,
em que frui a espontaneidade e criatividade. Mas Ricardo
Elias ainda assim não faz uso de animação,
clipes, rebuscamento estético, imagem em preto
e branco. Uma leve alteração na textura
da imagem, proporcionada pela fotografia, e uma arte
que ambienta um período passado já são
suficientes para que nos descolemos da dureza rotineira
do filme e embarquemos nos sonhos de Heracles. Cineasta
generoso, Elias divide também com o espectador
a vontade de flutuar, ainda que levados por um disco
voador, ou por um avião que nos faz voar pelo
deslocamento do ar.
As crianças que compõe o momento de escape
do filme são nada mais do que a idealização
da inocência e imaturidade que Elias procura em
seus personagens. Comer um sanduíche num trailer
pode ter o mesmo sabor que um doce para uma criança
ou um jantar de gala para a classe alta. Para Ricardo
Elias, valores são individuais. Mas há
aqueles que estão apenas de passagem, e aqueles
a quem o outro é sempre presente. O cineasta
mostrou que diferente dos primeiros, veio para ficar.
E compartilhar com o espectador a beleza que está
presente na rotina, no cotidiano, no dia-a-dia. Tudo
muito simples.
Raphael Mesquita
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