GARDÊNIA AZUL
Blue Gardenia, EUA, 1953

Norah (Anne Baxter) veste preto e acende velas diante de um retrato de seu namorado pousado sobre a mesa de jantar. Embora ele não esteja morto, como os signos da cena parecem querer indicar, sua persona funciona como uma assombração, pois é de luto e sozinha que Norah comemora seu próprio aniversário, já que o seu comportamento diante da ausência de seu homem, no filme aquele que dá a estrutura para a forma de viver de uma mulher, se assemelha ao de alguém sem nenhum propósito na vida a não ser esperar, fechada ao mundo, enquanto sua vida está distante. Nesse sentido, é decisiva a continuação da cena descrita acima, quando a protagonista abre a carta de seu namorado, combatente na Guerra da Coréia, para receber os parabéns durante um romântico jantar e descobre que ele está apaixonado por outra. Perdê-lo, para Norah, é como perder o próprio chão, e é exatamente nesse momento do filme que a personagem inicia sua queda. Indefesa, frágil e desorientada, ela se deixa envolver por uma avalanche de acontecimentos que culminam na morte de Harry Prebble com quem ela havia saído na mesma noite. Por estar embriagada, no entanto, Norah não consegue se lembrar do ocorrido e se contorce de culpa pela possibilidade de ter sido ela a assassina.

A partir desse momento, Lang se concentra nas possibilidades de julgamento da sua personagem pelos outros membros da trama e pelos próprios espectadores, de modo que a investigação que se dá ao longo do filme nos obriga a tomar um partido. Utilizando-se de um domínio magistral da linguagem clássica e do curso da narrativa tradicional ao cinema de gênero, ele confronta nossas expectativas que tem origem nos estereótipos e preconceitos do cinema clássico, principalmente àqueles ligados às figuras femininas, da mulher sonhadora à femme fatale. De acordo com a lógica básica (e reacionária) desse, Norah deve pagar por ter ido contra o que se espera de uma mulher correta ao se deixar levar por Harry, um conhecido mulherengo, até a casa dele no primeiro encontro. Além disso, todos os personagens em algum momento presumem barbaridades sobre a possível assassina, mesmo que não suspeitem quem ela seja, com comentários sarcásticos em relação a esse tipo de violência, que seria típica de uma mulher mal-amada. Todos estão na trama para julgar moralmente Norah, e, para intensificar essa idéia trabalhada de olhar da sociedade como um todo, soma-se o aspecto sensacionalista com que a imprensa trata o crime e a investigação.

Deriva desse olhar machista da sociedade, bem representado no filme, a questão mais interessante dele que Lang parece tratar com uma certa ironia crítica. Essa é a influência que os homens têm na vida das mulheres nos filmes americanos, denunciando o lado sexista dessa indústria quase toda dominada por homens, face tradicionalmente escondida atrás das figuras das divas de Hollywood – cujas personagens, mesmo aparentando ter uma personalidade forte, costumam associar um homem rico com um final feliz. Em Gardênia Azul, são muito marcantes as discussões sobre o relacionamento entre homens e mulheres. Basta analisar o comportamento dos personagens femininos e masculinos, porém, para ver que essa relação é de subordinação e dependência. O final feliz para Norah, por exemplo, é terminar ao lado de Casey Mayo, um famoso e conquistador jornalista, que joga com sua fragilidade para ser o primeiro a conseguir uma entrevista exclusiva com a assassina. Ela só sente orientada ao conhecer ele, segue suas instruções com uma confiança cega e, mesmo depois de ser presa por sua culpa, ainda termina o filme flertando com o mesmo. As companheiras de quarto dela representam dois extremos. Uma é infantil, boba e passa o dia lendo livros de suspense, ela também é a única solteira, mal sabendo se portar diante dos homens. A outra é hiper-estruturada e madura, já foi casada, mas agora apenas namora o marido por diversão – marido que, ironicamente, se mostra interessado em Norah, mais nova e imatura. A última personagem feminina da história é exatamente a que descobrimos ser a assassina de Prebble, uma ex-namorada ciumenta que deseja ter ele de volta. O comportamento estruturado ou desestruturado de todas as mulheres do filme está conectado a sua relação com os homens.

Lang deixa claro o ponto de vista crítico de sua obra ao nos apresentar um final feliz pra lá de irônico. Mesmo que esse tenha sido uma daquelas conhecidas exigências de produtores, o diretor soube se aproveitar dela muito bem. Após contorcer a mente dos espectadores durante todo o filme, obrigando-os a escolher entre torcer por uma possível assassina ou ir contra a mocinha da história, ele cria um final repentino que descobre a verdadeira assassina, tira sua protagonista da prisão e acena para um namoro dela com o jornalista em menos de 10 minutos. A duração mínima desse final de conto de fadas ressalta o perfil corrosivo desse filme, pois se todo ele flui naturalmente durante 90 minutos, fazendo-nos esquecer de qualquer questionamento da realidade que ele possa conter e nos identificando com a indefesa Norah (como qualquer filme clássico deve fazer), seu final faz o oposto. O curso esperado do filme se manteria tranquilamente até o fim se esse fosse macio e suave, convincente para todos. Felizmente, ele é brusco e repentino, tornando a cena em que Norah é presa (não coincidentemente exatamente a que inicia o último capítulo do DVD) muito mais marcante, além de surpreendentemente aceitável como desfecho de uma trama em que a protagonista é atacada por todos os lados.

Como é comum nos filmes do diretor alemão, o olhar da sociedade é claro, se apressando em julgar quaisquer personagens e gerando conseqüências imprevistas. Aqui essa sociedade é machista e o resultado de seu julgamento foi uma mulher inocente terminando presa, como o verdadeiro final do filme faz questão de nos mostrar.


Bernardo Barcellos

(DVD Aurora)