Em
imagens estáticas de plano gerais, as luzes da
cidade vão se apagando, enquanto a luz do dia
vai surgindo. Em uma pequena cidade da Romênia
começa mais um dia. É um dia de dezembro
e as pessoas fazem o que sempre costumam fazer: tomam
café, vêem TV, vão ao colégio,
ao trabalho.
No colégio, os alunos que fazem prova de História
escolhem escrever sobre a Revolução Francesa,
não sobre qualquer momento histórico romeno.
No estúdio da emissora de TV local, a banda de
alunos do colégio toca uma "música
latina" dançante, até ser interrompida
pelo diretor da emissora, que pede que toquem alguma
música romena. Eles tocam, desinteressados. Para
além do fato, neste momento, a câmera,
que tinha o ponto de vista da câmera do cinegrafista
da emissora, se volta para o contra-plano dos bastidores.
Nesse contra-plano, o cinegrafista recebe ordens para
pôr a câmera no tripé, enquanto vemos
a banda refletida no aquário do estúdio,
já tocando a música romena. O diretor
da emissora, ao exigir que o cinegrafista pare com a
mania da câmera na mão e que a banda toque
outra música, é quem dita ordens nessa
cena, expondo e impondo suas idiossincrasias enquanto
coordena a única emissora de TV da cidade.
O dono da emissora é um dos três personagens
que o filme acompanha com bom-humor. No início
do filme, em imagens sóbrias, de câmera
fixa e enquadramentos de conjunto, cada um dos três
é mostrado em momentos cotidianos. Esse tipo
de construção de imagem muda radicalmente
pouco antes da metade do filme, quando os três
personagens finalmente se unem e quando a câmera
do cineasta passa a ter o olhar diegético (e
desajeitadamente subversivo – uma tosca câmera
na mão) da câmera da TV.
Manescu e Piscoci são convidados por Virgil Jderescu,
dono da emissora, a falarem sobre o 16º aniversário
da Revolução Romena: Virgil questiona
se houve ou não revolução na pequena
cidade que habitam. Não por acaso, os dois personagens
convidados têm forte relação com
o passado; Manescu é professor de História
e Piscoci é velho e mais conhecido como o ex-Papai
Noel da cidade. Já Virgil Jderescu, quem os convida,
é o dono da emissora e parece apenas querer levantar
uma questão para causar polêmica em seu
programa. Curiosamente, se há um personagem a
quem o filme nos submete menos simpatia, engajamento
(não seria identificação, porque
o filme não trabalha com essa chave), este é
o próprio dono da emissora (canastrão,
grosseiro, adúltero), condutor de boa parte do
filme (a parte do programa, justamente o momento de
leveza, desordem e escracho).
Parece que, de fato, há algo ali que não
deve ser tão levado a sério, que deve
ser descontraído. Escancaradamente, esta sensação
vem do humor fácil e repetitivo, dos barquinhos
de papel feitos pelo velho Piscoci durante o programa,
dos papeizinhos rasgados de forma barulhenta pelo professor
Manescu, do jeito meio canastrão de Virgil, dos
telefonemas bizarros que eles recebem. Por trás
disso, assim como o cenário (com a foto da praça
central da cidade, local onde teria ocorrido a Revolução)
está atrás dos atores que dão um
show de atuação cômica, a
discussão sobre a Revolução acaba
ficando por detrás do desastre burlesco que vira
o programa. Desta forma, o cineasta Corneliu Porumboiu
traz à tona uma questão tão cara
aos romenos ao mesmo tempo em que a descontrai e dissolve.
O cineasta faz esse caminho, contudo arma uma estrutura
para o filme (imagens fixas da cidade/uma espécie
de apresentação dos personagens sóbria
e contida/o escracho na encenação e a
quebra de linguagem/a volta às imagens estáticas
da cidade) que serve para que não se confunda
a descontração com o deboche. O episódio
do programa certamente chama mais atenção,
mas todos os momentos do filme são importantes
para sua existência.
O cineasta romeno não quer fazer pouco caso de
um fato histórico marcante para o seu País,
quer apenas tratar com bom-humor e leveza a preocupação
com a oficialidade das coisas. E faz isso usando como
meio a TV, uma mídia que está presente
em todas as casas durante o filme. Toda essa parte do
programa brinca com o meio televisivo e com o tom oficioso
da imagem, da mídia e dos momentos históricos
retratados pela mesma. Vemos então a forma do
filme desoficializando um pouco a TV e a questão
da Revolução, ao menos naquela cidade
específica. O filme também brinca perceptivelmente
com a forma quando o dono da emissora reclama duas vezes
a respeito da câmera na mão. Poderíamos
tomar essas reclamações como sendo do
próprio cineasta (cutucando filmes que tratam
a câmera na mão como fetiche esvaziado)
já que todos os outros planos são fixos.
Ao mesmo tempo, numa contradição, o momento
marcante do filme adota esse olhar com um tom de subversão
gaiata que incomoda, mas, principalmente, diverte.
Imersos nessa diversão, mas já um pouco
cansados das piadas reiteradas, somos levados ao fechamento
do filme, num retorno às imagens estáticas
das ruas. Desta vez, as imagens são acompanhadas
de uma narração em off de alguém
que parece estar diegeticamente por detrás das
câmeras, como se fosse uma espécie de cinegrafista
da TV que optou pela câmera fixa e pela observação
do cotidiano da cidade que anoitece. A luz do sol cai,
as luzes elétricas acendem e mais um dia existiu
nessa pequena cidade romena. E, no fundo, pouco importa
se eles fizeram ou não a Revolução.
Luísa Marques
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