Norah
(Anne Baxter) veste preto e acende velas diante de um
retrato de seu namorado pousado sobre a mesa de jantar.
Embora ele não esteja morto, como os signos da cena
parecem querer indicar, sua persona funciona como uma
assombração, pois é de luto e sozinha que Norah comemora
seu próprio aniversário, já que o seu comportamento
diante da ausência de seu homem, no filme aquele que
dá a estrutura para a forma de viver de uma mulher,
se assemelha ao de alguém sem nenhum propósito na vida
a não ser esperar, fechada ao mundo, enquanto sua vida
está distante. Nesse sentido, é decisiva a continuação
da cena descrita acima, quando a protagonista abre a
carta de seu namorado, combatente na Guerra da Coréia,
para receber os parabéns durante um romântico jantar
e descobre que ele está apaixonado por outra. Perdê-lo,
para Norah, é como perder o próprio chão, e é exatamente
nesse momento do filme que a personagem inicia sua queda.
Indefesa, frágil e desorientada, ela se deixa envolver
por uma avalanche de acontecimentos que culminam na
morte de Harry Prebble com quem ela havia saído na mesma
noite. Por estar embriagada, no entanto, Norah não consegue
se lembrar do ocorrido e se contorce de culpa pela possibilidade
de ter sido ela a assassina.
A partir desse momento, Lang se concentra nas possibilidades
de julgamento da sua personagem pelos outros membros
da trama e pelos próprios espectadores, de modo que
a investigação que se dá ao longo do filme nos obriga
a tomar um partido. Utilizando-se de um domínio magistral
da linguagem clássica e do curso da narrativa tradicional
ao cinema de gênero, ele confronta nossas expectativas
que tem origem nos estereótipos e preconceitos do cinema
clássico, principalmente àqueles ligados às figuras
femininas, da mulher sonhadora à femme fatale.
De acordo com a lógica básica (e reacionária) desse,
Norah deve pagar por ter ido contra o que se espera
de uma mulher correta ao se deixar levar por Harry,
um conhecido mulherengo, até a casa dele no primeiro
encontro. Além disso, todos os personagens em algum
momento presumem barbaridades sobre a possível assassina,
mesmo que não suspeitem quem ela seja, com comentários
sarcásticos em relação a esse tipo de violência, que
seria típica de uma mulher mal-amada. Todos estão na
trama para julgar moralmente Norah, e, para intensificar
essa idéia trabalhada de olhar da sociedade como um
todo, soma-se o aspecto sensacionalista com que a imprensa
trata o crime e a investigação.
Deriva desse olhar machista da sociedade, bem representado
no filme, a questão mais interessante dele que Lang
parece tratar com uma certa ironia crítica. Essa é a
influência que os homens têm na vida das mulheres nos
filmes americanos, denunciando o lado sexista dessa
indústria quase toda dominada por homens, face tradicionalmente
escondida atrás das figuras das divas de Hollywood –
cujas personagens, mesmo aparentando ter uma personalidade
forte, costumam associar um homem rico com um final
feliz. Em Gardênia Azul, são muito marcantes
as discussões sobre o relacionamento entre homens e
mulheres. Basta analisar o comportamento dos personagens
femininos e masculinos, porém, para ver que essa relação
é de subordinação e dependência. O final feliz para
Norah, por exemplo, é terminar ao lado de Casey Mayo,
um famoso e conquistador jornalista, que joga com sua
fragilidade para ser o primeiro a conseguir uma entrevista
exclusiva com a assassina. Ela só sente orientada ao
conhecer ele, segue suas instruções com uma confiança
cega e, mesmo depois de ser presa por sua culpa, ainda
termina o filme flertando com o mesmo. As companheiras
de quarto dela representam dois extremos. Uma é infantil,
boba e passa o dia lendo livros de suspense, ela também
é a única solteira, mal sabendo se portar diante dos
homens. A outra é hiper-estruturada e madura, já foi
casada, mas agora apenas namora o marido por diversão
– marido que, ironicamente, se mostra interessado em
Norah, mais nova e imatura. A última personagem feminina
da história é exatamente a que descobrimos ser a assassina
de Prebble, uma ex-namorada ciumenta que deseja ter
ele de volta. O comportamento estruturado ou desestruturado
de todas as mulheres do filme está conectado a sua relação
com os homens.
Lang deixa claro o ponto de vista crítico de sua obra
ao nos apresentar um final feliz pra lá de irônico.
Mesmo que esse tenha sido uma daquelas conhecidas exigências
de produtores, o diretor soube se aproveitar dela muito
bem. Após contorcer a mente dos espectadores durante
todo o filme, obrigando-os a escolher entre torcer por
uma possível assassina ou ir contra a mocinha da história,
ele cria um final repentino que descobre a verdadeira
assassina, tira sua protagonista da prisão e acena para
um namoro dela com o jornalista em menos de 10 minutos.
A duração mínima desse final de conto de fadas ressalta
o perfil corrosivo desse filme, pois se todo ele flui
naturalmente durante 90 minutos, fazendo-nos esquecer
de qualquer questionamento da realidade que ele possa
conter e nos identificando com a indefesa Norah (como
qualquer filme clássico deve fazer), seu final faz o
oposto. O curso esperado do filme se manteria tranquilamente
até o fim se esse fosse macio e suave, convincente para
todos. Felizmente, ele é brusco e repentino, tornando
a cena em que Norah é presa (não coincidentemente exatamente
a que inicia o último capítulo do DVD) muito mais marcante,
além de surpreendentemente aceitável como desfecho de
uma trama em que a protagonista é atacada por todos
os lados.
Como é comum nos filmes do diretor alemão, o olhar da
sociedade é claro, se apressando em julgar quaisquer
personagens e gerando conseqüências imprevistas. Aqui
essa sociedade é machista e o resultado de seu julgamento
foi uma mulher inocente terminando presa, como o verdadeiro
final do filme faz questão de nos mostrar.
Bernardo Barcellos
(DVD Aurora)
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