Maldição
é um filme de 1950. E começar um texto com essa informação
não é à toa. Lembremos que o ano marca a produção de
grandes clássicos do cinema americano, como Crepúsculo
dos Deuses, A Malvada, No Silêncio da
Noite e O Matador. E, apesar do filme de Fritz Lang
não ser mais do que um figurante na época de seu lançamento,
passados mais de 50 anos podemos reconhecer a obra-prima
que é. E, mais do que isso, podemos identificar de que
maneira o diretor alemão estava inserido no sistema
hollywoodiano de produção e de que forma Maldição
dialoga com os grandes títulos já consagrados na história
do cinema.
Há uma curiosa coincidência que liga Maldição, Crepúsculo
dos Deuses e A Malvada: os três filmes apresentam
protagonistas gananciosos e ávidos pelo sucesso. Ainda
que Lang, Billy Wilder e Mankiewicz, respectivamente,
utilizem ferramentas distintas na construção de personagem,
a premissa que move os protagonistas é a mesma. Em Crepúsculo
dos Deuses, Norma Desmond é a atriz de cinema fracassada
que havia feito sucesso em outrora, mas já estava no
esquecimento e Joe Gillis é um jovem roteirista que
tenta se lançar à fama. Em A Malvada, Eve é uma
jovem atriz de teatro que, a todo custo, procura brilhar
no palco superando a veterana Margo. E finalmente em
Maldição, Stephen é um escritor que, como os
demais, quer se promover e conquistar o sucesso. Ainda
que em segmentos artísticos diferentes, respectivamente
Cinema, Teatro e Literatura, todos os filmes estão ligados
ao universo artístico, do brilho e glamour. Não por
acaso. Estamos em Hollywood e Billy Wilder nos lembra
disso muito bem.
Mas, apesar da enorme semelhança na temática, Maldição
trás consigo algumas especificidades que o tornam único,
e não esconde marcas que já havíamos notado na filmografia
do diretor que figurou como nome maior no Expressionismo
Alemão da década de 20 (ainda que Fritz Lang não se
identificasse muito bem com o rótulo). As entrelinhas
de Maldição, e sobretudo a relação de domínio
existente no filme, deixam evidentes o dedo do diretor
alemão.
Construído todo a partir das relações de poder, Maldição
de certo modo reflete a impressão de “estrangeiro” em
Hollywood, local onde é preciso “vender a alma” para
sobreviver. O filme não deixa de ser um ponto de vista
sobre a acirrada disputa “artística” por um espaço de
destaque. Como os demais filmes já citados, a trama
em Maldição é espelho de um momento. No entanto,
Lang traça características psicologizantes em seus personagens
(sobretudo no protagonista Stephen) que marca mais do
que uma especificidade, mas uma crítica ácida que transborda
o tema referido.
Stephen exerce um certo domínio sobre os demais personagens.
Controla sua esposa, seu irmão, a empregada, a senhora
vizinha e até mesmo o policial. Cada uma dessas relações
de poder é marcada por distintas características. E
o poder não é meramente político. Sobre a esposa, Stephen
exerce um poder amoroso. Através da relação de marido-mulher
(no começo do filme), Marjorie se entrega a Stephen,
pois nele deposita sua confiança e amabilidade. Com
o irmão, John, a relação é um tanto parecida. Já não
mais o amor de homem-mulher, mas o amor de irmão. A
cumplicidade (enganosa) de Stephen trás pra si a confiança
de John, ainda que muitas vezes seja necessário apelar
para um certo sentimentalismo, como no momento em que
John se recusa a ajudar Stephen, até este “confessar”
(falsamente) que a esposa está grávida. Com a empregada
Emily, que acaba assassinada por Stephen no começo do
filme, a imposição de poder se faz pela força física.
A princípio há a tentativa de sedução e charme. Quando
vencido, Stephen faz valer a sua superioridade pela
força. Força que é contrastada com a educação e amabilidade
com que lida com a simpática senhora que mora ao lado
de sua casa. Nunca um rapaz como aquele seria suspeito
de qualquer assassinato. É um poder de sedução, mascarado,
enganoso, que Stephen coloca diante da vizinha. E, para
finalizar, chegamos a um poder estamental que se coloca
entre o protagonista e o policial. Sentado em uma poltrona,
em sua casa, Stephen coloca um ar superior que inibe
o policial que o visita a fim de especular sobre o assassinato
de Emily.
Recorrendo a um retrospecto rápido na filmografia de
Lang, lembramos que algumas vezes as relações de poder
marcavam grande parte de seus filmes, como o poder alucinógeno
de Dr. Mabuse, o poder coletivo dos mendigos
em M., o poder científico e da tecnologia em
Metrópolis. Mas em Hollywood Lang abre espaço
para além de personagens patológicos. Stephen não é
somente um louco, um obsessivo. Ele é uma figura carismática,
um artista. Se tem delírios que dão a impressão de sofrer
com a culpa, no momento seguinte parece restabelecer
sua (má) índole com ações não esperadas. A relação com
o irmão John e o desdobramento do episódio do assassinato
de Emily ilustram o quão ambíguo Stephen se apresenta.
Se num primeiro instante tenta envolver sentimentalmente
o irmão, ao perceber que este pode estar comprometido
no assassinato de Emily (pois o saco jogado ao mar com
o cadáver continha seu nome) sua postura é instantaneamente
alterada. Parece esquecer a figura de irmão e imediatamente
cria um cúmplice, ou até mesmo um bode espiatório. E
Stephen não se acanha, fará da situação o máximo proveito.
O poder emotivo passa a ser um poder marcado pela chantagem.
Mais do que a forma pela qual se estabelecem as relações,
o personagem Stephen sempre busca o domínio. E Fritz
Lang tira a imagem de louco e torna-o um personagem
comum, um tipo que podemos encontrar pelas ruas. Suas
atitudes, no contexto do filme, acabam sendo justificadas.
A fama e o sucesso corrompem, e se Stephen já apontava
indícios de uma avidez de poder, quando chega ao auge,
parece ainda mais perturbado.
Lang transita entre a crítica social - questionando
valores - e personagens mentalmente perturbados. O rio
que beira a casa de Stephen é alvo de reclamações da
senhora vizinha que diz já não agüentar mais aquela
sujeira que vai e volta a todo o momento. E Stephen
a alerta: “Culpe o homem pela sujeira, não o rio”. Antes
mesmo de assassinar a jovem Emily, o personagem faz
uma crítica ao homem e suas atitudes, ao mesmo tempo
em que dá indícios de um transtorno obsessivo.
Fritz Lang se mostra antenado em seu tempo. Se Crepúsculo
dos Deuses ou A Malvada entraram no panteão
dos grandes nomes do cinema, Maldição – se não
conseguiu o mesmo feito – contribui para a vastidão
e complexidade da obra do diretor alemão, engrandecendo-a
de maneira significativa. Curiosamente, o ano de 1950
apresenta essa especificidade de reflexão sobre o universo
artístico e, ainda que possamos chamar apenas Crepúsculo
dos Deuses de metalingüístico, os demais filmes
aqui citados nada mais são do que a incorporação e transposição
para as telas de um clima vivenciado. Lang faz de Hollywood
o que já fazia na Alemanha pré-nazista. Pensa o momento
e se coloca além de seu tempo.
Raphael Mesquita
(DVD Aurora)
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