Melissa,
uma adolescente de 15 anos, narra em um diário suas
desventuras sentimentais e a descoberta do sexo. Na
sua inocência romântica de virgem, ela se apaixona por
Daniele, rapaz de intenções duvidosas, e, embora não
saiba ao certo como agir, vai atrás do seu objeto de
desejo, disposta a vencer as barreiras da timidez e
da inexperiência em nome de uma afirmação do seu corpo
(e, logo, de uma outra vida). Mas o mundo dos adultos
é implacável e sem muito espaço para a sensibilidade:
Daniele a humilha e dispõe sexualmente dela como bem
entende. Melissa, no entanto, não se deixa abater, na
confiança de conquistar este mundo do qual ainda não
faz parte. Sua aparente "perda de ingenuidade"
é encarada como um processo no qual a menina tenta se
adaptar como pode às descobertas que faz. O filme é
conduzido pelo seu olhar que oscila, duvida e a faz
se arriscar e se lançar, desafiando a si mesma. A leitura
pontual do seu diário em off dá o tom da narrativa
confessional, seguindo um gênero literário bastante
em voga hoje, algo como "relato pessoal de aventuras
pesadas da juventude", aliás, nicho confesso do
livro de sucesso que originou o filme.
Esta observação da personagem, desde suas opiniões e
sentimentos sobre o que a cerca (a distância do pai
que ela adora, os conflitos com a mãe ausente, a atenção
e compreensão da avó que ela ama, a presença e companhia
da amiga inseparável, a hostilidade do ambiente escolar),
às suas reações ao que lhe acontece, isenta-se a princípio
de qualquer julgamento. Melissa cambaleia frente às
situações com as quais se depara, deixando-se levar
e não se preocupando muito com certezas – e o filme
apresenta-se livre e sem pudores ao descrever suas descobertas
sexuais "não-ortodoxas". Ignorando as leis
da moral e dos comportamentos sociais, Melissa se entrega
ao prazer proporcionado por seu corpo, confiante de
estar devolvendo à sociedade o seu próprio veneno: o
individualismo. A prática do sexo desvinculado de qualquer
relação interpessoal, torna-se para a menina a tônica
do funcionamento do mundo dos grandes, ao qual ela tenta
se alinhar. Essa visão rasteira e ingênua da prática
sexual, de certa forma natural ao momento de descoberta
e decepções pelo qual ela passa, é exagerada e ampliada
pelo filme, chegando quase a constituir um diagnóstico
apocalíptico dos homens.
Pois tudo que acontece a Melissa tem o ar do trágico,
da desgraça irremediável. E, embora o filme procure
um equilíbrio que não descambe para a análise de um
"mundo corrompido", reforçando a altivez da
personagem perante os golpes que leva (seu "entrar
no jogo" sem grandes danos), a seqüência crescente
de "degradações" que ela sofre atinge um clímax,
no qual o mundo todo parece conspirar negativamente
contra os seres que "perdem seu caminho".
100 Escovadas dá então uma volta sobre si e encontra
a noção de pecado, ausente até ali, se encerrando como
uma narrativa de forte cunho moral. De tanto desprezar
os valores familiares e os bons costumes sexuais, Melissa
acaba caindo numa enrascada: vai até o apartamento de
um homem com quem "divertia-se" pela internet
e encontra um tarado violento. Neste momento, em montagem
paralela das mais ignóbeis, sua querida avó, que estava
internada num asilo-clínica, morre. De um só golpe,
a menina que achava poder lidar em pé de igualdade com
as injustiças do mundo, dominar a dor, as agressões
e as humilhações, se vê castigada por conta de suas
desmedidas. Conseguindo escapar do covil em que se meteu
e chegando em casa razoavelmente salva, ela encontra
sua mãe, abalada pela leitura do diário da filha, pelo
seu sumiço e pela morte da sogra. Neste momento, também
a mãe tem sua oportunidade de regeneração: descobre
a insuspeita vida difícil de Melisse e reconhece a relação
forte e sincera que ela tinha com a avó, a única pessoa
que realmente a entendia.
Espécie de brusca reviravolta, o desfecho conciliatório
e redentor revela o quanto a descrição de situações
anterior constituía na verdade um painel narrativo-argumentativo:
as ações de todos os personagens são valoradas (ou re-valoradas,
considerando-se que eram ações que valiam por si) em
virtude de uma súbita "tomada de consciência"
ou reconhecimento da necessidade de não se abandonar
determinados princípios "humanos". Toda a
"falta de rumo" de Melissa, aparentemente
motivada por suas incertezas e dúvidas, mostra-se o
resultado de uma falta de amparo familiar. Restabelecido
o diálogo e o afeto entre ela e sua mãe, a vida descortina-se
de outra forma: ela pode reencontrar a amiga verdadeira
que havia descartado e descobrir no garoto estranho
da sala um admirador secreto, que nutria por ela sentimentos
nobres. Encontrar, enfim, sua adolescência sadia e "normal",
após as provas de ferro às quais foi submetida por sua
ingenuidade. Logo, as perversões e exageros dos quais
ela fez parte brevemente ficam para os bad-boys, representantes
de uma juventude perdida que o filme finalmente renega
e se abstém de "investigar". Ora, talvez lhes
falte também o amor familiar, para que aprendam a canalizar
da forma devida seus impulsos sexuais...
100 Escovadas alinha-se a uma certa tendência
do cinema contemporâneo que busca efeitos de choque
como meio para atingir um fim: a reafirmação de valores
morais cuja ausência parece sentida. A lista é grande
e inclui filmes como Réquiem para um Sonho, de
Darren Aronofsky e Um Vazio em Meu Coração, de
LuKas Moodysson. A configuração desta preocupação como
gênero, algo tipo "retrato de uma juventude perdida",
vem quase sempre caracterizada por um lamento mesclado
a uma afirmação. É preciso afirmar a potência da sedução
exercida por este "lado negro" do homem e
atuar dentro dos seus desígnios (explorar o baixo, a
vulgaridade, o mau-gosto, em suma, compactuar com a
"perversão"), para então condená-lo e comprazer-se
também com o castigo. Trata-se de uma estratégia de
lógica eminentemente cristã – e cinematograficamente
lamentável, por denunciar uma grave descrença nos personagens
e na sua existência na tela-mundo. Pois a sua manifestação
em imagem, produzida e incentivada pela câmera, acaba
desautorizada pela narrativa, que se sobrepõe a ela.
Onde poderíamos ter uma experiência, recebemos uma lição,
em forma de narrativa educativa e edificante.
Tatiana Monassa
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